“MEU DEUS! UM ELEFANTE ROSA!”: BREVES REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO DA CRISE DOS PARADIGMAS NA CONTEMPORANEIDADE
Resumo:Este artigo parte de um caso real para uma discussão da validade dos paradigmas na contemporaneidade. A partir de teóricos como Mezan (1996), Pelanda e Pelanda (1996), Prigodine (1997), Plastino (1994), Coutinho (1995) e Morin(1999), tenta-se discutir a crise dos paradigmas no século XX e XXI a partir do espanto do rosa de um elefante que deveria ser marron, quebrando a expectativa já formal a um dado real, pressuposto como imutável. Mas o que , hoje, seria imutável?
Palavras-chave: Contemporaneidade, crise dos paradigmas, pensamento complexo, Psicanálise
“OH MY GOD! A PINK ELEPHANT!”: BRIEF REFLECTIONS ABOUT THE QUESTION OF THE CRISIS OF PARADIGMS IN CONTEMPORARY TIMES
Abstract: This article is part of a real case for a discussion of the validity of the paradigms in contemporary times. From theorists such as Mezan(1996), Pelanda and Pelanda(1996), Prigodine(1997), Plastino(1994), Coutinho (1995) and Morin(1999), tries to discuss the crisis of paradigms in the twentieth century and XXI from the astonishment of the pink elephant that should be brown, breaking the expectation already formal to a real fact, assumption as immutable. But what, today, would be immutable?
Keywords: Contemporary, crisis of paradigms, complex thinking, Psychoanalysis.
À Ana Maria Coutinho (in memoria)
O porquê do título
Esta exclamação foi ouvida por mim da professora de minha filha, quando esta estava no Jardim II. Ela havia pintado um elefante, não conforme a orientação da professora, utilizando a cor marrom, e sim de rosa bem forte. Minha filha tinha ficado incomodada com o BOM recebido e fui chamada para conversar com a professora sobre o desenho, porque ela esperava ter recebido um EXCELENTE como os coleguinhas. Só que ela havia pintado o elefante de rosa, os outros de marrom, e a professora, conversando comigo, exclamou exatamente a frase que inicia este trabalho sobre a questão dos paradigmas: “Meu Deus!!!, um elefante rosa!!”
A exclamação da professora demonstra a necessidade de haver uma unicidade de pensamento e uma conformação à realidade como um todo, que não poderia estar vendo o mundo de maneira diferente ou sob outra ótica; minha filha constrói um outro olhar sobre a tarefa proposta, um olhar desviante, mas com uma explicação coerente, dada por ela mesma a mim e à professora: “o elefante estava vestido de bombeiro e embaixo dele havia a frase salve o dia do bombeiro, e bombeiros se vestem com roupa vermelha e, como bem disse ela, “claro que não existiam elefantes rosa (ela não tinha o lápis vermelho, por isso rosa e não vermelho a cor usada), mas também não existiam elefantes bombeiro!!!!!!!”
Verificamos, assim, que a criança olhou o desenho por um prisma, a professora por outro. Os coleguinhas se conformaram com a visão da professora, ela preferiu levar a cabo a dela. Neste impasse entre o monolítico e o fragmentado, vê-se que ainda hoje somos doutrinados/ensinados a ver o mundo de uma só forma ou dentro de óticas ou paradigmas culturalmente aceitos como corretos ou passíveis de aceitação. Mas há certos momentos em que o olhar desviante e fragmentado é o único que nos leva à criação e à originalidade.
Meu percurso no curso “A problemática psicanalítica e a noção de racionalidade” foi exatamente esse que descrevi: entrei nele com um olhar enquadrado ou conformado com certos paradigmas e descobri que não há somente alguns paradigmas universais e quase inquestionáveis; o que há são paradigmas que se fragmentam e se fragmentam sempre, construindo realidades e não somente uma realidade.
Refletindo sobre o porquê do espanto diante da cor rosa
A exclamação que abre este trabalho e as reflexões à cerca da crise dos paradigmas e da própria necessidade de haver um conceito de paradigma, também abrem espaço para que pensemos em que lugar estamos hoje no campo das ciências. O espanto diante do rosa, que preenchia o lugar do marron esperado, metaforicamente, demonstra o espanto em que nos encontramos diante de um paradigma da ciência clássica, que nos trazia um olhar esperado e “correto” por ser predizível e previsível, e dos múltiplos paradigmas da ciência da contemporaneidade, que nos traz como experiência a complexidade do pensamento.
Prigogine (1997), ao falar da metamorfose da ciência, situa bem esta transformação do olhar para o mundo:
É lugar-comum dizer-se que a ciência conheceu notáveis progressos no decurso dos três séculos que vão de Newton à atualidade. É talvez menos banal sublinhar a que ponto nossas idéias mudaram a propósito da natureza que descrevemos e do ideal que orienta nossas descrições (...). Partindo duma natureza semelhante a um autômato, submetida a leis matemáticas, cujo calmo desenvolvimento determina para sempre seu futuro tal como determinou seu passado, chegamos hoje a uma situação teórica completamente diferente, a uma descrição que situa o homem no mundo que ele mesmo descreve e implica a abertura desse mundo. (p.1)
Os questionamentos sobre a ciência clássica advém de uma fragmentação cada vez maior dos conceitos que constituem o próprio conceito de “mundo”. Olhar qualquer categoria, hoje, é olhar um caleidoscópio, o qual, ao ser girado, gera outra forma, a partir dos mesmos vidros quebrados. Hoje em dia, não há mais um ser único e universal, muito menos conceitos ou categorias estruturados igualmente. Diante da Física Quântica, nas ciências ditas exatas, e da Psicanálise, nas chamadas por Dilthey de ciências do espírito, a hegemonia universalista até o século XIX caiu por terra. Como bem nos aponta Pellanda&Pellanda (1996): “O fim de milênio pede novos olhares. Olhares múltiplos para romper com a hegemonia epistêmica dos grandes saberes, das grandes narrativas oficiais e do sujeito racional que, com seu olhar iluminista, pretende iluminar tudo” (p.13)
Este novo olhar começou, em parte, com a Psicanálise de Freud, que “enegrece” o homem ao sugerir não iluminar tudo e sim fechar os olhos e privilegiar o inconsciente num pensar e num mundo cartesiano que trazem consigo a idéia do “homem consciente reduzido à unidade do cogito como um ser estável, com um ego racional e autônomo” (PELLANDA&PELLANDA,1996,p.13). Surge, dessa forma, a idéia de conflito, de imprecisão e de sombras, na qual a realidade é um eterno devir, não havendo certo e, portanto, pontos privilegiados de olhar.
O século XX iniciou-se com a quebra do paradigma científico anterior por meio do advento da Psicanálise de Freud, da teoria da relatividade de Einstein e da Física Quântica. Ainda que a Psicanálise tenha sido tributária, em parte, do paradigma da ciência clássica, este mesmo “velho” paradigma não dava mais conta nem do inconsciente, nem das relações (afetivas) do objeto. No nível da física subatômica, ele não servia para explicar o comportamento das partículas. A ciência fin de siècle nos alertava, cada vez mais, para a auto-organização e para o papel do sujeito na construção da realidade, sendo ainda, a subjetividade a marca profunda deste novo paradigma e, desta forma, “construtivismo e linguagem são os fios que tecem a realidade” (PELANDA, 1996, p.19) onde nada é já dado; tudo está aí para ser construído. Portanto:
Freud tem sido considerado paradigmático do modelo de regulação individualista que se difundiu no ocidente no final do século. Por outro lado, a teoria psicanalítica, ao postular o inconsciente como um outro tipo de racionalidade que compartilhamos, originou uma parte significativa da forma de entendimento com que passemos a falar de nós mesmos e dos outros na vida cotidiana.(COUTINHO, 1995,p.19)
Concordando com Coutinho (1995), Pellanda (1996) afirma que:
Freud é um marco na História da Ciência porque representou justamente aquela encruzilhada epistemológica (...).O conceito de inconsciente mostra que existem muitas formas de leitura da realidade e esta, por sua vez, transforma-se com essas leituras. Esse é o novo modelo de ciência que encontraremos mais tarde também na Nova Física, na Química das estruturas dissipativas, na Biologia e na Epistemologia Genética. (p.235)
Mesmo tendo a Psicanálise instaurado alguns novos olhares sobre o mundo e, consequentemente, sobre o sujeito, atualmente ela está longe da hegemonia inicial de seus pressupostos teóricos. Renato Mezan (1996), repensando a Psicanálise atual, propõe que esta possa ser vista como várias psicanálises. Para demonstrar essa questão, este autor cita a postura teórica de Ricardo Bernardi (1988), na qual existiriam pelo menos três paradigmas na Psicanálise contemporânea: o freudismo, o kleinianismo e o lacanismo. Mezan discorda desta divisão e argumenta que estas seriam matrizes clínicas, propondo outra divisão: o paradigma da pulsão, o paradigma objetal e o paradigma do sujeito, já que para este teórico “paradigma não designaria a concepção de nenhum autor especificamente, mas uma problemática, e dentro desta, diferentes possibilidades de modelização.” (p.351)
Ao concluir o seu artigo, Mezan (1996) afirma que:
Para podermos nos orientar no meio daquilo a que alguns chamam ‘a Babel psicanalítica’, a idéia de agrupar tais tendências sob a égide de três grandes paradigmas não me parece inútil: ela pode se revelar fértil e auxiliar todos os analistas a situarem, nos níveis adequados, as diferentes contribuições que vieram a constituir a nossa herança comum. (p.355)
A meu ver, esta conclusão nos remete ao início deste trabalho: ao eleger três paradigmas como válidos para nortear os estudos na Psicanálise, Mezan (1996) acaba por formatar possibilidades de leitura ou de entendimento e até mesmo de criação. Se a proposta do livro no qual ele escreve seu artigo é “Psicanálise hoje: uma revolução do olhar”, ao nortear o olhar, ele minimiza a revolução do olhar. Pelo menos é o que me parece. No meu entender,este autor, mesmo que correto ao tentar organizar a Babilônia Psicanalítica, acaba por não ser o “cientista normal” formulado por Thomas Kuhn (In: MEZAN, 1996), já que propõe um olhar que tende à harmonia e evita a crise talvez necessária para uma mudança revolucionário do olhar na Psicanálise:
(o cientista normal) reconhece os fenômenos que seu paradigma considera existentes e cognoscíveis, procura compreendê-los com os instrumentos teóricos e com o método tidos por legítimos segundo o paradigma, e, na medida em que considera satisfatória a elucidação assim obtida, persuade-se de que o paradigma adotado é útil e verdadeiro, não vendo razão para abandoná-lo, se é capaz de prestar tão bom serviço. Mas pode ocorrer que os fenômenos se mostrem rebeldes à ação organizadora do paradigma, isto é, que eles não se deixem captar, esclarecer e modificar segundo as interpretações orientadas por aquele paradigma. Neste caso ocorre uma “crise”, da qual termina por resultar, segundo Kuhn, a formação de um novo paradigma. (p.353)
Acredito que estamos diante de muitos mais paradigmas na Psicanálise do que somente estes três propostos , mesmo que se admita que, em os tendo, orientamos os nossos saberes e organizamos as nossas interpretações. Esses teóricos acima citados, que relatam esta mudança de olhar sobre a maneira de conceber o mundo, abrem espaço para analisarmos a questão da crise dos paradigmas na atualidade e a questão de como chegamos, hoje, ao olhar fragmentador, à questão da complexidade e do pensar complexo que marca a crise paradigmática da contemporaneidade.
Prigogine (1997) reafirma que a ciência de hoje não é mais a ciência “clássica”. Os conceitos básicos que fundamentavam “a concepção clássica do mundo encontraram hoje seus limites num progresso teórico que não hesitamos de chamar de metamorfose. A ciência da natureza descreveu, de ora em diante, um universo fragmentado, rico de diversidade qualitativa e de surpresas potenciais”. (p.5) A concepção clássica deu lugar ao pensamento complexo. Mas como esta passagem, entre pontos tão aparentemente díspares, entre estabilidade e instabilidade ocorreu? Como passamos de um olhar unificador e “simplista” para um olhar “complexo e múltiplo”? Qual o papel do conceito de paradigma dentro deste imbróglio atual nas ciências naturais e sociais?
Marcondes (1994) conceitua a crise de paradigmas como “uma mudança conceitual, ou uma mudança de visão de mundo, conseqüência de uma insatisfação com os modelos anteriormente predominantes de explicação” (p.15) que a crise leva a uma radicalização e, conseqüentemente, a revoluções científicas. Para este filósofo, um dos períodos mais marcantes e significativos de crise de paradigmas foi a revolução científica dos séculos XVI e XVII, em que a “Nova Ciência” instaura “uma crise metodológica que afeta uma concepção tradicional de método científico, bem como uma crise de visão de mundo, de concepção da natureza e do lugar do homem enquanto microcosmo, nesta natureza, o macrocosmo” (p.18). Desta forma, à modernidade coube estabelecer as bases desta “Nova Ciência”, evitando que esta recaísse nos mesmos problemas que a levariam a poder ser, posteriormente, refutada. Assim, não é mais possível se recorrer, segundo Marcondes (1994),
às tradições clássicas, ao saber adquirido, às instituições, uma vez que precisamente estes estão sendo questionados (...). É portanto, no próprio indivíduo em sua natureza sensível e racional, que estes pensadores vão buscar os fundamentos para as novas teorias científicas. É com base na razão subjetiva que se constituirá a nova concepção de conhecimento. (p.19)
Dentro do paradigma da subjetividade, marca-se uma nova relação entre sujeito e objeto, em que o próprio objeto é uma construção do sujeito, de sua projeção sobre o real: (MARCONDES, 1994). Há, desta forma, uma “revolução copernicana”, expressão cunhada por Kant, já que se desloca o centro do objeto para o sujeito, assim como Copérnico teria deslocado o centro do universo da Terra para o Sol. Desta forma, Kant formula “a noção de sujeito transcendental (...), um sujeito formal e abstrato, uma espécie de estrutura universal da subjetividade, contendo as condições de possibilidade do conhecimento”. (MARCONDES, 1994, p.21) Nesta visão o sujeito, além de uno é a-temporal e a-histórico.
Coutinho (2001), olhando o paradigma da subjetividade que há três racionalidades básicas construídas desde Kant até a atualidade:
a visão que considera a racionalidade como individual/universal e, em última instância, objetiva; a visão sociocultural de racionalidade enquanto produção de diferentes comunidades lingüísticas; e a visão de racionalidade como refletindo as características de nossos organismos - “encarnada” -, sendo que neste caso a racionalidade humana é vista como contínua às demais espécies e como aparecendo nos próprios indivíduos de forma cindida/fragmentada e predominantemente não consciente ou ainda inconsciente. (Objetivos do Curso)
A mesma autora articula essas três visões de racionalidade, ao analisar os três campos que desenvolvem a questão da subjetividade: o modelo de subjetividade do individualismo utilitarista, o modelo do individualismo expressivo ou romântico e o modelo de subjetividade vinculado a teorias biológicas. O primeiro modelo é, de acordo com Coutinho(2001) , o mais difundido e dominante na fundamentação das disciplinas acadêmica, e sua
característica central é a própria postulação de um sujeito abstrato a priori, que é portador de atributos universais entre os quais se destaca a racionalidade e a correlata habilidade de identificar seus próprios valores, direitos, interesses, necessidades, desejos etc. Por conseguinte é um sujeito epistemológico e ético que, em última instância, é visto como fundamento e constituindo as diferentes formas de institucionalização social. (...) A busca da igualdade formal entre os diferentes sujeitos, que são todos cidadãos, é vista como o ideal mais geral que pode ser derivado dessa forma de individualismo. (p.4)
Aqui teríamos a permanência de uma fundamentação universal de racionalidade na caracterização do sujeito, na qual é quase que impensável uma visão pluralizada ou mesmo fragmentada, mas que acaba por oferecer brechas para se pensar o sujeito de formas particularizadas porque, sendo este visto como universal, acaba, pelas inúmeras conjunturas de análise do sujeito, admitindo um certo afrouxamento de seus pressupostos. Neste modelo o sujeito é esvaziado como se ele fosse “potencialmente plástico e indiferenciado” (p.10)
Ainda a partir do que expressa Coutinho (1995), o modelo de individualismo expressivo ou romântico é predominante nas reflexões sobre a vida privada e:
enquanto que o individualismo utilitarista privilegia como característica do sujeito a racionalidade universal e consequentemente também a igualdade formal, o individualismo expressivo vai definir o sujeito a partir de categorias como a idiossincrasia, a originalidade, a criatividade, a autenticidade e a auto-realização (...). É sem dúvida na área “psi” que ele vai ser abordado de forma mais abrangente e polissêmica. Assim, nessa última área, o que vai permanecer constante na abordagem desse modelo de individualismo é a postulação da expressividade de uma realidade interna idiossincrática, mas a caracterização de tal realidade interna vai variar dramaticamente em diferentes teorias. (COUTINHO, 1995, p.5)
Nesse modelo, o sujeito é “definido a partir de um dos modelos de subjetividade adotado por algum dos principais referenciais teóricos”. (Coutinho, 1995, p.10) Há, portanto, um modelo a priori de subjetividade ao qual deve o sujeito se adequar.
O terceiro modelo, o da subjetividade ligada às teorias biológicas, traz para cena a pertinência de uma abordagem transdisciplinar da subjetividade e toda uma complexidade que a visão pragmática da linguagem científica se propõe a articular. Segundo esta autora,
de acordo com uma visão pragmática de linguagem científica as teorias são sistematizações (“paradigmas”) que têm de ser justificados para seus respectivos propósitos na medida em que se considera que há um número indeterminado de linguagens possíveis na interpretação de fenômenos a partir de diferentes pressupostos (lógicos, conceituais etc.) e de diferentes perspectivas de interesse. Por conseguinte não faz sentido pretender ter acesso a “leis” que sejam “em si” mais básicas, na medida em que diferentes perspectivas podem ser justificadas em termos de seus fenômenos de interesse. (COUTINHO, 1995, p.10)
Outro autor que articula os aspectos que até aqui apresentamos como constituidores da problemática da questão dos paradigmas na modernidade é Bezerra Jr. (1994), quando retrata o momento em que o conhecimento sobre o sujeito passa de uma visão universalista para a visão expressiva de subjetividade ao falar da revolução que Freud suscita no cenário de sua época, revolução esta descrita pelo próprio Freud em seu artigo “Uma dificuldade da psicanálise”, escrito em 1917. Neste texto, Freud:
associa os efeitos de sua teoria àqueles produzidos pelas idéias de Copérnico e Darwin: os três teriam imposto uma sucessão de “feridas narcísicas” à humanidade. (...) À Psicanálise teria cabido o golpe de misericórdia: afirmar, como Freud fez, que “o eu não é senhor na sua própria casa”, que a autonomia e a independência da razão não passam de uma ilusão era joga por terra qualquer pretensão de superioridade ainda alimentada pelo homem moderno. (BEZERRA JUNIOR, 1994, p.119)
De acordo com o mesmo autor, a questão central que se coloca após Freud, que demonstraria a fragmentação de um saber universalizado sobre o sujeito, seria “Quem eu sou realmente?”, porque, a partir de Freud, o sujeito passa a ser concebido como descentralizado, sem algo nuclear, ou essencial, ou verdadeiramente autêntico a ser dado como resposta a essa pergunta. Mais ainda: o sujeito passa, com o inconsciente, a ser um sujeito psíquico e assim a
apontar a infinita variedade de sentidos que o agente experimenta como resultado de suas ações (...), em que conhecer-se a si mesmo não significará descobrir o que na verdade se é, e sim entrar em contato e reconhecer-se nas múltiplas (e freqüentemente desagradáveis e indesejáveis) modalidades de ser sujeito que nossa individualidade pode abrigar e cuja existência nossa própria trajetória singular tornou possível (BEZERRA JUNIOR, 1994, p.123)
No que diz respeito ao descentramento do sujeito, Bezerra Junior (1994), utilizando-se da Pragmática, descreve um olhar fragmentado de leitura para os textos e conceitos freudianos:
Freud aparece como um pensador cuja imaginação descreveu o ser humano e sua vida mental em termos inteiramente novos. Não se trata de ver que respostas ele teria possivelmente dado as tradicionais questões da filosofia do sujeito ou das recentes teorias psicológicas. Trata-se, ao contrário, de perceber como sua maneira de falar dos sintomas, dos lapsos, dos escrúpulos morais, das fantasias sexuais, do amor e do ódio nas relações entre os humanos, redesenhou a imagem que tínhamos de nós mesmos a tal ponto que as questões e os problemas que ela engendra já não deixam apreender nos termos habituais. (p.126)
Se tentarmos articular o que Coutinho (1995) coloca quanto à terceira visão de racionalidade e o que Bezerra Junior (1994) aqui apresenta, vemos que Freud, com seus paradigmas, cria categorias nas quais os sujeitos se reconhecem e passam a existir de outra forma, passam a se pensar de outra forma e acabam por incorporar para si essas imagens e a ter/reivindicar direitos a partir dela.
Para Bezerra Junior (1994), citando Rorty (1989), Freud torna a idéia de centro menos útil, e que “põe abaixo todas as distinções tradicionais entre o mais alto e o mais baixo, o essencial e o acidental, o central e o periférico. Ele nos deixa como um sujeito que é um tecido de contingências”. (p.126)
A questão da pluralidade de leituras, visões e, consequentemente de paradigmas, é também colocado por Joseph Margolis (1966),em seu livro “Psychotherapy & Moralit: a study of two concepts”:
“We speak of “hostile”, “self-depreciating”, “masochistic”, “neurotic”, “aggressive”, “malingering”, “hysterical”, “obsessive” behavior (…) I believe, in fact, that they exhibit a spectrum of uses ranging from appreciative judgments to findings proper. We cannot say, from the mere appearance of such a predicate as ‘hysterical”, whether we have one kind of value judgment or another; everything depends on the context of use.” (1) ( p.50)
O ponto que achamos interessante aqui ressaltar dessa citação é a questão do contexto de uso de qualquer conceito, paradigma ou visão. Talvez seja esta a questão mais central e a abordagem pragmática poderia dar conta em articular esses múltiplos aspectos que o contexto suscita, já que esta nos ajuda a pensar o fragmentado do olhar. A Pragmática vê a linguagem de uma forma peculiar no que diz respeito ao senso comum de se entender a linguagem. Para a pragmática, “a linguagem é definida como uma atividade, como um comportamento expressivo” (BEZERRA JUNIOR, 1994, p.147). Desta forma a linguagem:
passa a ser vista como a totalidade dos atos de fala, totalidade cujos limites estão por definição abertos à inovação. (...) Usar palavras é agir, dentro de contextos, com determinados objetivos. É fazer parte de uma “forma de vida”, estar inserido na vida social. Abandona-se o conceito unívoco de linguagem e introduz-se a noção de multiplicidade de uso (BEZERRA JUNIOR, 1994, p.149)
Assim concebendo a linguagem, a noção de sujeito é bastante diferente daquela que é oferecida pela teoria mentalista ou pela teoria estruturalista. O termo sujeito passa:
a funcionar como um nome coletivo e designar todos os eus, todas as formas de articulação de crenças e desejos que um organismo singular é instado a organizar, e que podem ser postulados como causa de seu comportamento, é a pluralidade de posições fantasmáticas diante do desejo do outro (...) e é essa pluralidade de montagens subjetivas, de imagens de si, que constitui a experiência do sujeito. (BEZERRA JUNIOR, 1994, p.157/158)
Pensando sob esta mesma temática da fragmentação dos paradigmas, Plastino (1994) radicaliza esta questão e se questiona sobre a validade de se pensar na necessidade de haver um conceito de paradigma tal qual este é hoje concebido. Diz-nos que:
a inclusão do tempo, da história e do sujeito como atores/construtores não apenas provoca a crise do paradigma moderno, mas precipita a crise do conceito mesmo de paradigma (...) derrubando não apenas a concepção de real-objetivo (como algo que é), mas também invalidando a concepção do saber como capaz de ser pensado omitindo-se as condições históricas de sua produção. (...)
A teoria não mais pode ser considerada como um olhar neutro sobre aquilo que é (p.35), mas como uma prática entrelaçada ao contexto na qual é produzida.
Dentro deste quadro, na contemporaneidade, não há uma realidade dada, entendida como sistema fechado, e assim podemos afirmar, segundo Plastino (1994), que “não existe uma verdade necessária que cabe à Ciência conhecer” (p.45) mas que isso “não significa negar a possibilidade ou a necessidade de uma racionalidade que cabe construir, em que a Ciência não se define mais por algo ou uma ordem dada e deve ser constituída e desta forma a racionalidade passa a ser também construída necessariamente “pelo crivo de nossas opções éticas”. (PLASTINO, 1994, p.46)
Quais são os pressupostos afastados? Qual mudança de paradigma fez com que nosso olhar se desviasse do objeto para o sujeito? Hoje estamos em um mundo “irredutivelmente aleatório, num mundo em que a reversibilidade e o determinismo figuram como casos particulares, em que a irreversibilidade e a indeterminação microscópicas são regra.” (PRIGOGINE, 1997, p.8) Desta forma, a função do paradigma não seria outra que dar ao homem, que se apropria dele, um balizamento e principalmente, sendo esse um sujeito criativo e criador, a possibilidade de recriá-los, “tomados então como paradigmas provisórios, como aproximações parciais” (MAMEDE-NEVES, 1994, p.52). A recriação surge, na contemporaneidade, como uma possibilidade da fragmentação dos modelos, instaurando a complexidade do pensar e conseqüentemente uma crise e um impasse no conhecer. A teoria da complexidade traz alguma luz sobre esses impasses porque postula, segundo Morin (1999) que o caos da desordem é a fonte de evolução e de surgimento de novas organizações, sendo assim, fonte de um salto qualitativo, instaurador não de um erro, mas de uma ordem da pessoa no sistema natural.
Sobre esta questão da complexidade enquanto um olhar necessário para entender o mundo contemporâneo, Mamede-Neves (2000), coloca-nos que “o termo complexo é a trama, o pensamento complexo seria o que se esforça para unir, não na confusão, mas operando na diferenciação, na diferença” (p.5).
Prigogine (1997) se pergunta, ao final da introdução de seu livro, “Onde nos encontramos hoje?”. Nesse ponto do artigo, nos perguntamos a mesma coisa. Acreditamos que estamos em um tempo de “aliança do homem com a natureza que ele descreve”. (PRIGOGINE, 1997, p.15) Um tempo em que não se necessita mais de um único paradigma balizador do conhecer e do pensar. Privilegiando-se a espiral, temos a necessidade, sim, de paradigmas no discurso científico porque diante do não-modelo ou “de modelos insuficientes para dar conta da complexidade da validade empírica.” (PRIGOGINE, 1997, p.49), surge para o homem um grande vazio e ele o sente, no enfoque da Psicanálise, como uma grande angústia porque este vazio foca a sua incompletude, ativando dentro dele, três medos básicos, segundo Pichon-Riviére (1978 , In: MAMEDE- NEVES, 1994)
o medo do retorno ao estado confusional inicial de sua vida quando a indiscriminação era a maior característica; o medo do ataque do novo, que o desinstala e que o faz se sentir inseguro, devido à carência de compreensão e de manejo do novo; o medo da perda do que já estava estabelecido e existente e que lhe dava a confiança de um certo grau de certeza de si mesmo, permitindo-lhe a vivência da tranqüilidade. (p.50)
Assim, pela possibilidade de reviver alguns desses medos, o homem tenta procurar resolver o conflito da crise e a angústia que ela lhe impõe. Analisando a tentativa de resolução do conflito vivido pelo homem diante dessa crise dos paradigmas, até mesmo diante da crise do conceito de paradigma, já que essa segunda crise instaura um vazio maior pela impossibilidade de se acreditar em um surgir de um modelo para aplacar a angústia do vazio. O paradigma temporário, mutável e mutante, é uma forma de aplacar a angústia do homem diante da falta de referências. Não acreditamos que o conceito de paradigma sumirá ou se tornará obsoleto na construção do discurso científico, ele se metamorfoseará. O espanto diante do novo é algo esperado, mas o movimento que vem após o espanto é o de criação, é o de salto para um próximo ele na espiral.
Encerramos nossa reflexão sobre a crise dos paradigmas na contemporaneidade com uma citação de Prigogine (1997):
Pensamos que a nossa ciência se abrirá ao universal logo que cesse de negar, de se pretender estranha às preocupações e interrogações das sociedades no seio das quais se desenvolve, no momento em que for, finalmente, capaz de em diálogo com a natureza, da qual saberá apreciar os múltiplos encantos e, com os homens de todas as culturas, cujas questões ela saberá no futuro respeitar. (PRIGOGINE, 1997, p.14)
Assim como este autor, acreditamos que não há mais espaço, hoje em dia, para pensares monolíticos ou detentores de um saber acabado. Nada está acabado na natureza, tudo é um eterno por-vir-a-ser e assim deve ser a ciência ou ciências que lidarem com esta natureza, seja ela física ou psíquica, material ou social. Apostamos no diálogo entres as múltiplas facetas que nunca deixarão de existir, porque o homem precisa de algumas seguranças, e a separação temporária de saberes dá a ele esta segurança tão insegura, porém mantenedora, por alguns instantes, de uma harmonia na qual ele pode pensar sobre o mundo e se pensar dentro dele. Quando se descobre senhor dos fatos, esses mesmos fatos mostram ao ser humano que sua visão estava congelada e que se deve ir para um além e começar tudo de novo a partir do que se tinha ou apesar do que se tinha como conceitos acabados.
O rosa, que preencheu o lugar da suposta cor correta e esperada, representa a crise dos paradigmas e a originalidade da ousadia. Na mudança de referencial, em um contexto que pode ser interpretado por diversos ângulos, haverá sempre uma resposta inesperada. O elefante marrom se transmudou em rosa, que deveria ser vermelho... Aí houve dois espantos: o da mudança de cor esperada, marrom, em cor rosa, quebrando a expectativa já formal a um dado real, pressuposto como imutável; e a mudança da cor vermelha para cor rosa, como uma resolução diante de um impasse, já que não havia a cor vermelha, a esperada para a situação dada (bombeiros usam roupas vermelhas). Do esperado ao inesperado, do fixo ao mutável ou mutante... este é o caminho que acreditamos ser válido para o descobrimento do mundo e para a construção do discurso científico na contemporaneidade.
NOTAS:
(1) "Estamos a falar de "hostil", "depreciando a auto-regulação", "masoquistas", "neuróticos", "agressivo", "histeria", " comportamento obsessivo ( …) creio que, na verdade, que eles exibem um espectro de usos que vão desde elogiosos acórdãos a conclusões próprias. Não podemos dizer, a partir da mera aparência de tal predicado como "histéricas", se temos uma espécie de juízo de valor ou outro; tudo depende do contexto de uso." (tradução livre da autora)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Recebido: 16/01/2013
Aceito: 18/02/2013