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MÍDIA E RELIGIÃO: ANÁLISE INTERSEMIÓTICA DE UMA POLÊMICA

Hélio de Oliveira


Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar discursivamente uma polêmica, tomando como base os preceitos teóricos da Análise do Discurso de orientação francesa, em especial, Maingueneau (2008). Entende-se que a materialidade discursiva não se compõe apenas de “palavras”, mas também de elementos pertencentes a outros domínios semióticos (pictórico, musical etc.) que são mobilizados para marcar posicionamentos pró e contra um determinado tema, neste caso, uma polêmica envolvendo suposta lavagem de dinheiro por meio de uma religião neopentecostal. O corpus é constituído de imagens coletadas em duas revistas que trataram da citada polêmica e as principais conclusões dizem respeito ao enriquecimento do processo de leitura/interpretação do texto quando se enxerga as imagens como prática discursiva e intersemiótica.
Palavras-chave: discurso; polêmica; Revista Veja; Igreja Universal
 
MEDIA AND RELIGION:
AN INTERSEMIOTIC ANALYSIS OF A POLEMIC EVENT

Abstract: This paper presents a discursive analysis of a controversy, based on the Discourse Analysis theories, especially Maingueneau (2008). We understand that the discursive materiality is not composed only by "words", but also by elements from other semiotic domains (pictorial, musical etc.), mobilized to mark positions for and against a particular issue, in this case, a controversy involving alleged corruption of a neopentecostal religion. The corpus is made of images from two magazines which noticed the polemics. The main conclusion concern to the improvement of reading process when the images are seen as a discursive and intersemiotic practice.
Keywords: discourse, polemics; Veja Magazine; Universal Church;

Introdução

Analisar polêmicas implica a observação do que há de mais essencial nos discursos: sua própria identidade. Dificilmente se mantém uma posição “neutra” frente a um tema polêmico, uma vez que os posicionamentos aparecem de maneira bastante marcada nas discussões suscitadas. Com base na Análise do Discurso de linha francesa, este artigo analisa um evento polêmico que envolveu uma religião neopentecostal, tomando como objeto as imagens veiculadas em duas reportagens que noticiaram o caso.
Em agosto de 2009, os principais veículos da mídia brasileira noticiaram a abertura de inquérito por parte do Ministério Público de São Paulo contra o bispo Edir Macedo, líder-fundador da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Segundo a revista Veja (2009, p. 85), o bispo foi acusado de aproveitar-se da imunidade tributária assegurada às igrejas para burlar o Fisco em benefício próprio, desviando o dinheiro dos fiéis para empresas particulares, em vez de usá-lo em obras de caridade e outras atividades filantrópico-religiosas. Ainda de acordo com a revista, as acusações se estendem a mais nove pastores subordinados a Macedo e envolvem lavagem de dinheiro através de grandes somas enviadas a paraísos fiscais como as Ilhas Cayman, além do superfaturamento na venda de horários por emissora de TV (Rede Record), também pertencente à Igreja Universal.
Por sua vez, o bispo, após declarar-se inocente (revista Plenitude, 2009, p. 36), classificou as acusações como perseguição religiosa movida por inimigos da igreja e concorrência desleal na forma de difamação movida pela Rede Globo de televisão contra a Record, com quem disputa audiência. A repercussão nos diferentes segmentos da sociedade, em alguns casos, tomou ares de conflito entre divino vs. terreno, sagrado vs. profano, bem vs. mal, embora o pertencimento a essas categorias não fosse, em nada, óbvio.
Cabe ressaltar que nossa análise não objetiva saber o “certo ou errado” no aspecto legal, muito menos religioso. Antes, nosso olhar se dirige ao aspecto discursivo que a polêmica explicitou. De acordo com a teoria interdiscursiva na qual nos apoiamos, não é um fato exterior ao discurso (por exemplo, a publicação de notícia envolvendo um escândalo) que funda a relação polêmica, mas todo discurso já se encontra desde sempre assim relacionado com seu Outro antagônico. 

Aproximações teórico-metodológicas

Para analisar a polêmica em questão, recorremos à noção de prática intersemiótica proposta por Maingueneau (2008a) como embasamento teórico principal. O corpus é constituído por uma edição da revista Veja cuja matéria de capa noticia a polêmica e pela “resposta” ao fato, veiculada na revista Plenitude , publicação oficial da igreja envolvida. Procuramos investigar até que ponto as imagens (fotos, ilustrações etc.) presentes em cada revista se exprimem, em termos de conformidade, ao mesmo sistema de restrições semânticas que rege os elementos linguísticos e demais planos do discurso. Foi preciso, também, operacionalizar o conceito de interincompreensão regrada (MAINGUENEAU, op.cit.) e a consequente produção de simulacros.
Como nosso enfoque são as imagens que, direta ou indiretamente, fazem referência à polêmica, começaremos descrevendo as capas.


Figura 01. Capa da revista Veja ed. 2126 Figura 02. Capa da revista Plenitude ed. 172


A Veja (figura 01) traz em sua capa a figura de uma bomba prestes a explodir (estopim emanando faíscas), parcialmente visível, dentro de uma sacola idêntica às usadas na Igreja Universal do Reino de Deus durante a coleta de doações financeiras. Estampado na parte frontal, o símbolo da referida igreja: a silhueta de uma pomba branca, notória representação do Espírito Santo. O elemento linguístico acrescenta, grafado em letras maiúsculas: “FÉ E DINHEIRO” e na linha inferior “UMA COMBINAÇÃO EXPLOSIVA”. De certa forma, a capa parece adiantar ao leitor não só a notícia das acusações sobre a IURD, mas alguma forma de “interpretação” do fato, ou, mais além, uma interpretação da relação entre dinheiro e fé.

Por sua vez, a capa da Plenitude (figura 02) mostra uma parede/muro de tijolos em ruínas, típico de uma edificação que enfrentou uma explosão ou outro evento destrutivo. Por trás dessa parede, vê-se uma multidão de pessoas a perder de vista, sob um céu multiestrelado. Em caixa alta, lemos: “ROMPENDO BARREIRAS”, e mais abaixo, a propósito do recente aniversário da igreja: “A Igreja Universal do Reino de Deus completa 32 anos e não para de crescer e transformar a vida de pessoas em todas as partes do mundo”.
Uma das maneiras de entender essas capas é como a expressão de uma prática intersemiótica. Esta noção deve ser pensada a partir da proposta de uma semântica global do discurso, também postulada por Maingueneau, a propósito de sua concepção do interdiscurso. Assim, um sistema de restrições semânticas globais é concebido para reger o interdiscurso, restringindo, simultaneamente, todos os “planos” discursivos: vocabulário, temas, intertextualidade e as instâncias da enunciação (MAINGUENEAU, 2008a, p. 22).  Segundo o autor, constata-se que: a) o discurso não deve ser pensado somente como um conjunto de textos, mas como uma prática discursiva, através da qual o sistema de restrições semânticas torna os textos comensuráveis com a “rede institucional” de um “grupo”, que a enunciação ao mesmo tempo supõe e torna possível (idem, p. 23);  b) a prática discursiva também pode ser pensada, de maneira mais abrangente, como uma prática intersemiótica que integra produções pertencentes a outros domínios semióticos (pictórico, musical etc.), dessa forma, o mesmo sistema de restrições que funda a existência do discurso pode ser igualmente pertinente para esses outros domínios (ibidem). A prática intersemiótica deve ser considerada, em consequência, como a manifestação de uma mesma semântica em outros planos que não o estritamente linguístico-textual.
No caso das capas das revistas, as imagens são importantes não só por serem praticamente imprescindíveis nesse tipo de suporte/veículo midiático, mas, também, por constituírem indícios de duas semânticas globais manifestadas num outro plano discursivo – cada capa inscrita numa formação discursiva correspondente. 
À guisa de explicação (e correndo o risco de simplificar), podemos dizer que a Veja procura criar uma representação negativa do fato noticiado e, consequentemente, da igreja, enquanto a Plenitude, uma representação positiva. A imagem da bomba (figura 01) remete à destruição iminente, ao colapso, à ruína, associando essa conotação às práticas financeiras e religiosas da IURD, afinal, a bomba está ocupando o lugar destinado ao dízimo. Por outro lado, a multidão que surge por trás da parede semidestruída (figura 02) ilustra a autoproclamada imensa força da igreja, que mesmo após um ataque (ou justamente por isso ) continua crescendo e, segundo seu próprio julgamento, beneficiando a vida de pessoas em todas as partes do mundo. Em outras palavras, de acordo com a capa de Plenitude, ataques podem acontecer, mas não abalam em nada o status da IURD. Nesse sentido, é interessante notar a ilustração do céu que cobre a multidão: suas estrelas não têm aquele brilho comum, visível a olho nu, mas estão cheias de fulgor, semelhantes a galáxias. Essa caracterização parece elevar o céu a um patamar superior, divino. Não nos parece exagero dizer que, segundo essa semântica, o céu luminoso denota orientação divina, o que significa, portanto, que a IURD é guiada por Deus e os interesses dela são de ordem espiritual, superiores.
Assim, podemos mais uma vez resumir as imagens das capas, levando em conta, agora, a semântica global que cada uma delas começa a revelar: uma tentativa de rebaixamento da IURD por parte da Veja e uma tentativa de enaltecimento da IURD por parte da Plenitude. Dando mais um passo, dizemos, então, que se tornam visíveis os dois eixos semânticos primitivos que norteiam as práticas discursivas e intersemióticas de ambos discursos: os semas /enaltecimento/ vs. /rebaixamento/. É em torno desses eixos que vai girar a enunciação referente a qualquer plano discursivo, inclusive o imagético: nas palavras de Maingueneau, a exploração sistemática das possibilidades de um núcleo semântico (2008a, p. 62). O primeiro remete ao “divino”, o segundo, ao “humano”.

Os simulacros discursivos
Para entendermos as imagens como simulacros, precisamos entender melhor os mecanismos discursivos que tornam possível essa produção.
Quando o espaço discursivo é considerado como uma rede de interação semântica, segundo Maingueneau, define-se um processo de interincompreensão generalizada, a própria condição de possibilidade das diversas posições enunciativas (2008a, p. 99). Isso significa que, entre as várias posições enunciativas, não há dissociação entre enunciar conforme com as regras de sua própria formação discursiva e “não compreender” o sentido de enunciados do Outro; a cada posição discursiva se associa um dispositivo que a faz interpretar os enunciados de seu Outro traduzindo-os nas categorias do registro negativo de seu próprio sistema (MAINGUENEAU, 2008a, p. 99).
Assim, o mesmo só compreende seu outro através de um simulacro que dele constrói, de uma espécie de imagem distorcida na qual, o outro, por sua vez, jamais se reconhecerá. Esse processo de interpretar/produzir enunciados a partir de sua própria formação discursiva acontece graças a um modelo de competência (inter)discursiva. Explicando essa noção, Possenti diz que, contra a intuição cognitivista, a competência interdiscursiva não se caracteriza pela capacidade de enunciar em vários discursos, mas pela de produzir um discurso e pela de produzir simulacros do antagonista, a partir das restrições do discurso de origem (2009, p. 159).
Dessa forma, chegamos às imagens-simulacro que, a nosso ver, são exemplos da prática discursiva (e intersemiótica) dos enunciadores que se fazem presentes no texto de cada uma das revistas. As imagens são também, enquanto reflexo/produto da interincompreensão constitutiva de seus discursos, exemplos da competência discursiva em ação.

Figura 03.  Veja, edição 2126, p. 84   Figura 04.  Plenitude, edição 172, p. 05


 Na figura 03, vemos a foto que estampa a primeira página da reportagem da Veja. Antes de ler a matéria, é primeiro com essa imagem que o leitor faz contato: um destaque do rosto de Edir Macedo, ocupando quase toda a página, com uma expressão de satisfação mal contida, aparentando malícia. O olhar do bispo fita algo/alguém à distância, ganhando ares de predador, um predador avaliando a presa – e antegozando o saldo da caça. De acordo com as teorias até aqui expostas, classificamos o retrato como um perfeito simulacro da imagem devota, humilde e cândida que a Plenitude (figura 04) veicula. Ali, ele usa óculos e seus olhos estão semicerrados. A cabeça, de perfil, queda-se à frente, numa postura próxima de quem lê, talvez a Bíblia, ou ora em silêncio. Não se esboça nenhum sorriso e a expressão facial é de seriedade, concentração. Interessante notar que até a luz que incide em sua fronte colabora para criar uma atmosfera de santidade, reverência e, portanto, inocência. Com isso, podemos identificar também mais dois semas ligados ao eixo semântico central “rebaixamento x enaltecimento”: “culpabilidade x inocência”.

Considerações finais
A principal constatação a que chegamos é o imenso enriquecimento do processo de leitura/interpretação do texto quando começamos a enxergar as imagens como prática intersemiótica, inseridas numa semântica global. Considerar a polêmica pelo viés da interincompreensão constitutiva também deu ao que parecia óbvio, contornos inauditos.
Percebemos, em suma, que a visão envolve algo mais do que o mero fato de ver ou de que algo seja mostrado (DONDIS, 1997, p. 13). Em vista disso, estamos convencidos da necessidade cada vez maior de teorias que se interessem em articular elementos verbais e não verbais, como as apresentadas em Gênese dos Discursos.  Num mundo dominado pelas novas tecnologias, onde as imagens ocupam cada vez mais espaço e relevância, é mister aproximar áreas do saber, nas palavras de Maingueneau, fazer contato entre as disciplinas. A Análise do Discurso parece ser, por excelência, aquela que pode consumar essa aproximação, acostumada que está a trabalhar com fronteiras e cruzamentos. De nossa parte, continuaremos a explorar essas possibilidades.

REFERÊNCIAS
DONDIS, D. A.  Sintaxe da Linguagem Visual. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 
MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. São Paulo: Parábola Editorial, 2008a.
____________ Cenas da enunciação. São Paulo: Parábola Editorial, 2008b.
____________ Doze conceitos em Análise do Discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. 
MOTTA, A.R. & SALGADO, L. (org) Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008.
POSSENTI, S. & BARONAS, R.L. (org) Contribuições de Dominique Maingueneau para a análise do discurso do Brasil. São Carlos, SP: Pedro e João Editores, 2008.
POSSENTI, S. Os limites do discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

Recebido em: 17/12/2012
Aceito em: 23/09/20132

1- A análise das imagens é parte de um trabalho de pesquisa maior, ainda em desenvolvimento, que inclui a mesma polêmica.
2-Edição 2126, 19 de Agosto de 2009, p. 84-96.
3- Edição 172, Setembro de 2009, p. 08-13 e 36-46.

4-Sírio Possenti, ao traduzir Gèneses du Discours, diz, na apresentação da obra, que o cerne de todo o trabalho de Maingueneau, é a rigorosa implementação da ideia de que o interdiscurso precede o discurso (MAINGUENEAU, 2008a, p. 09).  Ao propor o primado do interdiscurso, o autor francês concebeu essa importante noção como espaço de regularidade pertinente, do qual diversos discursos são apenas componentes. Em termos de gênese, isso significa que esses últimos não se constituem independentemente uns dos outros, para serem, em seguida, postos em relação, mas se formam de maneira regulada no interior do interdiscurso (idem, p. 21).

5-Palavras do bispo Domingos Siqueira, responsável pela IURD no Pará, num depoimento datado 19/08/2009: “Damos graças a Deus por essa perseguição. É motivo de alegria trilhar o mesmo caminho dos grandes homens de Deus no passado, que foram caluniados por amor a Cristo” (site www.folhauniversal.com.br, acesso em 12/10/2012). Colocando-se na posição de mártires, os líderes da IURD procuram se aproximar do sofrimento sacrificial típico dos ideais cristãos.

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