Questões Contemporâneas

ENGENHARIA DE PRODUÇÃO CULTURAL DE SOLIDARIEDADE TÉCNICA: “CABEÇA BEM-FEITA” MAIS DO QUE CHEIA

Heloisa Helena A. Borges Q. Gonçalves é Professora Doutora da UNIRIO/CCET/EP.


Resumo: O título desta comunicação é uma provocação emblemática de Montaigne que ressaltou a primeira finalidade da educação: “mais vale uma cabeça bem-feita do que uma cabeça cheia”. Para Edgar Morin, tal afirmativa poderia ser um “operador totêmico”. O operador foi destacado ao longo desta comunicação e tem como função estimular nos leitores as sinapses das fronteiras multidisciplinares, o diálogo com uma educação contemporânea em engenharia de produção, com foco em produção cultural e entretenimento. Neste sentido, o objetivo deste trabalho é apresentar os primeiros gargalos inerentes a um novo curso de engenharia de produção, nascido do REUNI, em 2008, com turno predominante noturno. As rejeições identificadas são decorrentes de uma análise do discurso obtida por meio de registro e observação participante.
Palavras-chave: educação em engenharia; economia criativa; solidariedade técnica.

PRODUCTION ENGINEERING TECHNICAL CULTURAL SOLIDARITY, "HEAD WELL DONE" MORE THAN FULL

Abstract: The title of this communication is a provocation emblematic of Montaigne pointed out that the first purpose of education: "better a head well done than a full head." For Edgar Morin, such a statement could be a "totemic operator". The operator was highlighted throughout this communication and its role in stimulating the synapses readers, multidisciplinary dialogue with a contemporary education in production engineering, with a focus on cultural production and entertainment. In this sense, the objective of this paper is to present the first bottlenecks inherent in a new course in production engineering, the REUNI born in 2008, with predominant night shift. The rejections are identified arising from a discourse analysis obtained through registration and participant observation.
Keywords: engineering education; creative economy; solidarity technique.

INTRODUÇÃO

No Brasil, surgiram novos cursos de graduação em produção e gestão cultural, o que sinaliza um aumento de novos postos de trabalho, não necessariamente, para, apenas, atender a demanda de exigências e critérios mercadológicos, no âmbito da cultura, artes, entretenimento e lazer. Parece trivial, mas até que ponto seria possível, na prática, articular engenharia de produção com disciplinas de Cultura e Arte?

A criação do Curso de Engenharia de Produção com ênfase em Produção Cultural se insere no contexto de expansão institucional da UNIRIO, em justaposição com o Programa REUNI do Governo Federal, estando em plena conformidade com a legislação competente e com as Diretrizes Curriculares dos Cursos de Engenharia de Produção e articulado com tradicionais Escolas de Teatro, Museologia, Biblioteconomia, Turismo, Educação, dentre outras.

O Currículo Pleno foi concebido em regime de créditos integralizados, no mínimo, em10 semestres letivos, totalizando 3.855 horas de atividades acadêmicas.

O perfil profissiográfico do novo engenheiro de produção é amplo, ligado à cultura e ao entretenimento, na gestão de setores culturais de empresas públicas e privadas. O futuro Bacharel poderá trabalhar em centros culturais, museus, casas de espetáculos, estádios de futebol, produtoras de eventos, organizações e empresas afins, indústrias da criatividade, além de Bancos, e prestar concursos públicos.

Em virtude da realização de eventos de grande porte, e de chamadas de editais para projetos de políticas públicas culturais e Pontos de Cultura vislumbram-se diversas oportunidades de emprego para o novo profissional. E, de trabalho e renda, se o Bacharel optar por ser um empreendedor e dono do seu próprio negócio, especialmente, no Estado e na Cidade do Rio de Janeiro ou fora dela.

Considerando o desenvolvimento e crescimento do setor de mídia e entretenimento e as articulações da indústria cultural com o consumo, com o Estado, e com os Movimentos Sociais, há sim espaço para engenharia de produção em cultura, no Brasil. Além disto, o profissional que atua, hoje, como empreendedor e gestor, no contexto da economia criativa, não costuma possuir formação específica, sendo diversas vezes os próprios artistas que cuidam da administração e detalhes tecnológicos dos eventos nos quais participam.

Assim, a intenção é inovadora, está em operacionalização e trará contribuições para uma lacuna que a indústria criativa precisará sanar: engenheiros de produção para esse nicho de mercado.

O problema, como alertou Morin, é que a especialização de saberes, no caso os da engenharia de produção, eclipsa os diálogos interdisciplinares, multidisciplinares e transdisciplinares... Mas tais diálogos ou monólogos existiriam para quê?

Por ironia, por um lado, para manter a cizânia entre ciências da natureza, exatas e a cultura? Por outro lado, como objeto de debates teóricos? Afinal o status quo se mantém à medida que profissionais monológicos são entregues, conforme Morin, ao mercado, ávidos por praticarem a “tecnociência arrogante” acompanhada de um “humanismo desprezado”, que lhes foi apresentado  e cobrado nas Escolas de formação profissional.

Caberia aqui, destacar, que a engenharia de produção, segundo a Associação de Engenharia de Produção/ABEPRO, em si é multidisciplinar, porém, dentro das tradicionais disciplinas da racionalidade instrumental e quantitativas, não com as disciplinas da racionalidade estética e qualitativas, como são as Artes.

O desafio que está posto para o novo curso, provavelmente, não será o surgimento do novo especialista em engenharia de produção em produção cultural, afinal o Brasil precisa de outras especialidades em engenharia; mas sim a superação das “cabeças-cheias” dos docentes e discentes, que lhes permita se educar, enquanto engenheiros de produção, com mentalidade aberta e polivalente, capazes de engenheirar com a cultura, a economia criativa, a indústria do entretenimento, no sentido mais amplo, e na direção de uma solidariedade técnica.

A economia criativa, a princípio, mostra-se mais favorável à diversidade cultural, pois a ênfase é dada ao pequeno, àquilo que é originário de características locais e à economia informal, e não à produção em larga escala. Além de ser um segmento produtivo, em franca ascensão, produz bens e serviços que utilizam imagens, textos e símbolos, como meio de atrair uma gama de consumidores, a cada dia, mais ampla. Por isso, seria relevante se pensar na prática da solidariedade técnica, ou será que não?

Quais, então, seriam os entraves preliminares nesse novo espaço para a engenharia de produção, oriundo das inserções técnicas no mercado de trabalho dos egressos do novo curso da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO denominado de Engenharia de Produção em Produção Cultural/EPPC?

Daqui a cinco anos, quais seriam os impactos: no mercado de trabalho; na indústria criativa, na indústria da cultura, na economia criativa?

As notas de rodapé que aparecem no artigo, possuem uma chamada numérica no corpo do texto, que deve ser representado assim (1), com negrito mesmo.

Revisitando os conceitos de disciplina e solidariedade técnica

O engenheiro de produção em produção cultural, especificamente, estaria apto a desenvolver projetos visando à gestão de processos empresariais de produção; à gestão de projetos, incluindo, custos, recursos humanos, riscos, e qualidade, no setor cultural e de entretenimento; à promoção de conhecimentos sobre técnicas relacionadas à solução de problemas de ordem da construção civil, som, iluminação, e mecânica em empreendimentos e à gestão de eventos voltados para cultura e entretenimento. Além de habilitado para o desenvolvimento de projetos de sistemas tecnológicos voltados para o apoio aos empreendimentos culturais e de entretenimento. Neste sentido, a disciplina engenharia de produção estaria intrinsecamente e extrinsecamente ligada às disciplinas das Artes. Entretanto, em dois anos de percurso, há entraves – preconceitos – anunciados no contexto acima.  Estudantes e familiares sabedores de que egressos das Escolas de Engenharia de Produção tradicionais, atualmente, são absorvidos por empresas de grande escala, Bancos públicos e privados, empresas de petróleo, e pelo setor de indústria e serviços, vêm colocando em suspenso a relevância do curso. Há sinais de inseguranças e ansiedades quanto à “empregabilidade” do futuro profissional, considerando a EP com ênfase em produção em cultura.  Há solicitações de estudantes que se dizem insatisfeitos com o foco do curso e reivindicam alterações no projeto político pedagógico, que se pretende como inovador.

Aqui, caberia destacar que por engenharia, entenda-se o significado anglo-saxão da palavra, ou seja, ingenius, de gênio, de criador de solução, expert.  E produção não se refere, somente, à transformação de produtos mecânicos, eletrônicos ou elétricos, como ocorre na totalidade das demais engenharias, mas, também, a outras transformações, como a de produção em cultura, em suas diferentes linguagens.

Utilizando-se, por meio da observação participante, uma análise preliminar nos discursos dos estudantes, docentes, técnicos e familiares, chega-se a pistas de que o que está em jogo é a inovação disciplinar, que logicamente incomoda.

Para Morin (2011), disciplina é uma categoria organizadora dentro do conhecimento científico que institui a divisão e a especialização do trabalho e responde à diversidade das áreas que a ciência abrange. Tende à autonomia pela delimitação das fronteiras, da linguagem em que se constitui e das técnicas que elabora e utiliza, e obviamente, pelas teorias que lhe são próprias. As disciplinas possuem uma história e ciclo de vida do nascimento até o esgotamento.

Disciplinas não estão isoladas (ou não deveriam estar), conforme se poderia pensar, embora, muitas vezes estejam mesmo.  A história das disciplinas está diretamente inscrita na da universidade que por sua vez está inscrita na história da sociedade. Logo, nascem não apenas de um conhecimento e de uma reflexão interna sobre si mesma, mas também de um conhecimento externo. Quando os sete professores doutores idealizaram o curso para o REUNI utilizaram o conhecimento externo, no sentido de que havia no Rio de Janeiro três consagrados cursos de EP em instituições públicas, entretanto, nenhum noturno e nenhum com a nova proposta que foi cunhada a partir das Escolas da UNIRIO.  Contudo, quando se elabora um projeto político pedagógico (PPP) de um novo curso, até que ponto há compreensão do que significa disciplina e suas interelações inovadoras? Até que ponto os gargalos na passagem do que foi escrito no PPP estarão identificados e presentes no desenvolvimento dos conteúdos, em suas superações e atualizações nas ementas do curso; na disposição dos docentes a dialogarem (ou não) com um novo conteúdo multidisciplinar e extradisciplinar; na determinação dos discentes no estudo para qualificar a própria formação?

Caberia aqui destacar um parêntese. Na educação universitária moderna, espaços livres para estudo são raros, considerando o número de disciplinas que constam nos PPP para integralização dos cursos. Além disso, trabalhos de campo extensionistas são incipientes nos cursos de EP, devido, também, à sobrecarga de créditos presenciais em sala de aula.

Todavia, conforme Morin. “não se trata de reformazinhas isoladas que camuflam ainda mais a necessidade da reforma de pensamento” (p.99). Há que se operacionalizar a reforma de pensamentos, isto é “Cabeça Bem-Feita”.

Retomando, até que ponto, ao primeiro sinal de insatisfações ou pressões de estudantes – que desde cedo estão a reboque passivo do que ditam as oscilações do mercado, e não na proatividade de seu desenvolvimento profissional e pessoal (assumir sua própria educação), o que é bem diferente – o Núcleo Estruturante do curso de “cabeça bem cheia” e “Cabeça bem-feita” se renderão (ou não) ao conservadorismo, reformatando o PPP do curso às tradicionais referências dos cursos de EP?

O significado do termo “Cabeça bem cheia”, segundo Morin, é uma cabeça onde o saber é acumulado, empilhado, e não dispõe de um principio de seleção e organização que lhe dê sentido.  Mesmo que por brios acadêmicos se negue tal afirmativa, é obvio que há resistências inacreditáveis a esse tipo de reforma. A citação a seguir é forte. Mas      quem ousaria afirmar que não é bem assim?

“A imensa máquina da educação é rígida, inflexível, fechada, burocratizada. Muitos professores estão instalados em seus hábitos e autonomias disciplinares. Estes, como dizia Curien, são como os lobos que urinam para marcar seu território e mordem os que nele penetram. Há uma resistência intrusa, inclusive entre os espíritos refinados. Para eles o desafio é invisível” (MORIN: 99).

Então, não será trivial a manutenção do novo curso de EP dentro dos moldes em que foi cunhado. Afirmou Morin “não basta, pois, estar por dentro de uma disciplina para conhecer todos os problemas aferentes a ela”. O olhar extradisciplinar e abertura são necessários. A educação deveria favorecer (mas nem sempre consegue) a aptidão natural da mente para colocar e resolver os problemas e, estimular o pleno emprego da inteligência geral.

Na direção do “ótimo inimigo do bom”, que emergiu na análise preliminar dos discursos, é a questão da escala no modelo mental “engenharia para grandes empreendimentos”, nos moldes da economia do modelo liberal. No entanto, a economia criativa e estudos como o da Cauda Longa, destacam os pequenos empreendimentos culturais e de entretenimento, que também são desenvolvidos em comunidades com vulnerabilidades plurais.

Sendo assim, como superar a “cabeça-cheia” para além do utilitarismo do mercado? Para além da vantagem competitiva nos moldes de Porter? Haveria uma luz no final do túnel? Qual seria? Para quem tem “cabeça bem-feita” este seria um desafio a equacionar.

Conforme Lianza, Addor e Carvalho (2005), solidariedade técnica é a responsabilidade recíproca, construída a partir do diálogo livre e qualificado entre os atores da Sociedade, Estado, Capital, que enseja o surgimento de inovações sociais e tecnológicas, para um desenvolvimento social e solidário, baseado na paz, na democracia, e na justiça social.

A prática da solidariedade técnica, bem como sua inserção nos projetos de engenharia de produção cultural, contribuiria (ou não) para que os futuros engenheiros de produção viessem a atuar no nicho dos pequenos produtores, que se vislumbra na economia criativa, com um novo modo de produção. Ou, trabalhar em pequena escala e com princípios de solidariedade técnica não seria interesse dos egressos, já que o modelo mental enraizado se baseia no individualismo e na competição exacerbada?  “Trabalho bacana” só nas grandes indústrias e redes de televisão e Bancos privados?

Na direção de uma (in) conclusão

O destino do novo curso de engenharia de produção em produção cultural poderá girar em torno do “buraco negro” que é invisível para aqueles que estão diretamente e indiretamente engajados no Projeto Político Pedagógico (PPP) e, sobretudo, sem consciência do que significa: currículo.

Uma esperança ativa de uma mudança transformadora, no que tange às resistências já anunciadas ao novo curso de EP, seria o reconhecimento amadurecido dos docentes, discentes e familiares de que não se pode manter um curso inovador sem reformar a instituição na qual está inserido, nem sem uma prévia reforma das mentes departamentais; mas não se podem reformar as mentes, sem uma prévia reforma das instituições. “Tal impossibilidade lógica, se não for criativamente rompida, poderá produzir um duplo bloqueio”. E aí o curso estaria em risco de sobrevivência. Ou será que não?

Uma contradição irônica/poética, neste cenário, é que o mercado da indústria criativa aguarda a conclusão do curso dos primeiros egressos da engenharia de produção cultural da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO ... que hoje o estão rejeitando e terão no certificado de graduação o título “engenheiro de produção”.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDERSON, Chris. A Cauda Longa. Rio de Janeiro: Editora Campus/Elieser, 2006.
GIRARDI, B. A., GONÇALVES, H.H.A.B., GIRARDI A. O.  Reflexões sobre a criação do curso de engenharia de produção cultural e sua relevância social e econômica. Anais do XL Congresso Brasileiro em Educação em Engenharia - COBENGE. Belém do Pará, 2012.
GONÇALVES, H.H.A.B. LIANZA, Sidney. Engenharia e solidariedade técnica é possível? Anais do XIII SIMPEP - Bauru, SP, Brasil, 06 a 08 de novembro de 2006.
LIANZA,S., ADDOR. F., CARVALHO V. (orgs) Solidariedade Técnica: por uma formação crítica no desenvolvimento tecnológico. Tecnologia e Desenvolvimento
Social e Solidário. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005.
MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita, repensar a reforma e reformar o pensamento. 19ªed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.2011.
PORTER, Michael E. A Vantagem Competitiva das Nações. Rio Janeiro: Campus, 1989.
PROJETO DE PESQUISA Engenharia de produção cultural de solidariedade técnica em redes de cooperação colaborativas de inovação multidisciplinares. Inscrito na Plataforma Brasil nº 048306120.0000.5285.

PROJETO POLITICO PEDAGÓGICO DO CURSO DE ENGENHARIA DE PRODUÇÃO (ÊNFASE EM PRODUÇÃO EM CULTURA), reunião do Conselho do CCET em 12 de novembro de 2008.

 

Recebido em:16/10/2012
Aceito em: 16/04/2013

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