HUMBERTO IVAN KESKE
Doutor em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS. Professor de Graduação, Mestrado e Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Comunicação e Cultura da Universidade Feevale, de Novo Hamburgo (RS).
VINÍCIUS MOSER
Graduado em História pela Universidade Feevale em Novo Hamburgo (RS). Mestre em Processos e Manifestações Culturais, pela mesma instituição. Tutor no setor de Educação a Distância na Universidade Feevale.
Resumo: Este artigo analisa de que forma o futebol, através dos meios de comunicação de massa, especialmente a televisão, alimenta e reforça o conceito de mito, na contemporaneidade. Como conceituação de mito, será utilizado o pensamento de Silvia Anspach (1998). Esta autora se vale principalmente da TV, para apresentar uma determinada ideologia, que é a do entretenimento, do “mito do herói”.
Palavras-chaves: Mito, futebol, mídia, televisão.
MYTH, IDEOLOGY AND CONTEMPORARY MEDEA IN FOOTBALL
Abstract: This article examines how the football through the mass media, especially television, feeds and reinforces the concept of myth in contemporary times. How conceptualization of myth, will use the thought of Silvia Anspach (1998). This author relies primarily on TV to present a particular ideology, which is the entertainment, the "hero myth".
Key-words: Myth, football, media, television.
A palavra mito possui uma origem difusa e que se perde na constituição do conceito que procura definir. Em outras palavras, mithós, que é a transliteração do grego antigo (μυθος), significa uma narrativa de caráter simbólico que se relaciona a uma dada cultura. O mito procura explicar a realidade, os fenômenos naturais, as origens do mundo e do homem por meio da existência de deuses, heróis e lendas que constituem a enciclopédia da cultura.
Acontecimentos históricos podem se transformar em mitos, desde que adquiram uma determinada carga simbólica que seja referencial de uma cultura. Este termo está relacionado aos relatos ou narrativas de civilizações antigas que, organizados sob um pretexto geralmente didático com fins sociais, constituem uma mitologia, entendida como o estudo do mito ou de um conjunto de mitos, como por exemplo, a mitologia grega e romana.
Aqui, será trabalhada uma noção de mito cuja origem emerge, ao contrário das tradições históricas clássicas, da cultura contemporânea, repleta de aspectos ideológicos, multiculcurais e heterogêneos conflitantes. Atualmente, o surgimento do mito está interligado a uma cultura massiva que, de alguma forma, o produz, o coloca em circulação e o recebe, dando-lhe sustentação, até o momento de ser (re) interpretado novamente e retornar ao ciclo das releituras históricas e sociais.
Neste contexto, adota-se a perspectiva de Silvia Anspach (1998), para quem o surgimento de mitos está indissociavelmente ligado ao multiculturalismo, cada vez mais evidente na atual sociedade da era pós-industrial, à mídia, e a determinadas ideologias que, veiculadas por essas mídias, adquirem contornos que escapam ao mote de espectro, primevo e essencial, normalmente atribuído ao mito.
Esta autora trata do assunto, afirmando que os mitos não surgem no vazio, mas sim, em condições históricas, sociais, culturais e políticas específicas, colando-se à variedade de óticas e perspectivas que estilhaçam a civilização em um mosaico de possibilidades, tecendo um sistema global de natureza multicultural, dialógica e babélica. Segundo esta autora, deve-se pensar o mito a partir da mídia, do multiculturalismo que lhe é próprio, que lhe sustenta, tentando visualizar as relações desconexas que o fenômeno muitas vezes apresenta. Conforme veremos, com o futebol não será diferente.
Assim, não se pode desprezar o impacto causado pela mídia, enquanto reguladora de relações sociais assimétricas. “A mídia produz mitos e fenômenos culturais ao mesmo tempo em que é informada por eles”. (ANSPACH, 1998, p. 146). Deste modo, pode-se estabelecer um triângulo de forças ora antagônicas e ora complementares, surgidas a partir da relação extremamente complexa entre multiculturalismo, mídia e mito. Sendo que cada um destes pólos termina interagindo entre si. Neste sentido,
Falar em multiculturalismo implica tanger a questão da globalização, a das culturas enquanto fatos a um só tempo plurais e singulares, a da soberania do fragmento ou do culto ao simulacro, a da dispersão ou do niilismo, a da busca de novos sentidos e valores, a da crise da linguagem e tantas outras que afetam hoje as culturas em particular e suas relações interativas e mundiais (ANSPACH, 1998, p. 146-147).
Na atual sociedade globalizada, envolvida pela dinâmica multicultural contemporânea, cada vez mais se potencializa o papel dos meios de comunicação de massa na construção de mitos que, muitas vezes, se “cristalizam em modismos e clichês”, como adverte Anspach (1998). Acerca deste aspecto, a autora salienta a importância inegável e irrestrita da mídia na dinâmica inter e intra-cultural, que afigura-se como “multifacetada, simultânea e tensional, emergindo ora em contornos claros, ora turvando-se em questionamentos e configuração de problemas”, que reforça, o caráter processual, mutável e plural da mídia, o que termina dificultando uma análise do seu impacto representacional e referencial na sociedade contemporânea. Nestes termos,
Filmes cult, noir, a produção cultural underground, instauram um estado comunicacional de diversidade, esfacelamento e multivariedade. Manifestações midiáticas de cultura minoritárias trazem seus valores e sistemas de referência – antes mantidos dentro dos limites culturais do isolacionaismo – ao tecido da produção e fruição global (ANSPACH, 1998, p. 156, grifos da autora).
Em outras palavras, é nesta mediação proporcionada pelo multiculturalismo, pela sociedade globalizada industrial e pela ascenção da mídia, seja pela crescente nessecidade de informação ou pela espetacularização de seus produtos culturais, que surge a construção e consolidação do mito, amparado por um contexto histórico específico. Pode-se pensar em uma espécie de “arqueologia da cultura”, como especula Anspach (1998, p. 158) como fenômeno criador de mitos, teríamos “[...] arque, porque princípio dos princípios, instalados desde o começo dos começos e típicos, porque tipos, matrizes, ‘formas sem conteúdo, representando uma mera possibilidade de um tipo de percepção e ação’” (JUNG, 1971, p. 48 apud ANSPACH, 1998, p. 158). Sob esta perpectiva, o desenvolvimento e estabelecimento de mitos estaria relacionado à possibilidade de criação e recriação do homem presente em toda a humanidade, sob a forma de arte, criatividade, transgressão, beleza, religiosidade, etc. Tratar-se-ia de nossa “natureza universal” e, por isto mesmo, tão facilmente maleável e mutável, no tocante às transformações ou interesses, de toda a ordem.
Anspach (1998) ressalta os aspectos ideológicos presentes na relação entre mídia e construção de mitos, enfatizando que a informação pura e simples, neutra e “descomprometida” de um enfoque ideológico simplesmente não existe, posicionamento apoioado no dialogismo, para quem “[...] tudo que é ideológico é um signo e que sem signos não existe ideologia” (ANSPACH, 1998, p. 162). Na âmbito da mídia que opera principalmente com o código verbal, como, por exemplo, o jornal, (ao lado de outros códigos), não podemos nos esquecer de que “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência”. Ou seja, jamais afirmaríamos que a informação deveria ser imparcial e neutramente veiculada, uma vez que a neutralidade absoluta, onde há consciência e linguagem, não existe. Nas palavras de Anspach (1998, p. 163):
Referimo-nos aqui, isto sim, de que a informação, muitas vezes, nem ao menos é veiculada. De acordo com um filtro ideológico, ela poderá ser simplesmente omitida para que uma idealização de natureza, também, é óbvio, ideológica, ganhe credibilidade e se revele cristalina como se fosse uma verdade ou um fato irrefutável, transparente, auto-evidente. Jornais e TV, frequentemente, operam com a ‘informação’ dessa maneira.
Deste modo, esta autora defende que a mídia, de uma maneira geral, constrói um quadro cultural vazio, muitas vezes fundado na vigência intocável da identidade absoluta. Tal quadro evidencia que os meios de comunicação massiva traduzem pareceres não apenas “subjetivos”, mas principalmente, pareceres “ideológicos” que se fazem passar por subjetivos. Anspach (1998) ressalta que a mídia necessariamente não é falsa, mas que muitos de seus enunciados são falsos e apresentam fins claramente mercadológicos e ideológicos.
Neste sentido, o futebol emerge, dentro da discussão acerca da conceituação do mito, enquanto um elemento que pode caracterizar este constructo, e a televisão possui um papel de destaque nesta operação. Como mostra Murray (2000), o futebol tornou-se o maior espetáculo esportivo do planeta, justamente, por causa da divulgação massiva que a televisão desencadeou em escala global, em especial nas últimas três décadas. Dentro deste contexto,
[...] a televisão tornou-se em um elemento indispensável do mundo do esporte, divulgando seus melhores momentos para pessoas que nunca esperariam vê-los ao vivo e ampliando seus piores momentos com imagens que as fotografias preto-e-brabco e as colunas de palavras impressas só podiam revelar parcialmente (MURRAY, 2000, p. 203).
Desta maneira, a mídia poderia servir, por exemplo, como suporte para a expansão do horizonte de consumo de uma série de produtos que, pelo seu apelo subjetivo e dialógico, estariam imunes a juízos de verdade ou falsidade, atrelados a seus próprios propósitos e, consequentemente, estimuladores da criação de um corpo de mitos extremamente forte e convincente. É neste panorama da mídia como um facilitadora do consumo e, por conseguinte, da formação de mitos, que o futebol se insere, dada a sua grande penetração social em termos globais. Penetração esta que conta com o auxílio decisivo da mídia, especialmente a televisão. Configuram-se em exemplos de construção de mitos pela televisão na época contemporânea os jogadores da seleção brasileira de futebol, especialmente, os que conquistaram o último campeonato de 2002, como Ronaldo Fenômeno, Ronaldinho Gaúcho e Rivaldo, como indica Guterman (2009). Assim, a televisão confirma este papel de mitificação dos jogadores de futebol que ascenderam ao estrelato, no Brasil. A formação destes mitos se equivale a constructos, conforme o que se mostra na passagem abaixo:
O mito nesta acepção, não se refere mais, como quereriam, por exemplo, Jung, Campbell ou Eliade, há configurações que captam a força originária, primeva e sempre-primeira dos arquétipos. Corresponde, aqui, a um construto, um conjunto facticioso de símbolos, um sistema comunicacional que, segundo Barthes (1975, p. 136 – 164), ‘não suprime o sentido’, do modelo primeiro sobre o qual se calça, mas antes o ‘empobrece’, afastando-o e conservando-o a sua disposição (ANSPACH, 1998, p. 165, grifos da autora).
Em outras palavras, a transformação da noção de mito, fenômeno primeiro e ancestral ao próprio homem, soma-se o aspecto ideológico gerado pela mídia. O sentido original, não está perdido, mas a ele é acrescentado uma série de outras prerrogativas com objetivos solidamente construídos. O mito passa então a ser visto não mais como essência, mas sim como construção, que serve a uma rede ideológica, social, cultural, política e a interesses de governos e sociedades, sejam elas civis ou militares (ANSPACH, 1998).
Nesta perspectiva levantada pela autora, é como se o mito, atualmente, e da forma como vem sendo contruído, estivesse “acima do bem e do mal”. Por ser construído e se apresentar como “natural”, ele passaria a ser “naturalmente” aceito, sem um julgamento prévio, crítico e até mesmo sensato. Neste panorama, foi possível observar, no decorrer deste texto, que o futebol se configura em um objeto cultural tanto do interesse das massas quanto da elite, visto que consiste em um dos principais elementos de formação de mitos contemporâneos.
Esta concepção tem como um dos seus principais componentes a mídia de massa, especialmente, a televisão. Desta maneira, faz-se necessário, de igual maneira, reforçar o fato de que o futebol, enquanto componente de formação de mitos e de ideologias, vale-se das mídias de massa, sobretudo da televisão, numa perspectiva que entra em consonância com o que Umberto Eco (2004) define em seu pensamento acerca dos níveis de cultura de massa, através de uma interação entre estes níveis.
Referências Bibliográficas
ANSPACH, Silvia. Entre babel e o éden: criação mito e cultura. São Paulo: FAPESP, Annablume, 1998.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1998.
ECO, Umberto. Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva, 1986.
______. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 2004.
GUTERMAN, Marcos. O futebol explica o Brasil: uma história da maior expressão popular no país. São Paulo: Contexto, 2009.
MURRAY, Bill. Uma história do futebol. São Paulo: Hedra, 2000.
Recebido em: 20/09/2012
Aceito em: 20/02/2013
2- Refere-se à Torre de Babel, construção bíblica cuja metáfora está sendo aqui utilizada para explicar a existência de muitas línguas e raças diferentes, co-habitando em um verdadeiro mosaico multicultural e sociológico.