Desenvolvimento Humano

RESISTÊNCIA E RISO EM TEMPOS DE CATÁSTROFE

PEDRO SOBRINO LAUREANO é Mestre em Psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ; Doutorando em Psicologia Clínica pela mesma instituição; Membro da SPID/Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle.


Resumo: Pretende-se, neste artigo, discutir a atual crise do meio ambiente e do capitalismo, no âmbito social e subjetivo. Através de uma leitura que transita entre a filosofia e a psicanálise, buscamos apresentar algumas ideias que permitem entrever, para a atual conjuntura, o delineamento de uma ética e de uma política possíveis. Para tal empreitada, selecionamos os seguintes pensadores: Karl Marx, Fredrik Jameson, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Antonio Negri e Michael Hardt. Será na confluência de suas ideais que buscaremos esboçar novos sentidos da ética.
Palavras-chave: capitalismo; crise ambiental; inconsciente; subjetividade.

RESISTANCE AND LAUGHTER IN TIMES OF CATASTROPHE

Abstract: We intend to discuss, in this article, the capitalist and environmental crises of today´s world. Our reading goes betweenphilosophy and psychoanalyses, searching to present some ideas that allow us to foresee, in the current conjuncture, the contours of a possible ethical and political approach to a world shattered by the environmental and capitalist crises. For this proposal, we have selected the following thinkers: Karl Marx, Fredrik Jameson, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Antonio Negriand Michael Hardt. In the confluence of their ideas we search to construct new senses of an ethics for today´s world.
Keywords: capitalism; environmental crisis; unconscious; subjectivity.

Vivemos, atualmente, os choques de duas crises, concomitantes, indissociáveis, a capitalista e a ambiental. A primeira diz respeito à subjetividade, ou seja, as nossas formas de desejar, de se relacionar, de produzir. A segunda é consequência desta. A racionalidade econômica do capitalismo contemporâneo – aquele que Marx anteviu como o da subsunção real e Antonio Negri e Michael Hardt denominam Império – teria nos levado ao limiar da catástrofe. Ou seja, da extinção da espécie humana.

Buscaremos desenvolver algumas das direções éticas e políticas que, em nossa opinião, podem resistir ao perigo do catastrofismo, sem, contudo, degenar a possibilidade da catástrofe. Há mais de duas décadas Deleuze e Guattari já diziam: “a situação atual é desesperadora” (Deleuze e Guattari, 1997, p. 108).  Pensamos, entretanto, que este desespero – sentimento talvez demasiadamente psicológico – quando transformado em necessidade e abertura, pode se transmutar em ação política. Ação radicalmente não voluntarista, entretanto, e que tem na crise da imagem antropológica do homem uma de suas vias de constituição fundamentais.

Subsunção formal e real

Comentando a ascensão do capitalismo contemporâneo, no livro Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio (1997), o filósofo Norte Americano Fredrik Jameson nos diz que “o pós-modernismo é o que se obtém quando o processo de modernização e a natureza desaparecem para sempre” (p.102). Jameson se refere à crise daqueles espaços que, na modernidade, ainda constituíam exteriores absolutos em relação ao ocidente europeu. São, segundo Jameson, outros povos e culturas não ocidentais, mas, mais profundamente, a própria natureza e o inconsciente. Na representação moderna, a natureza ainda continha elementos insubmissos à sua apreensão pela razão instrumental, e o inconsciente era a continuação, dentro do homem, desta natureza indomada, insubordinável.

O filósofo segue as teses de Marx que, nos Grundrisse (2011) e no Capital (2010), aponta como tendência interna do capitalismo a subsunção real do planeta. Buscando resolver suas contradições, entre a produção coletiva e a apropriação privada, a super acumulação e o subconsumo, o capital tem, necessariamente, que se tornar global: se expandir por todas as esferas da produção, para além das fronteiras territoriais.“A tendência a criar o mercado mundial está imediatamente dada no próprio conceito de capital. Cada limite aparece como uma barreira a ser superada.” (Marx. 2011, p. 332)

Marx nos diz que, na subsunção ainda formal, o capital se aproveita de forças e relações de produção já existentes. Ele situa historicamente este momento como o da acumulação primitiva, na Inglaterra do século XVII. É quando as terras comuns (commons) cultivadas por camponeses são cercadas.   Grande parte da população, que dependia do cultivo do solo para a sobrevivência, é forçada a migrar para os centros urbanos, num fenômeno que contribuirá para a expansão dos grandes centros comerciais Ingleses, como Birmingham e Londres.

A subsunção formal, então, integra os elementos da produção que já se encontram presentes na sociedade. São os saberes centenários acumulados por artesões, manufaturas, famílias, camponeses... Com o tempo, o capital se apodera por completo do ciclo produtivo, submetendo as  relações de produção e as forças produtivas ao seu único imperativo, o da expansão econômica ilimitada. Trata-se, segundo Marx, da subsunção real: a relação capitalista já não é uma força estranha e violenta, vinda de fora, mas se naturaliza, passando a constituir o horizonte subjetivo e produtivo da existência social.

A necessidade de desenvolvimento tecnológico e de racionalidade administrativa transforma as relações de produção. A acumulação abstrata, representada pela famosa fórmula marxiana, D-M-D+ (dinheiro compra a mercadoria para, em seguida, transformar-se em mais dinheiro), substitui o modo de produção das sociedades pré-modernas, ainda pautado pela satisfação das necessidades e pelo consumo do valor de uso, ao final do ciclo da troca.

Na fórmula D-M-D+, “o valor aparece como sujeito” (Marx, 2011, p.243): causa primeira e final do ciclo produtivo. Ele já não é mais meio de troca entre duas mercadorias qualitativamente diversas, mas são as próprias mercadorias que se tornam elementos subordinados à expansão do valor. O valor de uso é capturado nesta operação simbólica que consiste em “sublimar” a necessidade biológica de satisfação em demanda social de produção. Trata-se da demanda de que o valor cresça infinitamente, traçando uma linha virtual de expansão que independe de “contratempos” sociais ou ambientais.

A lógica da racionalidade capitalista se mostra absolutamente irracional, quando se trata da distribuição social da riqueza e da relação com o meio ambiente. Ela busca sujeitar qualquer valor extrínseco ao da expansão econômica. Igualdade, liberdade e fraternidade, certamente, mas também a natureza, como valor comum, commonwhealth dos homens. O indivíduo privado que acumula se torna o grande modelo antropológico a ser reproduzido.

No limite, como nos diz Jameson, a própria natureza e o inconsciente – a natureza em nós, se seguirmos a definição freudiana de inconsciente (Freud, 2006) – devem ser colonizados. Ou seja, a subsunção real não significa apenas um aumento extensivo dos limites territoriais do capital, mas uma mudança qualitativa na forma de organização do sistema. Nossos desejos inconscientes passam a ser peça integrante e solicitada pela máquina de acumulação.

Não há mais fora”

Esta pequena passagem por Marx e pela teoria da subsunção foi necessária para que retomemos estas teses de Jameson. Trata-se, então, desta constatação da colonização do inconsciente e da natureza pelo capitalismo de nossos tempos, o da subsunção real. Os antigos espaços de exterioridade radical, aqueles que se colocavam como lados de fora em relação à matriz antropológica do homem Europeu, teriam sido definitivamente integrados. Mas será que o termo colonização é realmente pertinente, na atual conjuntura? Como falar em colonização se, justamente, não encontramos mais uma alteridade absoluta que poderia ser colonizada?

Para compreendermos as características da integração capitalista na atual fase de subsunção real, podemos nos utilizar de uma tese desenvolvida por Antonio Negri e Michael Hardt, segundo a qual, no mundo de hoje, “não há mais fora” (Negri e Hardt, 2000). Trata-se da constatação, pelos autores, de que o tempo do imperialismo, dos diversos estados-nação em concorrência pela hegemonia financeira, territorial e militar do planeta, teria terminado. O imperialismo seria característico da fase histórica da subsunção formal, onde ainda havia territórios radicalmente exteriores ao capitalismo Europeu. O que temos, agora, é a modulação contínua de fronteiras e territórios, de mercadorias e pessoas, dentro de um mesmo mundo, integrado ao que Negri e Hardt denominam Império.   Não há, então, colonização, já que não há, propriamente, um lado de fora para ser colonizado.

Mas como resistir, neste mundo onde a subsunção real parece nos colocar diante de um quadro asfixiante de dominação? Qual o estatuto, aqui, da exterioridade, ou seja, da possibilidade de resistência radical? Torna-se importante, para nós, procurarmos por esta alteridade que, na época moderna, era representada pela natureza e pelo inconsciente, como espaços da ordem do incontrolável, do intempestivo. Na verdade, estas são exatamente as duas categorias que compõem a crise profunda pela qual passa o mundo contemporâneo: a crise ecológica e ambiental e a crise financeira, que coloca em xeque o próprio modelo antropológico historicamente vinculado ao capitalismo.

De fato, o que se insinua, na subsunção real e no que Negri e Hardt denominam Império, são os contornos deste imenso projeto antropológico de submissão da vida e da natureza à imagem do homem. Trata-se do homem do humanismo burguês que Foucault, no final de As palavras e as coisas (1966), descreveu através da bela imagem de um rosto desenhado na areia. Um rosto histórico e que um dia, portanto, seria apagado.Um projeto da modernidade que tem data para terminar: “Então pode-se apostar que o homem se desvaneceria, como à beira do mar um rosto de areia” (Foucault, 1966, p. 502).

Para Foucault, o projeto antropológico de submissão da natureza e da constituição do homem como “império dentro de um Império” (Spinoza, 2007, p. 161), mais cedo ou mais tarde, terminaria. O homem não é uma realidade última que teria sido descoberta pelos saberes e práticas humanistas da modernidade, mas uma produção relativamente recente de nossa cultura.  Em seu o caso, ele deveria dar lugar a novas formas de se relacionar com o tempo, com o espaço, com a sexualidade, com a produção, com a natureza... Ora, o que vemos, hoje, na subsunção real, é que tal imagem não foi apagada. Pelo contrário, ela talvez tenha engrandecido.

Na imagem criada por Foucault, é o oceano e sua potência de esquecimento que espreita este rosto humano. Será, de fato, que a natureza será a responsável por “apagar” a máquina antropológica ocidental? Que a transformação que não somos capazes de realizar por nós mesmos nos será imposta de fora, e a expansão litorânea dos oceanos, determinada pelo aquecimento global, terminará por apagar os vestígios de nosso narcisismo? Se for assim, a grande transformação pela qual Foucault clamava chegará, ironicamente, através da catástrofe.  Um apocalipse de espécie, onde restará apenas o planeta terra como imenso Corpo-sem-Órgãos (Deleuze e Guattari, 1996), e o homem terá sido uma história de fato esquecida – esquecida porque extinta.

Se for assim, seria nosso, então, o destino dos personagens do filme Melancolia, lançado pelo diretor dinamarquês Lars Von Trier, em 2011, que assistem ao choque de um asteróide contra a terra, acarretando na extinção da humanidade. É o que nos aguardaria como castigo por nosso ímpeto expansionista, por nosso narcisismo antropológico. A profecia de Foucault se realizaria, no contexto mórbido de um cataclisma.

Esta nos parece, entretanto, uma maneira errônea de se defrontar com a crise ambiental e social que vivemos, a crise antropológica determinada pela subsunção real e pelo projeto de dominação da natureza.

Resistências

Criticar o capitalismo em seu potencial destrutivo, que hoje ameaça destruir a espécie humana é, ética e politicamente, necessário, incontornável. Obviamente, todos que acompanham com um mínimo de dignidade e seriedade as discussões científicas sabem que, como espécie, corremos sérios perigos. Alguns dizem que o desastre já teria ocorrido, ou seja, que o modo como vivemos já está drasticamente solapado pelas transformações climáticas impostas pelo capital e pelo produtivismo histérico de nossos tempos(1). O projeto antropológico naufragou no oceano do aquecimento global.

Não queremos duvidar de tais constatações. Pelo contrário, dada à seriedade, política, cientifica e filosófica (as três estão interconectadas) daqueles que nos lançam estes alarmes, ouvimos atentos, ficamos consternados e boquiabertos. Mas será que a catástrofe nos autoriza uma ética do catastrofismo? A catástrofe “objetiva”, embora gerada por fatores subjetivos, deve ser subjetivamente assumida como limite, simbólico e físico, do humano?

Pensamos que não. Imaginemos uma hipótese, relacionada ao destino da humanidade conforme ele é filmado em Melancolia, de que não seriam apenas as condições subjetivas, no marco da atual crise ambiental, que poderiam nos levar à extinção da espécie...

De fato, descartando todas as concepções teológicas a respeito de uma providência divina que teria dado ao homem o papel intermediário entre a natureza bruta e o Ser transcendente, sabemos que o homem é parte da natureza.  Como tal, ele se encontra inevitavelmente sujeito à ação de outras causas que não aquelas que decorrem de sua própria potência de agir e de pensar. É este o argumento que Spinoza defendeu, há mais de 400 anos, em sua Ética (1997, p. 269): sempre há, no universo infinito, uma causa mais forte capaz de superar a nossa, em potência.

A razão nos leva a concluir que uma catástrofe realmente poderia ocorrer, a qualquer momento, independente dos fatores humanos envolvidas em sua determinação.   Ainda que passemos a entreter com a natureza e com os outros uma relação não antropomórfica, que consigamos destituir o projeto megalomaníaco do capitalismo atual, criando democracias reais, deixando de explorar o trabalho alheio, derrubando as hierarquias que nos estriam em classes, raças, etc., poderia ser que, ainda assim, um asteróide caísse sobre a nossa cabeça. Hipótese de ficção científica?

Não, se lembrarmos de que o fato de não sermos, como espécie, seres especiais, nos lança de fato num universo alheio, universo que é, ao mesmo tempo, indiferente e radicalmente diferencial. Tanto mais diferencial e descentrado quanto mais indiferente é ao nosso destino enquanto espécie. O universo natural que somos é mais próximo, de fato, aos relatos de ficção científica do que às imagens apaziguadoras de um todo harmônico e integrado. A “ética” da história é: não esperemos nenhum milagre de nossa alegria terrestre – a não ser esta própria alegria.

Dentro deste marco radicalmente não teleológico, nossa tarefa não é mais a de lamentar a inversão dialética do projeto do Homem naquele da extinção do homem, mas a de radicalizar o anti-humanismo dentro de uma política radicalmente “pós”-humana. Uma ética da alteridade, portanto, onde os outros não sejamos indivíduos com o quais nos deparamos, no mercado, no trabalho, no amor. Trata-se, então, de uma alteridade absolutamente radical em relação àquilo que somos. Alteridade onde a natureza não seria mais um fora a ser conquistado, mas uma diferença absoluta capaz de nos descentralizar de nosso lugar de suposta mestria.

Para dizer com Deleuze e Guattari (2010), natureza e homem se desterritorializam um no outro. A natureza se torna insubmissa às imagens da ciência e da filosofia clássicas, que a caracteriza como sistema mecânico de causa e efeitos. E o homem, por outro lado, deixa de ser este ser estranho ao mundo natural. Tornam-se ambos, natureza e subjetividade, diferenças, singularidades dentro do mesmo plano geo-histórico (Deleuze e Guattari, 1992).

Isto nos leva a propor certas modulações da tese de Negri e Hardt, segundo a qual no capitalismo da subsunção real e do Império “não haveria mais fora”.

Cadê o inconsciente e a natureza?

Certamente, a tese pode ser relativizada. Toda a obra e a intensa atividade política de Antonio Negri e Michael Hardt, a contínua participação e teorização da resistência e a valorização dos movimentos de resistência históricos e contemporâneos (Ocuppy Wall Street, Indignados, na Espanha, Primavera árabe...), mostram que não se trata de anunciar, como emissários do apocalipse, a dominação absoluta e escatológica do capitalismo imperial.

Os autores mesmos nos dizem, comentando a ascensão do Império e descartando qualquer postura catastrofista: “Abandonem os sonhos de pureza política (...) que nos permitiriam continuar fora! Tal reconhecimento niilista, (...) deve ser um ponto de passagem em direção a um projeto ético alternativo. (...)” (Negri e Hardt, 2009, VII).

“Não há mais fora” é apenas a constatação de que não há mais uma alternativa transcendente pela qual se lutar. E que, se a esquerda contemporânea se limitar a lamentar a crise das alternativas utópicas, ela se tornará incapaz de acompanhar as oportunidades abertas, mesmo na fase crítica (catastrófica?) que vivemos.

A captura, pelo capitalismo contemporâneo, da geografia, do inconsciente e da natureza, parece ser de fato quase absoluta. Mas, neste quase reside o essencial.     Se levantarmos o véu do narcisismo antropomórfico, se soubermos escutar para além do discurso oficial dos homens de estado, dos economistas neoliberais e da impressa marrom, o que ouvimos? O ronco incessante do que Deleuze e Guattari (2010) chamaram, em O anti-Édipo (1973), de máquinas desejantes.

O termo, algo datado, não deve nos impressionar. Talvez, antes, ele pudesse nos assustar: ele não nos devolve, de fato, a imagem de natureza e do homem a qual estamos acostumados. Trata-se da produção ininterrupta que a natureza, tendo o homem como parte comum e imanente, realiza. Uma produção que não obedece a qualquer critério finalista, a qualquer necessidade “biológica” de sobrevivência, mas sim ao que biólogos como Humberto Maturana e Francisco Varela chamam de autopoiese (Maturana e Varela, 1980): a capacidade que tem os organismos, como sistemas abertos e criativos, de se reinventarem incessantemente.

Ora, o capitalismo atual se define justamente pela tentativa de se apropriar desta potênciabio-histórica que nos constitui.  O capitalismo, de fato, não mais reparte uma alteridade absoluta em relação à qual ele se opõe, buscando reprimi-la exteriormente.  Ele agora modula a cooperação múltipla e plural dos indivíduos e da natureza. Tudo é permitido. Amplia-se o limite, não mais lhe importa a nacionalidade, a etnia, a sexualidade e o caráter dos indivíduos que produzem, mas apenas a capacidade destes de se constituírem como geradores de valor privado, de se constituírem como sujeitos privados. Ele necessita de um momento de abertura, de descentramento produtivo, para então tornar a se fechar sobre a produção. É apenas aparentemente, então, que julgamos não encontrar no mundo de hoje esta exterioridade absoluta, tal como o inconsciente e a natureza que, na época moderna, apareciam como fora. A exterioridade ainda está aqui, e ela é primeira em relação às tentativas do capitalismo em integrá-la.

Talvez o inconsciente já não pareça ser mais este lugar de radical estranheza descrito por Freud (1930), lugar das pulsões e do que não pode ser inscrito na cultura. E até mesmo a natureza, hoje, também nos parece previsível, calculável, ao ponto em que se torna possível prever nossa própria extinção. Mas a questão, propriamente ética e política, é que a natureza e a subjetividade nunca se deixam integrar totalmente.

Se adotarmos a tese de que o homem é parte imanente da natureza, vemos que ambos, natureza e homem, não constituem a imagem que lhe conferimos habitualmente, tornando difícil qualquer sonho de domesticação. A natureza não é uma sucessão mecânica de causas e efeitos. E o homem não é um indivíduo que deveria subjugar os instintos que lhe habitam como um resto de “natureza”, manchando sua razão ordenadora.   A natureza e o homem são, de fato, uma só e a mesma coisa. Mas esta mesma coisa é radicalmente diferente, o tempo inteiro. Impossível integrar esta outra coisa dentro de qualquer racionalidade abstrata, ainda que modulatória, como no caso do atual capitalismo.

Que a subsunção real tenha colonizado a natureza e a subjetividade significa somente que ele foi “sábio” o bastante para antever, em seus cálculos, os componentes afetivos, cooperativos e imateriais (Negri e Hardt, 2009) que formam a base terrestre da produção social comum. A primazia desta produção não nos devolve a imagem confortável do homem presente nas antropologias modernas. E é ela contínua, sendo aquela que melhor responde àquilo de ético e criativo que nos constitui.

Esta capacidade de criar desvios, bifurcações em relação à ordem dominante, através da luta política, cultural, amorosa, etc., independe de qualquer quadro objetivo de extinção. Pois extintos todos nós estamos, já que temos a consciência de que morreremos um dia, se não como espécie, ao menos como indivíduos.  Parte da filosofia ocidental se pautou no lamento desta finitude para propor seus sonhos de onipotência e emancipação ou, ainda, para cultuar a falta e sucumbir ao niilismo. Pensamos, entretanto, que não é recaindo nestas velhas aporias e crises da razão que poderíamos dar algum sentido à experiência contemporânea, por mais terrível que ela nos pareça ser.

Trata-se de repetir o gesto de Deleuze quando, em Lógica do sentido (2007)  escreve a respeito do acontecimento. O filósofo argumenta que, independentemente das causas e dos efeitos entre os corpos (que, hoje, parecem nos colocar de fato em maus lençóis), o que importa, para a ética e para a política, é saber querer a ferida que porventura portamos. Amar o acontecimento como sentido atemporal, que insiste, além e aquém do tempo empírico e cronológico do estado de coisas do mundo (ou do fim de mundo). Apenas assim seriamos capazes, para Deleuze, de transmutar nossa dor em dança, nossa tragédia em comédia, nossa seriedade em riso.

Lembremos aqui do exemplo do compositor francês Oliver Messiaen que, numa prisão nazista quando da ocupação da França pela Alemanha, compôs e tocou, com os instrumentos precários de que dispunha no cárcere, o Quarteto para o fim dos tempos: o fim dos tempos não nos desautoriza a criar. Pelo contrário, ele eleva a criação a um ato necessário. Não mais a criação do artista diletante ou do voluntarismo político, mas a criação que Françoise Zourabichvili (2000) chamou de involuntária: o espasmo de invenção que acomete o último suspiro de uma vida, a secreção da imanência como potência de um corpo moribundo que se afirma para além de sua constituição orgânica. Um novo materialismo afetivo, naturalista e político.

Face ao fim do mundo, não denegando a possibilidade do evento, entretanto, talvez a postura ética mais justa seja aquela de reaprender a sorrir e, sorrindo, a criar. Confrontar, a um evento demasiado empírico, o acontecimento atemporal da criação. Reaprender a rir para reaprender a resistir. Se, como no poema de T.S Elliot (2004) (2), o mundo acabar num suspiro, e não em uma grande explosão, que nossos suspiros não sejam aqueles do lamento infinito, mas os que se seguem após uma longa risada, quando ficamos exaustos e serenos.

Que o mundo acabe ou não, isto de fato não tem a menor importância para o universo. A importância que tal evento ganha para nós, entretanto, só poderia autorizar uma ética igualmente radical. Face aos possíveis da catástrofe, a alegria de uma constituição política necessária e, paradoxalmente, alegre.  Saber rir para saber resistir.

Talvez ainda nos levemos a sério demais.

NOTAS:

(1) Tais pesquisas e cientistas podem ser encontrados na edição especial da revista NatureClimateChange, de setembro de 2009:

http://www.nature.com/nclimate/archive/issue.html?year=2009&month=09#section-editorial

(2) A referência vem da palestra proferida por Debora Danowski no colóquio Terraterra, em 2012  na Casa Ruy Barbosa (Rio de Janeiro), e pode ser acessada em http://www.culturaebarbarie.org/atoa/debi.mp3.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ELLIOT, T.S. Obra completa, Volume I. Poesia. São Paulo: Arx, 2004
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ZOURABICHVILLI, F. Deleuze e o possível (sobre o involuntarismo na política).In:ALLIEZ, E. (org.) Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000.

 

Recebido em: 10/09/2013

Aceito em: 01/04/2013

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