Desenvolvimento Humano

A CRIANÇA NA INTERFACE DO SILÊNCIO MEDICAMENTOSO E COMO SUJEITO EM PSICANÁLISE

ADRIANA SIMÕES MARINO é Psicóloga, Psicanalista, Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP (IPUSP, membro do projeto de pesquisa A Psicanálise e a criança: a infância e o infantil (CNPq), do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP. Especialista em Psicopatologia e Saúde Pública na Faculdade de Saúde Pública da USP (FSP). Faz formação continuada em psicanálise na Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL-SP) e graduação em Filosofia na USP (FFLCH).


Resumo: O artigo trata de um tema controverso, apontado por uma tendência do discurso médico à sobreposição do conceito de criança, segundo uma concepção que refere uma fase da vida a ser superada, moldada e adaptada. Apresenta uma problemática provocada por este discurso e fomentada pelas neurociências, na atualidade, que é a produção de crianças submetidas à patologização e, consequentemente, ao aumento do uso de psicofármacos. Mostra o engodo envolvido em concepções que tendem à supressão da criança de sua condição estrutural de sujeito, a partir do conceito de sujeito do inconsciente e de fantasia como aquilo que remete ao infantil da estrutura subjetiva. Esboça a contraposição psicanalítica da clínica proposta por Jacques Lacan, que se refere à impossibilidade de adaptação do desejo e que tem por objetivo situar a criança para além de tendências adaptacionistas que remetem ao silenciamento subjetivo. 
Palavras-chave: criança; neurociência; psicanálise; psicofármaco; sujeito.

THE CHILD IN THE INTERFACE OF THE MEDICAL SILENCE AND THE SUBJECT IN PSYCHOANALYSIS

Abstract: This article works on a contradictory subject, which has been pointed out by the medical discourse tendency overlaid the child concept, according to a conception which refers to a stage of life to be overcome, molded and adapted. It presents a problematic of that discourse, like fomented by the neuroscience nowadays, in child’s production submitted to pathologization and, therefore, submitted to the increasing of psychotropic drugs. It shows the delusion involved in conceptions which tend to suppress the child’s structural condition of being through the concept from the unconscious and the phantasy which refers to the infant’s subjective structure. It lines out the contraposition offered by the psychoanalysis specially clinic proposed by Jacques Lacan, through the impossibility to adapt the desire and it purposes to situate the children beyond the adaptive trends which delivers to the subjective silence. 
Keywords: child; neuroscience; psychoanalysis; psychotropic drugs; subject.

Introdução

O presente artigo tratará da criança situada em duas concepções distintas. A primeira refere-se à noção de infância como uma fase da vida a ser superada pelo sujeito ao longo de seu desenvolvimento biológico, psicológico e social; e a segunda refere-se à criança como sujeito, a partir da referência do conceito de infantil, como aquilo que remete à estrutura subjetiva em psicanálise.

Na primeira parte, apresenta-se um breve recorte histórico sobre o tema. Da “descoberta da infância” do início do século XIII, à criança como objeto de atenções e estudos nas diferentes áreas do conhecimento, durante o século XIX, até a infância frente aos avanços científicos do século XX e início do XXI. Nesse percurso, o que se mostra é que a criança pode encontrar na definição de infância, a marca de uma fase da vida na qual ainda não se é sujeito de uma subjetividade.  Dessa forma, percebe-se um problema na definição de infância como uma fase da vida, definição essa adotada pelo discurso neurocientífico que diagnostica muitas crianças como patológicas, o que, consequentemente, provoca um aumento no número de receitas de medicamentos psicofármacos, na atualidade.

Em contrapartida, será apresentado o engodo promovido por estratégias de silenciamento, especificamente o oferecido pelo abuso de psicofármacos, na medida em que tendem a afastar a criança de sua condição estrutural de sujeito. A criança, na condição de sujeito para a psicanálise, tem a capacidade de nos transmitir àquilo que remete ao impossível de se adaptar do desejo. Pela sua condição estrutural, entende-se a criança como sujeito com direito, sobretudo, à voz.

Do silenciamento medicamentoso ao direito à fala em psicanálise, a criança encontra na definição de infantil um fundamento teórico-ético distinto da concepção de infância como uma fase da vida. A partir das contribuições de Jacques Lacan, este artigo pretende chamar atenção para o que há de infantil em qualquer sujeito, seja ele criança ou adulto, situando-o para além de tendências adaptacionistas que conduzem ao silenciamento subjetivo. 

A criança como objeto das ciências

A concepção de infância como uma “fase da vida” foi resultado de um processo de incursões ocorridas ao longo da história, marcado por transformações que propiciaram mudanças no que tange ao tratamento despendido com a criança. A noção de infância, portanto, deve ser pensada como uma representação construída no seio das relações entre adulto e criança (Freitas & Kuhlmann, 2002).

A etimologia da palavra “infância” vem de infans, que significa “aquele que não fala”, isto é, aquele que se distingue do adulto pela não apropriação da fala. Conforme Ariès (1981), a chamada “descoberta da infância” iniciou-se no século XIII estendendo-se até o século XVI, com o início de uma maior valorização da infância, como se observa pelas pinturas renascentistas e pelo surgimento dos colégios. No século XVII, houve uma mudança no “sentimento de infância”, como se evidenciou no préstimo da figura da criança pela religião, na “paparicação” dos adultos e na concepção de “inocência infantil” (Ibid., pp. 68 e 136). 

A diminuição da mortalidade infantil, a descoberta da tipografia, o surgimento dos colégios, da Pedagogia, da Pediatria e da Psiquiatria e, posteriormente, da Psicologia com suas especialidades, fizeram com que o sentimento e o tratamento para com a criança também se modificassem (Marino & Baptista, 2008).

O início do século XIX foi marcado por mudanças importantes na concepção de homem e de mundo que influenciaram diretamente a concepção e representação da criança como “indivíduo”. As transformações no âmbito do conhecimento, do uso da razão e da valorização da consciência, foram fundamentais para essa nova forma de tratamento. Nesse contexto, o desenvolvimento das ciências foi fundamental para a formalização de um processo de criação do estatuto da criança como objeto(1) (Smolka, 2002).

Considerar os avanços promovidos, em parte pelas especialidades (técnicas), em parte pelo próprio desenvolvimento científico dessa época, implica o reconhecimento do uso que se fez do conceito de “norma” (que encontrou sua difusão nas instituições escolares e sanitárias). A racionalização tornou-se exigência, segundo Canguilhem (1982), na política e na economia “sob a influência de um maquinismo industrial nascente” que levou “ao que se chamou, desde então, normalização" (pp.209-210). A norma, no entanto, não é um conceito simples(2). Ela se dá a partir de uma exigência imposta e não refletida sobre uma existência considerada hostil, detestável e estranha àquilo que escapa a um interior difundido como regra. Torna-se normativo:

A normalização dos meios técnicos da educação, da saúde, do transporte de pessoas e de mercadorias é a expressão de exigências coletivas cujo conjunto define, em determinada sociedade histórica, seu modo de relacionar sua estrutura, ou talvez suas estruturas, com aquilo que ela considera como sendo seu bem particular, mesmo que não haja uma tomada de consciência por parte dos indivíduos. (Canguilhem, 1982, pp.210-211)

No campo da medicina, sob a influência da norma, a época foi marcada pela busca de uma compreensão mecanicista, de uma verdade assentada no determinismo do funcionamento biológico considerado regular no homem. A segunda metade do século XX refletiu os avanços dessa ciência, com o desenvolvimento da psiquiatria organicista, os avanços da psicofarmacologia e da neurologia (Ferrazza & Rocha 2011).

Frente à crescente produção de conhecimento daquela época, a infância passou a representar uma fase do desenvolvimento humano permeada pelos conceitos conjugados de “possibilidade”, “futuro” e “esperança”. Diante dessa conjunção representativa, a criança passou a ser estudada e tratada de acordo com seu desenvolvimento ou constituição biopsicossocial, com ênfase no aspecto orgânico e sob a influência do discurso médico. Contudo, atestam Ferrazza e Rocha (2011), a entrada da criança no universo médico-psiquiátrico não deu-se pela loucura, mas por meio da etiologia das doenças mentais, pelos “sinais de um desenvolvimento hipoteticamente comprometido, como resultado das concepções da época acerca da hereditariedade da loucura” (p. 243). Um dos resultados desses avanços – tomado como ponto central da crítica trazida neste trabalho – foi o crescente aumento do número de receitas de psicotrópicos para a infância.

O discurso médico-neurocientífico e a medicalização da infância

Por meio dos pressupostos biológicos nas investigações sobre o sofrimento psíquico e o mal-estar social, o modelo da ciência natural tornou-se a principal referência na construção do conhecimento dito “científico”. O desenvolvimento das neurociências e o crescimento da manipulação das drogas psicotrópicas (principalmente durante os anos 1980 e 1990) tornaram-se paradigmas dos novos tempos (Legnani & Almeida, 2008; Ferrazza & Rocha, 2011). Nesse sentido, como visto em reportagem da Revista Época de 2006, “A evolução da medicina relegou a um segundo plano a subjetividade do paciente. As soluções aparecem em forma de comprimidos” (p. 110).

No contexto em que a infância é uma fase da vida, a criança tornou-se objeto privilegiado, já que tudo é possível desde que seja “para o benefício dela”. Para o benefício da criança, pode-se, por exemplo, receitar medicamentos como a Ritalina® e o Concerta®, medicamentos com nomes curiosos, cuja base é um psicoestimulante, o cloridrato de metilfenidato, indicado para crianças diagnosticadas com Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) ou Transtorno Hipercinético. Inicialmente chamada de “Lesão Cerebral Mínima” (em 1940), o TDAH passou a ser chamado assim em 1995, na quarta versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV) (Legnani & Almeida, 2008).

O TDAH é considerado um transtorno mental crônico, com início no período da infância e diagnosticado no período escolar, o que faz com que crianças sejam medicadas cada vez mais cedo, apesar das controvérsias em torno dos critérios diagnósticos utilizados e do excesso de encaminhamentos realizados pelas escolas, cuja queixa centra-se nos comportamentos de indisciplina e agitação (Luengo & Constantino, 2009). Cabe salientar, nesse contexto, que o uso de medicamentos na população infantojuvenil é empírico, ou seja, não passam por ensaios clínicos, por motivos legais e éticos(3). Contudo, como salientam Trevisol, et al. (2008), essa mesma legislação que “dificulta a execução de ensaios clínicos em crianças não tem poder para restringir nem para normatizar a utilização dos medicamentos em pediatria”(4) (p. 239).

A posição de psiquiatras especialistas e pesquisadores da Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA) defendem seu diagnóstico e uma terapêutica assentada prioritariamente na prescrição de medicamentos(5) (Polanczyk, et al., 2011, p. 1125). Apresentam, portanto, uma posição diferente. Salientam que os dados de validação do transtorno são convincentes, apesar da “falta de conhecimento acerca desse transtorno no Brasil” e da ausência de marcadores de base biológica(6), ou seja, o diagnóstico é essencialmente clínico. A incidência na população infantojuvenil, segundo os autores, é de 5%, “independentemente do país no qual o portador vive”. A persistência é alarmante (apesar da administração de medicamentos), situada entre 65-75% dos casos, com alta incidência hereditária (76%). São igualmente alarmantes suas consequências: problemas sociais e familiares, baixo aproveitamento escolar com maior risco de evasão, baixa autoestima, acidentes de trânsito, gravidez prematura, doenças sexualmente transmissíveis, além do risco do desenvolvimento de comorbidades psiquiátricas (Ibid.).

Conforme a “Carta de Esclarecimento à Sociedade sobre o TDAH, seu diagnóstico e tratamento” (ABDA, 2012), do qual 30 associações e grupos de pesquisa são signatários (sendo a maioria representada por associações médicas), sustenta-se que o critério clínico para diagnosticar-se o transtorno é o desvio da norma: “todos os sintomas do TDAH ocorrem em frequência e intensidade não observadas em indivíduos normais” (p. 1). A porcentagem como critério leva à comparação desse transtorno ao do diabetes: “do mesmo modo que 90% dos adultos não têm níveis elevados de açúcar” (p. 1).

O TDAH ganhou notoriedade em função do aumento na indicação de psicofármacos para crianças e pelo uso indiscriminado de suas medicações, que são usadas para aumentar a “inteligência” e a capacidade de concentração; além disso, existe o uso recreativo, geralmente associado ao álcool (Época, 2009; Lenhard, 2010).  É o transtorno mais frequente em neurologia pediátrica (Luengo & Constantino, 2009; Maia & Rohde, 2007).

Cabe observar, entretanto, conforme atenta Amarante (2010), o poder das indústrias farmacêuticas, o engendramento de pesquisas financiadas por laboratórios e a consequente determinação de certos diagnósticos e tratamentos de base medicamentosa. Esse mesmo autor alerta que “o Brasil é um dos países onde ocorre a maior medicalização da infância em todo o mundo” (p. 157). Segundo dados da pesquisa do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP, 2011), no município, a quantidade de comprimidos do metilfenidato comprados dobrou entre os anos 2008 e 2010(7).

Na busca pela ingestão de substâncias que silenciem aquilo que vai na contramão do que causa mal-estar social, como uma suposta falta de atenção ou dificuldade intelectual, aqueles medicamentos são usados tendo-se em vista uma normalização ou normatização do comportamento. Através da supressão de sintomas, fazem do silenciamento o melhor convite ao bom convício social contemporâneo. A medicalização do social, conforme explicitou Foucault (1979), diz respeito precisamente a um processo de restrição ao campo do discurso médico (centrado em uma abordagem organicista) de tudo aquilo que diz respeito às mais diversas manifestações humanas. Dessa maneira, estamos de acordo com Amarante (2010) em que “uma determinada forma de produção de conhecimentos nesse campo pode criar realidades de doenças, tratamentos, práticas institucionais, sociais, culturais e políticas” (p.159).

De fato parece que não existem limites quando o assunto é a criação de novas categorias para novos medicamentos. Nas palavras de Quinet (2006), quanto ao aumento do consumo de medicamentos psicotrópicos, é oportuno questionar se, ao invés “de termos drogas cada vez mais eficazes para combater novos males decorrentes da transformação da sociedade, será que não são os ‘males’ que agora são criados e categorizados em novas síndromes para serem então tratados pelas novas drogas?” (p. 22).

Dessa forma, pode-se dizer que esse discurso é transportado para o terreno da subjetividade humana, o que implica refletirmos sobre a necessária adequação para se viver em uma sociedade onde impera ideais transformados em dever de bem-estar e de felicidade. Diante dos imperativos de normalização e normatização, a criança acaba por encontrar na definição de infância um recurso à sua desapropriação subjetiva. Tal definição, imbuída na concepção de sujeito em condição peculiar de desenvolvimento diz respeito àquele que ainda não é considerado sujeito(8).

A criança, segundo as ideias de “possibilidade” e “futuro” que permeiam a noção de infância como uma fase da vida, passou a corresponder à expectativa dessa conjunção representativa. Dito de outra forma, a criança passou a ter o dever de contemplar a demanda de ser comportada, brilhante e capaz (Priszkulnik, 2002). Uma concepção em que há uma sobreposição do conceito de criança, enquanto sujeito de uma fase que pode ser adaptada segundo os interesses de determinado conjunto histórico, cultural e social. 

Atualmente, com o aumento de receitas por psicotrópicos na infância, o que se evidencia é que a criança tornou-se um objeto privilegiado do discurso médico-neurocientífico que, como pretendemos salientar, passou a buscar sua supressão através do silenciamento de comportamentos em “desajuste”. Nessa sobreposição, o que ocorre é que a criança começou a ceder (e isso pode ser feito graças às ferramentas técnico-científicas) o seu lugar de sujeito em prol de uma adaptatividade impossível.

Desse modo, propomos a seguinte questão: Entre os psicofármacos e o silenciamento da subjetividade, não estamos diante da mesma concepção de infans, isto é, daquele que não fala? Frente a tamanhos avanços tecnológicos e científicos parece que estamos a retroceder a um tempo em que a criança não tinha direito à voz.

A criança como sujeito

A inadaptação inerente ao ser humano foi sinalizada por Freud, desde seu trabalho intitulado: “O mal-estar na civilização”, de 1930. Essa impossibilidade remete ao próprio estatuto de sujeito do inconsciente, tal como desenvolvido pela teoria lacaniana, um sujeito dividido pelos registros simbólico, imaginário e real (Safatle, 2005).

No Seminário sobre “O avesso da Psicanálise”, Lacan (1970/1992) salientou que se trata de uma questão, acima de tudo, política, na medida em que a suposta e almejada harmonia e autonomia do Eu (exaltada por Anna Freud) “ninguém sabe o que é” (p. 76). Da mesma forma, apesar de ressaltar sua clínica, Lacan criticou a teoria de Melanie Klein devido ao enfoque imaginário de suas teorizações sobre as relações de objeto. Para Lacan, o problema da escola kleiniana foi ter tomado o objeto para sempre perdido (Das Ding), da formulação inicial freudiana, pela mãe (Costa, 2007).

No Seminário de 1957, o autor retomou a questão do objeto para sempre perdido em Freud e, com isso, questionou a “harmonia” desse objeto. Naquele momento, ressaltou a importância do simbólico no tratamento e pautou sua clínica em uma ética baseada no desejo (Lacan, 1960/1997). Assim, a psicanálise passou a apontar para o fundamento do sujeito do inconsciente, marcado por sua falta-a-ser e mostrou o engodo envolvido em concepções que tendem à supressão da condição estrutural do sujeito do inconsciente.

A criança, como sujeito em psicanálise, é a evidência do que não se consegue adaptar do desejo. Desse modo, por não se tratar de uma condição peculiar de desenvolvimento, a psicanálise apreende a criança como sujeito de uma estrutura que remete ao infantil, presente no atemporal da fantasia (Prates, 2004).

Até Freud, a cena primária revelava-se em uma cena fantasiada que devia ser rememorada através de uma retrospectiva, mesmo que isso não conduzisse a um fato da realidade. Foi a partir da noção de infantil que a passagem para o conceito de estrutura pôde ser pensada como resultado de um processo que deixa um resto e que permite a construção de uma resposta sob a marca de uma ficção (fantasia fundamental). Com essas formulações freudianas que Lacan elaborou a “lógica da fantasia”, ou seja, o infantil enquanto lugaronde a fantasia é construída, o que determina a impossibilidade de interpretação da fantasia (Ibid., p.109).

A fantasia, como aquilo que há de infantil em qualquer sujeito, é uma resposta ao encontro traumático com o significante. Trata-se do significante do desejo, ou seja, da falta no Outro que atravessa a constituição do sujeito. É um ponto de báscula, uma operação significante que gera um resto impossível de significar. Nesse sentido, a constituição do sujeito atesta que a fantasia está nesse instante em que se é sujeito (que passa a pertencer à cadeia metonímica que o define.

A partir dessa contribuição lacaniana, pode-se dizer que o infantil é um lugar onde, na fantasia, se localiza uma operação de encontro traumático com o significante, encontro com o impossível de significar (sinalizando a importância do registro do real na clínica). Uma operação que atravessa a concepção das fases da vida, pois condiz com um resto que é inacessível à consciência, constituindo o inconsciente como atemporal. Desse resto, diante da falta de saber sobre o sexo, o sujeito cria o objeto que, ao mesmo tempo, é causa de desejo e objeto de gozo.

A criança, como sujeito dividido do inconsciente, evidencia o que há de impossível nos atos de governar ou educar o desejo (Lacan, 1970/1992). Diante disso, a criança recebe o direito de fala, por meio da ética da clínica psicanalítica, situando-se além de concepções desenvolvimentistas e adaptacionistas. Esse é, pois, o lugar de onde se trata o infantil que permeia a fantasia, isto é, da criança enquanto sujeito de uma clínica, por excelência, do infantil.

Considerações finais

Neste artigo, tivemos o intuito de oferecer uma leitura que problematizasse o aumento da administração de medicamentos psicotrópicos na infância, a partir de concepções que compreendem a criança como um sujeito em constituição. Tal concepção faz referência a um indivíduo que pode ser moldado ou adaptado para, então, inserir-se em uma determinada lógica social, em que o mal-estar deve ser suprimido, mesmo que seja por meio de drogas.

A supressão da criança como sujeito se dá na medida em que, ao serem classificadas como “doentes” ou “portadoras” de síndromes e transtornos, deixam de serem autoras do próprio sofrimento e passam a ser objeto de cuidados especializados; tratadas como indivíduos de um corpo em desajuste/anormal, por meio de uma lógica que – como salientam os signatários da Carta de Esclarecimento à Sociedade sobre o TDAH – além de pretender representar o verdadeiramente “científico”, prescreve diferentes concepções éticas e políticas no tratamento da questão, encarando o problema como “psicofobia”.

Diante do imperativo adaptacionista, temos a criança como objeto dos avanços científicos, encontrando nos psicofármacos a supressão do sujeito do inconsciente. O que ocorre é um silenciamento medicamentoso – forma emblemática do atravessamento do atual discurso médico-neurocientífico na subjetividade humana, o que implica adequar-se para sobreviver aos ideais impostos de bem-estar e de felicidade.

A criança, como enfatiza a psicanálise, recebe um direito à voz – mesmo que seja por meio de comportamentos desajustados – ao fazer frente aos discursos que visam normatizar e normalizar a subjetividade, por constatar que não é possível governar nem educar o desejo. O engodo presente no uso que se pode fazer da concepção de infância como uma fase da vida a ser superada pelo sujeito ao longo de seu desenvolvimento biopsicossocial se mostra como fracassos de uma adaptatividade impossível. Dessa forma, entre os psicofármacos e o silenciamento da subjetividade, a psicanálise questiona a concepção de infans para fazer falar a criança que tem direito, acima de tudo, à voz.


NOTAS:

(1)Desde sua versão antiga, teorética e qualitativa, à moderna, tecnológica e quantitativa, a ciência é ditadora e criadora de seu objeto. Ao criar seu objeto de estudo, a ciência busca ferramentas teóricas e/ou tecnológicas para que possam ser aplicados os seus conhecimentos (Chauí, 1999, p.256).

(2)Nas palavras do autor: “Quando se sabe que a palavra norma é a palavra latina que quer dizer esquadro e que normalis significa perpendicular, sabe-se praticamente tudo o que é preciso saber sobre o terreno de origem do sentido dos termos norma e normal trazidos para uma grande variedade de outros campos.” (Canguilhem, 1982, p.211).

(3)A maioria dos estudos é realizada em adultos (Brasil & Belisário Filho, 2000).

(4)Atualmente, um projeto de lei da autoria da senadora Ângela Portela, busca instituir medidas para a prevenção do uso inadequado de psicofármacos na população infantojuvenil (Brasília, Projeto de Lei nº 247 de 2012).

(5)O tratamento de escolha é o medicamentoso para crianças em idade escolar, seguido de intervenção comportamental para crianças em idade pré-escolar (Brasil & Belisário Filho, 2000; Polanczyk, et. al., 2011).

(6)Apesar da ausência de marcadores biológicos, relatam haver indicadores de estudos de neuroimagem e neuropsicológicos sobre a relevância de diferentes áreas cerebrais (Ibid.).

(7)No ano de 2008 foram 437.980 compridos de metilfenidato e, em 2010, foram 1.026.169. A expectativa para o segundo semestre de 2011 foi de 1.589.824 comprimidos do mesmo medicamento (CRP-SP, 2011).

(8)Conforme a definição de criança e adolescente formulada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (LEI N 8.069, DE 13-07-1990).

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Silva, J. C.; Dullius, C. E. & Castoldi, D. R. (2011). A relação entre o uso de psicofármacos e o processo de psicoterapia na infância. Revista de Psicologia da Universidade Federal do Ceará. 2(1). 1-5. Disponível em: http://www.revistapsicologia.ufc.br/index.php. Acesso em 11 de novembro de 2012.

Recebido em: 04/08/2012

Aceito em: 07/12/2012

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