LIPIS

QUANTO TEMPO ME RESTA? REFLEXÕES ACERCA DA TEMPORALIDADE EM PACIENTES DE AIDS

IGOR FRANCES é Doutorando do programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio.igorfrances@yahoo.com.br

JUNIA DE VILHENA é Psicanalista. Membro efetivo do CPRJ. Dra em Psicologia Clínica.Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social – LIPIS da PUC-Rio. Membro do GT da ANPEPP "Processos de subjetivação, Clinica Ampliada e Sofrimento Psíquico Pesquisadora da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine, CRPM-Pandora. Université Denis-Diderot Paris VII.  Investigadora-Colaboradora do Instituto de Psicologia Cognitiva da Universidade de Coimbra www.juniadevilhena.com.br   E-mail: vilhena@puc-rio.br.

MARIA INES GARCIA DE FREITAS BITTENCOURT é Doutora em Psicologia Clínica. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).Pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social – LIPIS da PUC-Rio. mines@puc-rio.br. 


Resumo: O objetivo deste trabalho é refletir sobre o modo como a vivência do tempo se apresenta em situações específicas da clínica psicanalítica desenvolvida no hospital geral. Ressaltam-se as ressonâncias dessa questão no que diz respeito ao diagnóstico de AIDS. No diálogo entre as ideias de Freud sobre a realidade psíquica, as contribuições filosóficas de Merleau-Ponty sobre a temporalidade e os conceitos winnicottianos de continuidade e ruptura no fluxo da vida, buscamos encontrar subsídios para a possibilidade de ressignificação, pelo sujeito, tanto do diagnóstico quanto do tempo que lhe resta para viver.
Palavras-chave: Tempo; Continuidade ; Ruptura; AIDS; Clínica.

TÍTULO EM INGLÊS

Abstract: The aim of this paper is  to discuss  how time is experienced in specific situations of  the psychoanalytical work accomplished in hospitals . This issue is highlighted in the situation of the diagnosis of AIDS. In the dialogue between Freud´s ideas about psychic reality, the philosophical contributions of Merleau-Ponty on temporality and Winnicott´s concepts of continuity and disruption in the flow of life, we seek for possibilities of helping individuals to find new meanings for the diagnosis and    for the time left him to live.
Keywords: Time; Continuity; Disruption; AIDS; Clinic.

Quanto tempo me resta?  Reflexões acerca da temporalidade em pacientes de aids
[…] Tempo endurecido é tumor
Tempo derretido é poema.

Viviane Mosé

INTRODUÇÃO

O que é o tempo? Do que estamos falando, quando falamos do tempo? Uma resposta muito famosa é a de Santo Agostinho, no século III. Diz ele: o tempo é o tema mais banal de nossas conversas cotidianas, e não fazemos outra coisa senão falar disso. E, no entanto, se alguém nos pergunta sobre o que é isso de que tanto falamos, nos vemos diante de um paradoxo: "O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; mas se o quiser explicar a quem me faz a pergunta, já não sei" (AGOSTINHO, 1984:304).

Freud também não deixa de dar razão a Santo Agostinho quando diz que o tempo, em si mesmo, não é representável, assim como não podemos representar a diferença sexual, nem se representa a própria morte (FREUD, 1915/1972; 1920/1972). Do tempo, nós podemos ter uma noção, mas jamais um conceito ou uma definição. Assim, vamos falar do tempo mesmo sem poder defini-lo. Benjamin (1939/1999) dizia que o conhecimento surge como a luz dos relâmpagos. O texto é apenas o longo trovão que se segue. É desta forma que pretendemos abordar o tempo: alguns clarões, muitos estrondos e a certeza de que considerações acerca do tempo frequentemente nos colocam em situações inquietantes.

É sobre uma das situações mais inquietantes que vamos falar aqui. Buscamos, nesse texto, investigar como a vivência do tempo se apresenta em "situações específicas" da clínica psicanalítica desenvolvida no hospital geral, ressaltando, a partir de uma investigação teórica, as ressonâncias dessa questão no que diz respeito ao diagnóstico de aids. No diálogo entre as ideias de Freud sobre a realidade psíquica, as ideias de Merleau-Ponty sobre a temporalidade e os conceitos winnicottianos de continuidade e ruptura no fluxo da vida, buscamos encontrar subsídios para a possibilidade de ressignificação, pelo sujeito, tanto do diagnóstico quanto do tempo que lhe resta para viver.

Há alguns anos, quando ainda trabalhava no hospital como psicólogo, um de nós foi surpreendido por uma pergunta feita por um dos pacientes que atendia. Deitado em seu leito, com o corpo escondido pelo lençol, deixando apenas a cabeça à mostra, ele olhou para o terapeuta com um olhar distante, perdido no vazio; tinha acabado de receber o diagnóstico positivo para HIV/AIDS; virou de lado em um esforço para falar e perguntou: Quanto tempo eu vou viver com isso? Quanto tempo me resta?

Essa questão do tempo pode ser pensada em duas dimensões não excludentes, mas que se comportam dentro de um mesmo conjunto – elementos comuns, diríamos. Uma dessas dimensões, que chamaremos cronológica, diz respeito à passagem do tempo do relógio, aquela que nos coloca em um percurso predefinido: nascer, crescer e morrer. A princípio, a pergunta feita pelo paciente remetia a isso.

É necessário apontar aqui que o diagnóstico de aids ainda representa um grave problema de saúde pública, por dizer respeito a uma doença sem cura, mesmo com todos os avanços no campo do saber médico. As marcas da aids se apresentam no corpo do paciente, em um corpo que se deixa tomar não só pelos sintomas como também por todo um imaginário preconceituoso. O diagnóstico defronta o sujeito com a morte, com o passar do tempo.

A outra dimensão se refere ao tempo vivido e pouco tem a ver com o tempo cronológico. Mas o que é o tempo vivido? 

O TEMPO VIVIDO 

A mesma hora que voa ao passarmos um momento agradável pode se arrastar com seus longos sessenta minutos quando, ansiosos, esperamos por uma notícia importante. A duração dos sete dias de uma semana quando trabalhamos, inseridos em nossa rotina habitual, perde-se durante as férias, de tal forma que, muitas vezes, sequer sabemos em qual dia do mês estamos.

Na busca de resposta às indagações sobre o tempo, a primeira que nos ocorre é a afirmação de Santo Agostinho que mencionamos anteriormente. “Se ninguém me perguntar, eu sei; mas se o quiser explicar a quem me faz a pergunta, já não sei”. Não podendo responder a essa pergunta inicial, partimos em direção de tentar entender o tempo como um paradoxo conceitual.

Para falar sobre o tempo é preciso muita poesia, porque as poesias têm o poder de transmutar as palavras. Recorremos aqui a Viviane Mosé, que diz que o “tempo derretido é poema”. Concordamos que o tempo seja líquido, pois quando tentamos apanhá-lo, ele escorrega por entre nossos dedos.

O paradoxo se confirma justamente pelo fato de que um conceito determina uma constante. Do latim conceptus, verbo concipere, tem significado de “conter completamente”, “formar dentro de si”. Dessa forma, podemos pensar o conceito de conceito como algo da ordem do universal. O tempo, entretanto, não pode estar inserido apenas na categoria da continuidade. Eis a dificuldade: encontrar uma definição para algo que não se situa no campo da invariabilidade.

Freud nunca se dispôs a formular um conceito ou uma definição do tempo. Mesmo assim, o tempo está presente em toda sua teoria. É sobre a base do tempo que se pode pensar em memória, em transmissão, em repetição, em perlaboração, em pulsão, em invenção, em acontecimento, em novo. Uma das noções de tempo que atravessam a obra de Freud tornou-se a mais conhecida: a noção de Nachträglich, que podemos traduzir por 'posteriormente' ou por 'a posteriori'.

O problema para Freud não parece ser ignorar a dimensão do tempo cronológico, e sim de estabelecer certo movimento que contém como princípio da marcação não a sucessão absoluta e invariável do evento, mas sim uma tomada do tempo que se dá a partir de um referente, o representante da formação inconsciente. Dessa maneira a “realidade psíquica” preside a referência da marcação do tempo próprio do inconsciente.

E é nessa dimensão cronológica que se vê um sujeito arremessado ao fim da jornada da vida, já que se reconhece como um ser vivente que vai morrer – um grande golpe, a fragilidade em se reconhecer mortal, na onipotência narcísica. No mesmo instante em que se é arremessado ao fim, o sujeito regride a um tempo em que poderia se sentir onipotente, a infância. Por isso, vale dizer que, muitas vezes, atendemos a uma criança.

Merleau-Ponty (1999) apresenta o tempo como dimensão estrutural da experiência. Para ele, a temporalidade é o campo da presença no qual a dimensão do mundo e a dimensão do sujeito se encontram implicados. Assim, entende-se o tempo como sujeito e o sujeito como tempo: o tempo, dessa forma, não é a sucessão apenas de acontecimentos, ele é uma dimensão do nosso próprio ser, que nasce da nossa relação com as coisas no mundo.

Com o diagnóstico, o paciente precisará redesenhar seu trajeto, a partir de novas identificações, de novos referenciais. Essa dimensão do tempo cronológico nos remete à metáfora do rio descrita por Merleau-Ponty, do rio que não se escoa, mas permanece um e o mesmo:

Há um estilo temporal do mundo, e o tempo permanece o mesmo porque o passado é um antigo porvir e um presente recente, o presente é um passado próximo e um porvir recente, o porvir enfim é um presente e até mesmo um passado por vir, quer dizer, porque cada dimensão do tempo é tratada ou visada como outra coisa que não ela mesma - quer dizer, enfim, porque no âmago do tempo existe um olhar ou, como diz Heidegger, um Augenblick, alguém por quem a palavra como possa ter um sentido. Nós não dizemos que o tempo é para alguém: isso seria estendê-lo ou imobilizá-lo novamente (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 567).

Dessa forma, não podemos pensar o tempo apenas como esse rio que passa, ao olharmos de fora. O tempo somos nós percorrendo esse rio, nós passamos com ele em um continuum espacial. Isso remete a uma outra dimensão do tempo. E é pela escuta nesse ambiente hospitalar que podemos tornar claro no percurso do tratamento que não se trata apenas do medo da passagem do tempo. Claro que a pergunta Quanto tempo me resta? parece conduzir-nos a ideia de que se espera pelo fim, pela morte, diante de um diagnóstico mortífero. Entretanto, o paradoxo se instala justamente por haver um resto que fica. O que fazer com esse resto? Aí, entra a escuta da primeira pergunta: Quanto tempo eu vou viver com isso?

Essa pergunta indica outro caminho, mesmo que o diagnóstico coloque o paciente diante da finitude, diante de sua própria morte, ele mesmo ainda consegue recursos para ressignificar esse diagnóstico e encontrar vida após o resultado do exame:

Quando há pouco descrevíamos a recuperação do tempo por si mesmo, só conseguíamos tratar o futuro como um passado acrescentando um passado por vir, e o passado como um porvir acrescentando um porvir já advindo - o que representa dizer que, no momento de nivelar o tempo, era preciso afirmar novamente a originalidade de cada perspectiva e fundar essa quase-eternidade no acontecimento. O que não passa no tempo é a própria passagem do tempo. O tempo se recomeça: ontem, hoje, amanhã, esse ritmo cíclico, essa forma constante pode-nos dar a ilusão de possuí-lo por inteiro de uma só vez, assim como o jato d'água nos dá um sentimento de eternidade (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 567).

São nossas escolhas responsáveis por não deixar lacuna nesse fluxo contínuo de ondas que forma esse jato d’água, pois qualquer obstáculo pode impedir que o jato se perpetue. Se pensássemos que cada escolha que fazemos na vida cria uma linha temporal, como proposto nos filmes de ficção científica, espécie de realidades alternativas, poderíamos supor que o momento do diagnóstico seria uma colisão dessas unidades temporais, dessas possíveis realidades. O que por um lado poderia ser um grave problema de desestruturação do sujeito, pode se constituir pela análise como um recurso para o sujeito ressignificar tanto o diagnóstico quanto esse tempo que resta.

Continuidade e ruptura: o olhar winnicottiano sobre a vida

A obra de Winnicott traz a marca de sua rica experiência pessoal, adquirida não apenas na prática da pediatria e da psicanálise, como também em incursões por diversos outros campos culturais, em particular na música e na literatura, com especial destaque para a poesia. Uma reflexão muito criativa sobre o conjunto dessa experiência possibilitou a emergência de conceitos originais , onde se destaca a ênfase na dimensão da vida, pensada como algo que se dá na interação contínua entre o fluxo natural próprio do individuo e o seu ambiente, de modo a impulsionar o processo de integração do self. O autor evoca em particular a importância do estado de “continuidade” nos primórdios da vida; na visão do autor este estado é condição essencial para a construção de um espaço subjetivo “potencial” onde se alojará mais tarde o sentimento de uma existência pessoal “digna de ser vivida”.

A temporalidade é fundamental para compreendermos a constituição do que Winnicott (1975) chama de espaço potencial, tanto quanto para percebermos a natureza dos fenômenos que ocorrem nesse campo. Na constituição subjetiva da criança, a mãe se posiciona em meio a um paradoxo: ao mesmo tempo em que estimula a separação, a mãe evita que esta ocorra. Assim, o que pode haver não é a separação, mas a ameaça de separação.

A construção de sentido decorre de uma experiência criadora ocorrendo no tempo “entre” a subjetividade e os movimentos ativos dirigidos ao ambiente, possibilitando a elaboração pessoal do que é vivenciado na relação com o mundo externo.  Da leitura dos trabalhos de Winnicott (op. cit) sobre o brincar e o espaço da criação, depreendemos que essa construção de sentido se dá através de experiências que possam tornar viável o difícil embate com o mundo real. O mal-estar pode ser atenuado pelo reconhecimento de uma dimensão subjetiva na fronteira entre o mundo interno e o mundo externo - onde o sujeito pode reabastecer-se e se recriar.

A possibilidade desta criação/recriação/recreação é construída ao longo de um processo de amadurecimento que requer condições específicas para acontecer. Winnicott descreve a experiência vivida pelo self como um processo que se inicia quando o bebê, à condição de encontrar um ambiente favorável capaz de suprir as suas necessidades básicas, constrói para si mesmo um lugar de existência potencial, onde o mundo interno e o mundo externo serão entretecidos na contextura da imaginação. Nesse espaço poderá se dar mais tarde, pela aquisição da linguagem, uma recriação simbólica da vida, fundamentada na memória e na narratividade.

Para Winnicott, desde os momentos precoces da vida, muito antes de ingressar na dinâmica das relações objetais, o bebê atravessa fases em que os elementos sensoriais e motores de sua experiência vão progressivamente adquirindo contornos existenciais até atingir o ponto em que se possa falar de um self, resultado de um processo de “personalização” que inclui a integração psique-soma. Quando começam a se delinear as origens da subjetividade, o bebê vivencia dois estados que se sucedem continuamente, alternando-se em ciclos de excitação e tranquilidade: estes estados, assim como a passagem de um para o outro, são algo com que o indivíduo irá lidar ao longo de toda a sua vida. Winnicott afirma em diversos momentos de sua obra que o modo como esta alternância irá se dar no futuro é determinado em grande parte pelas características da relação mãe-bebê. Os estados tranquilos/de repouso são oportunidades para a integração no tempo e no espaço e para o alojamento da psique no corpo (integração psicossomática); eles se relacionam com os processos de espontaneidade e criação próprios do SER.

Aos estados tranquilos se contrapõem os estados de excitação, que segundo Winnicott (1988) podem ser assim descritos: em função dos ritmos biológicos, a tranquilidade do bebê é periodicamente interrompida por uma tensão logo vivenciada como urgência, desencadeando uma ação motora (agitação, choro, etc.). As tensões, que  são manifestações de  que o bebê está vivo e têm origem  na instintualidade, levam naturalmente à excitação, exigindo uma ação para seu apaziguamento. Mas como o bebê nada sabe ainda sobre sua necessidade ou sobre o que pode ser esperado, ele apenas em algum momento “espera encontrar algo em algum lugar” (1988:120). Por isso é fundamental um ambiente capaz de atender adequadamente às demandas do bebê, em sintonia com o momento e o grau de sua excitação. Deste modo, encontrando a satisfação de forma prazerosa, o bebê pode retornar ao estado tranquilo em que continuará a vivenciar uma “continuidade do ser”, livre de sensações de ruptura que podem ser vivenciadas como ameaças à própria existência.

Com a formulação teórica do tema dos estados tranquilos do bebê, Winnicott inaugura um fértil campo de reflexão que se estende a toda a natureza humana. Nos momentos tranquilos de repouso, o bebê permanece em estado de não-integração, termo que para Winnicott denota um relaxamento, próprio de quem se sente bem sustentado. O bebê pode assim entregar-se a uma espécie de “contemplação”, elaborando imaginativamente os estados fisiológicos do próprio corpo, como a digestão, ou também os sons, a luminosidade, os odores, os movimentos do ambiente. Se for segurado no colo pela mãe, pode olhar para ela e se comunicar, ou simplesmente recolher-se ou dormir. O importante é a mãe permanecer em seu lugar, sustentando com sua presença a situação no tempo, em um manejo que confirme para o bebê que o mundo se mantém presente e vivo sempre que ele quiser entrar em relação. É a repetição regular desta experiência que vai criar no bebê a possibilidade de confiar no mundo e em si mesmo.

Com o apoio de condições facilitadoras, torna-se possível lançar mão de defesas e táticas de proteção que pressupõem a elaboração simbólica das ansiedades que surgem no contato com o real. Em contraste, o fracasso da aquisição do sentido de realidade, que confere consistência ao existir, ocorre quando o ambiente falha no desempenho da  função de apoio e proteção. Abre-se então espaço para uma imposição vinda da realidade externa,de tal maneira violenta que o bebê é obrigado a reagir. Na visão winnicottiana, o trauma se refere a essa imposição do ambiente e a uma reação do indivíduo à imposição, antes que haja um desenvolvimento de mecanismos que possam tornar “previsível” o imprevisível, ou suportável o que seria antes insuportável. Winnicott marca a antítese entre os termos ser e reagir, afirmando que o reagir aniquila o ser, originando ansiedades impensáveis: despedaçar-se, cair para sempre, desorientar-se, isolar-se completamente por não existirem meios de comunicação (WINNICOTT, [1963]1994).

Podemos entender que o trauma para Winnicott implica uma associação entre a imposição do ambiente e a reação do indivíduo ao meio. Essa conjuntura é estabelecida no campo da imprevisibilidade. O trauma se configura por um estímulo frente ao qual  o individuo não possui defesa estruturada, por uma falha que não é esperada. Dessa forma, o evento traumático é estabelecido antes do desenvolvimento de mecanismos que tornam previsível o que é imprevisível. A imposição, na qual Winnicott se refere quando define o conceito de trauma, deve ser entendida da mesma maneira como compreendemos a ideia de ruptura na linha de vida. Ou seja, o ambiente se impõe de forma a romper a preservação e continuidade do ser.

Considerações finais

Em 1908, Freud estabelece uma relação entre o tempo e a fantasia. Nessa relação, ele afirma que a fantasia flutua entre os três tempos (presente, passado e futuro), uma vez que todo trabalho psíquico está ligado a uma impressão atual que retrocede à lembrança de uma experiência vivida anteriormente, criando, assim, uma situação futura que representa a realização de um desejo, através do devaneio (ou fantasia). É importante notar, como apresenta Freud, que as molas propulsoras da fantasia são os desejos insatisfeitos, sendo a fantasia, por esse motivo, a correção de uma realidade insuficiente para o sujeito.

A doença orgânica estabelece este tipo de realidade insatisfatória. O diagnóstico de uma doença sem cura vai mais além, pois tanto cria esta condição para a realidade do sujeito, quanto estabelece uma ruptura temporal. No caso da aids, essa ruptura é marcada pelo contato com o diagnóstico mortífero. Porém, ao se perguntar quanto se vive? é interessante perceber que o próprio discurso que aponta para um fim, também aponta uma saída, uma possibilidade de vida. Mas essa possibilidade, de início, vem acompanhada de culpa; uma culpa que precisa ser escutada tanto pelo terapeuta quanto pelo próprio paciente. Desmistificar o imaginário da aids é um tanto complexo, uma vez que é um discurso social incutido na moral que todos nós carregamos. A aids enquanto doença do outro, ainda aponta um sujeito estranho, aquele que extrapola uma sexualidade que não pode ser mostrada publicamente.

Outros questionamentos podem surgir a partir dessa discussão. Ao pensarmos sobre o tempo (da aids, do diagnóstico, da internação, da vida e da morte…), devemos levar em consideração que existe, intrinsecamente relacionado a ele, um espaço. Dessa forma poderíamos nos perguntar onde se vive? (qual é o lugar do paciente de aids?). A experiência hospitalar que dá suporte a este trabalho, ainda mostra o hospital como um lugar de segregação. Além de estar assujeitado a um modelo de saúde que o despersonaliza, o sujeito é submetido a um não-lugar, um espaço que deveria oferecer condições dignas para a permanência do sujeito durante a internação, mas que não oferece.

É necessário que as práticas profissionais deem conta dessas demandas. É preciso oferecer um lugar para a fantasia do sujeito, para que dessa forma, ele possa (res)significar seu diagnóstico; para que ele possa dispor de dispositivos que lhe assegurem qualidade de vida. Um lugar suficiente onde o desejo possa ser escutado. Nesse lugar, o tempo de cada sujeito é primordial, e precisa ser levado em consideração. Podemos, então, apontar um terceiro questionamento: como se vive? – diretamente relacionado a esse tempo-espaço. Podendo o tempo ser derretido, ele se transforma em poesia, que, mesmo escorrendo por entre nossos dedos, pode ser apreendida e dotada de significado.

Assim, pensar o tempo na clínica da aids, é associá-lo ao trauma sexual reatualizado no diagnóstico; à culpa que acompanha esse diagnóstico, justamente pelos aspectos morais de nossa educação social; aos novos rearranjos subjetivos que o sujeito precisará criar; à impotência diante da morte, tanto por parte do paciente quanto do profissional que o acompanha. Enfim, esse tempo não conceitual, que se apresenta em um paradoxo, precisa ser encarado como a possibilidade que se apresenta ao sujeito de que a aids é uma barreira a esse percurso do tempo, mas que se não houver algo que tampe a lacuna que interrompe o fluxo contínuo do próprio tempo, este será apenas um resto, aquilo que sobra de uma divisão.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Agostinho. Confissões. Porto: Apostolado da Imprensa, 1984.
Freud, S. (1908). Escritores criativos e devaneio, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume IX: 135-148. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
_______ (1915). O Inconsciente. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume XIV:163-222. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
_______ (1920). Além do princípio de prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume XVIII:11-76. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Winnicott, D. W. (1975). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In D. W. Winnicott, O brincar e a realidade (J. O. A. Abreu & V. Nobre, Trads., pp. 13-44). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1953)
_______________ (1978). Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto psicanalítico. In D. W. Winnicott, Da pediatria à psicanálise (J. Russo, Trad., pp. 374-392). Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Original Publicado em 1955)
_______________ (1988). Natureza  humana. Rio de Janeiro: Imago.
_______________ (1994). O medo do colapso. In: Winnicott, C; Shepard, R e Davis. M. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Original publicado em 1963).

__________________
Recebido:20/09/2012
Aceito: 25/11/2013

| ©2012 - Polêm!ca - LABORE | Contato (@) | <-- VOLTAR |