Questões Contemporâneas

Não penso e não existo: psicanálise e diferença na modernidade

Luiz Paulo Leitão Martins
Psicólogo. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. Bolsista da CAPES.


Resumo: O presente texto versa sobre o estatuto da psicanálise no pensamento moderno. Partindo do projeto arqueológico desenvolvido por Michel Foucault, demarca-se a elaboração de duas histórias: uma da identidade e outra da diferença. Com efeito, é possível notar que ambas estão incluídas em um programa maior do filósofo francês de investigar a distribuição da ordem entre as palavras e as coisas na modernidade. Com a psicanálise, as dimensões do impensado e da finitude são reenviadas ao seu lugar constitutivo de diferença, na medida de sua positivação pela noção freudiana de inconsciente. Sendo assim, a posição do homem, até então marcada pelo cogito cartesiano, é invertida tanto em relação ao pensamento quanto à existência.
Palavras-chave: modernidade; inconsciente; psicanálise; diferença.

I DO NOT THINK AND I DO NOT EXIST: PSYCHOANALYSIS AND DIFFERENCE IN MODERNITY

Abstract: This text deals with the status of psychoanalysis in modern thought. Starting with the archaeological project developed by Michel Foucault, it demarcates the elaboration of two stories: one of identity and another of difference. Indeed, it is possible to see that both are included in a larger program of the French philosopher in investigating the distribution of the order between words and things in modernity. Through psychoanalysis, the dimensions of the unthought and finitude are resent to their constitutive place of difference, once their positivization by the Freudian notion of unconscious. Therefore, the man’s position hitherto characterized by the Cartesian cogito is reversed in relation to both thought and existence.
Keywords: modernity; unconscious; psychoanalysis; difference.

Em seu livro As palavras e as coisas (1966), Michel Foucault propõe um estudo sobre as configurações discursivas, no desenrolar das épocas clássica e moderna. Os discursos seriam lidos conforme certa ordem na relação entre as palavras e as coisas, que no fundo funcionaria como espaço comum de manifestação do modo de ser das coisas. O filósofo abre seu livro com essa explicação e o conclui com uma tese sobre o surgimento do homem na modernidade, propondo o modelo das ditas contraciências – o que irá incluir psicanálise, etnologia e linguística – para sustentar as dimensões do impensado e da finitude. Perguntamo-nos: que lugar ocuparia a psicanálise em relação ao pensamento moderno por sua relação a tais dimensões? Trata-se de precisar no interior do pensamento psicanalítico noções importantes que trazem um sentido muito específico para a relação entre psicanálise e modernidade.

Propõe-se num primeiro momento discorrer sobre o sentido da investigação relativa à modernidade na obra foucaultiana, demarcando duas narrativas empreendidas pelo autor para abordar a relação do pensamento com as categorias da identidade e da diferença. Num segundo momento, articulam-se as noções de impensado e finitude, no sentido que Foucault atribui a elas, à polissemia do conceito psicanalítico de inconsciente. Nossa intenção, ao término do texto, é promover a explicitação do campo discursivo psicanalítico na episteme moderna, com a singularidade em vigor em sua modulação teórico-clínica.

Duas histórias, um programa: identidade e diferença entre as palavras e as coisas
            No prefácio ao texto de 1966, há uma indicação importante quanto ao lugar do livro em questão no conjunto da até então obra prevista por Foucault. Ele diz ter na História da loucura na idade clássica (1961) proposto uma história da diferença, daquilo que numa dada cultura é alocado ao mesmo tempo como interior e estranho, ou seja, como outro, enquanto que em As palavras e as coisas seu objetivo é o de elaborar uma história da identidade, do que frente às variações discursivas de superfície permanece o mesmo. Num olhar em perspectiva pode-se entrever um programa imanente a essas duas histórias: trata-se de pensar o estabelecimento das epistemes discursivas e sua relação com as categorias de identidade e diferença no pensamento.

Na História da loucura, Foucault aborda a relação estabelecida nas épocas clássica e moderna entre o social e a experiência da diferença. Na realidade, é o lugar do outro enquanto tal que constitui seu tema central, de modo que a investigação proposta toca sua delimitação, seu papel na civilização e o modo com que sua presença é recebida discursivamente. O advento da loucura propriamente dita data do século XVII com o estabelecimento da distinção entre razão e desrazão, tornando essa experiência oposta ao registro da verdade. Correlativamente a isso, há a constituição social do dispositivo de internamento através dos hospitais gerais e asilos, visando efetivamente à exclusão cívica da figura do louco (FOUCAULT, 1972, p. 56ss). Assim, de direito, a loucura se dispõe oposta à ideia de natureza humana, porquanto suas paixões e seus constantes desvios oriundos da imaginação e da fantasia, e, de fato, é tratada do mesmo modo que um animal, devendo ser dominada por diferentes formas. O que se deve observar é a descrição de uma maneira específica de lidar com a diferença, de modo que a alteridade é sempre subsumida a uma abordagem de exclusão ou de controle.

Outra história é intentada em As palavras e as coisas: trata-se de empreender uma narrativa para a categoria do mesmo, como noção fundamental de um pensamento da identidade. Nesse caso, o que está em jogo é não mais como que se dá a exclusão de determinados elementos no plano discursivo, mas a sua constância, já que por sua permanência seria possível constituir uma série dos elementos cuja distribuição se estabelece por uma relação de semelhança. Essa série deve se formar numa região mediana entre os códigos de cultura e o pensamento científico e filosófico, cuja expressão seja capaz de desvelar uma ordem muda que carrega sob si o modo de ser das coisas (FOUCAULT, 1966, p. 11ss). Para a reconstrução dessa história, é fundamental para Foucault definir uma descontinuidade entre a época clássica – na qual a representação, como modo de correspondência no estabelecimento de uma relação de razão entre signo e objeto, dá ao discurso uma soberania em relação às coisas – e a modernidade – como um espaço em que a palavra por uma espécie de dobra toma a si mesma como objeto de investigação. Paralelamente a essa fragmentação da linguagem, surge a figura do impensado, já que o pensamento é levado a percorrer o domínio de seu oposto: o não pensamento, e de uma analítica da finitude, na medida em que o homem se apercebe de seus limites na própria empiricidade da vida. É somente a partir daí que o homem como objeto aparece no cenário discursivo ocidental (FOUCAULT, 1966, p. 314). Imerso na multiplicidade de linguagem, questionado quanto a ser tanto o penso quanto o não penso e fragilizado pela dimensão intransponível de sua própria morte, o ser humano deverá encontrar seus próprios caminhos para abordar a diferença. É nesse contexto que a contribuição da psicanálise é convocada por Foucault para talvez indicar nela um modo específico de relação com essa experiência.

Psicanálise na modernidade: impensado, finitude e isso
            Em se tratando de caracterizar o pensamento moderno, Foucault se utilizará da referência de um quadro importante no decorrer da obra, As meninas,de Diego Velásquez, para demonstrar como a representação no início do século XIX irá tomar justamente como objeto aquele cujo lugar central no quadro demarcava antes desse período uma ausência essencial. Ainda que não percebida, tratava-se de uma posição sempre ocupada, já que habitada pelos personagens do pintor, do soberano e do espectador da obra (FOUCAULT, 1966, p. 318ss). Assim, enquanto no classicismo aquele para quem a representação existe jamais se torna ele mesmo objeto do pensamento, na modernidade a linguagem percorre essa existência muda de um desconhecido,convocando aquele que representa a um conhecimento de si. A diferença aparece como um impensado, que esquadrinhado pela razão dá as condições de possibilidade para um discurso do ser. A articulação entre ser e pensamento reativará o tema do cogito de um modo inverso, considerando que o domínio do não pensamento – composto em Descartes pelos aspectos da dúvida, do diverso sensível, dos sonhos, da imaginação e das paixões (DESCARTES, 1990, p. 28-65; DESCARTES, 2009, p. 79-90) – é reavaliado, haja vista que o próprio pensamento se vê atravessado por seu contrário. A consequência disso é que dada ao pensamento a tarefa de percorrer o homem por inteiro, ele fica exposto ao perigo de encontrar exatamente aquilo que como figura do outro jamais lhe aparecera à reflexão. A psicanálise surge como um discurso do inconsciente na medida em que com Sigmund Freud o pensamento aponta deliberadamente para esse ponto de fuga, tornando a linguagem aberta para a diferença (FOUCAULT, 1966, p. 385). Assim, ao abordar a distinção terminológica entre consciência e inconsciente, Freud irá propor uma metapsicologia que visa, em pelo menos um sentido, à emancipação da importância dada ao chamado sintoma de ser/estar consciente (FREUD, 2010a, p. 134). Nesse sentido, no que concerne à proposição “penso, logo sou”, em que ambos os termos da relação estão positivados, a psicanálise opera tanto um descentramento do ser em relação ao pensamento – uma vez que “sou onde não penso”, ou seja, que é lá no inconsciente que a casa tem seu governo (FREUD, 1996b, p. 292) –, quanto um descentramento do pensamento em relação ao ser: “penso onde não sou” – tendo em vista a perspicácia de Freud ao descrever os mecanismos do inconsciente (deslocamento e condensação) funcionando exatamente como outro modo de pensamento (FREUD, 1996a, p. 544ss) .

Ademais, a experiência da modernidade também se constitui numa ordem das coisas marcadas pelo registro da finitude. O pensamento moderno encontra seu limite ao se deparar nas formas concretas de existência com os aspectos de vulnerabilidade e de fragilidade constitutiva do ser, tomando a morte como uma possibilidade real e imanente à vida. Trata-se de uma tese retomada do Nascimento da clínica (1963), em que o filósofo defende uma caracterização da clínica médica moderna marcada pelo postulado biológico do mortalismo, haja vista que desde Xavier Bichat, com a descoberta de um processo de mortificação concomitante à evolução da doença, a vida passaria a ser entendida a partir da morte, de modo que esta conteria a verdade daquela (FOUCAULT, 1972, p. 148). Freud, nesse contexto, seria herdeiro de Bichat, já que defendera justamente a partir de 1920 a ideia de uma precariedade constitutiva do ser positivada pela tendência de retorno a um estado inanimado de existência. Em oposição à vida, as pulsões de morte atuariam como uma força de desorganização, visando à livre circulação das intensidades psíquicas (FREUD, 2010b, p. 202ss). Disso se segue que a relação entre homem e civilização é marcada por uma desarmonia entre a demanda das pulsões e a efetividade da satisfação, de modo que o desamparo do sujeito se torna originário, tendo como correlato a isso um mal-estar radical e permanente no convívio social (BIRMAN, 2005, 220ss; FREUD, 2010c, p. 20ss, 29ss).

Se a psicanálise a partir do impensado impõe negatividade a um dos termos do “penso, logo sou”, haja vista que “sou onde não penso” e “penso onde não sou”, com a hipótese da finitude ambos precisam ser negados e desse modo acolhidos no discurso. “Não penso e não sou”! Não há nada que garanta a coerência e a estabilidade no pensamento, já que ele está diante de uma noção radical de inconsciente, expresso por um irredutível isso, que no fundo é animado pela intensidade das pulsões de morte. Além disso, diante da constatação de sua finitude, o vivente é invadido constante e ferozmente pela figura da morte, tornando a sua própria existência vaga e irreconhecível simbolicamente. Enquanto a fantasia fundamental é uma tentativa do sujeito de resolver o enigma do ser, o ato em última instância visado numa psicanálise é a renúncia da existência da verdade, como um tesouro escondido no pensamento, e a aceitação da externalização radical do sujeito em relação a sua existência (ZIZEK, 1999, p. 281). Atravessar a fantasia é aceitar o vazio da inexistência. Dessa forma, em relação à modernidade, o discurso psicanalítico atuaria desde a diferença, de modo a positivar o que antes se afigurava tão somente como negativo e oferecer à experiência do outro não a exclusão, mas um dispositivo de produção do inconsciente no pensamento.

Referências
BIRMAN, J. O mal-estar na modernidade e a psicanálise: a psicanálise à prova do social. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, 2005, p. 203-224.
DESCARTES, R. Méditations métaphysiques. Paris: Flammarion, 1641/2009.
_________. Les passions de l'âme. Paris: Le livre de poche, 1649/1990.
FOUCAULT, M. Histoire de la folie à l'âge classique. Paris: Gallimard, 1961/1972.
_________. Naissance de la clinique : une archéologie du regard médical. Paris: PUF, 1963/1972.
_________. Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris: Gallimard, 1966.
FREUD, S. A interpretação dos sonhos. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, v. 5, 1900/1996a.
_________. O inconsciente. In: Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, v. 12, 1915/2010a.
_________. Conferências introdutórias sobre psicanálise. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, v. 16, 1917/1996b.
_________. Além do princípio do prazer. In: Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, v. 14, 1920/2010b.
_________. O mal-estar na civilização. In: Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, v. 18, 1930/2010c.
LACAN, J. Le séminaire, livre XI: les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1964/1973.
ZIZEK, S. The ticklish subject: the absent centre of political ontology. Londres, Nova Iorque: Verso, 1999.

 



Com efeito, Jacques Lacan argumentará que “ao nível do inconsciente, existe alguma coisa em todos os pontos homóloga ao que se passa ao nível do sujeito - isso fala, e isso funciona de um modo tão elaborado quanto o nível do consciente, que perde assim o que parecia seu privilégio” (LACAN, 1973, p. 27, grifos meus).
 

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Recebido em: 06/02/2013
Aceito em: 14/11/2013

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