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CUIDADOS NO HOSPITAL GERAL: DESDOBRAMENTOS PSICANALÍTICOS NA CLÍNICA DA AIDS.

ANA CLEIDE GUEDES MOREIRA - Psicóloga. Mestre e Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará. Pesquisadora do Hospital Universitário João de Barros Barreto. Diretora do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental da Universidade Federal do Pará. Pesquisadora da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Eneida de Moraes sobre Mulher e Relações de Gênero – GEPEM. Pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social da PUC-Rio. Chercheur associé à l’Université Paris 7 Denis-Diderot. Membro da Réseau Internacional de Psychopathologie Transculturelle. Coordenadora do Projeto Relações de gênero, feminismos, sexualidade, vulnerabilidade e a feminização da epidemia do HIV/aids. acleide@uol.com.br

ALESSANDRO MELO BACCHINI
- Possui título de Psicólogo pela Universidade da Amazônia (2009), Aprimoramento em Saúde pelo Hospital Universitário João de Barros Barreto - HUJBB (2009), Especialização em Psicologia da Saúde e Hospitalar pelo Instituto de Ensino e Pesquisa em Saúde - IEPS (2012) e Mestrado em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará e Pesquisador do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental da Universidade Federal do Pará. Doutorando do em Psicologia Clínica na PUCRio alessandromelobacchini@gmail.com

IGOR FRANCÊS - Possui título de Psicólogo pela Universidade Federal do Pará (2007) e Mestrado em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará. Atualmente é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e Pesquisador do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental da Universidade Federal do Pará e do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social da PUC-Rio. E-mail: igorfrances@yahoo.com.br

RONILDO DEIVIDY COSTA DA SILVA - Possui título de Psicólogo pela Universidade Federal do Pará (2010) e Mestrado em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará. Atualmente é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisador pelo Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental da Universidade Federal do Pará. ronildosilva010@yahoo.com.br.


Resumo: O profissional de saúde que trabalha com portadores de HIV/aids deve, necessariamente, estar familiarizado com os obstáculos que se mostram em sua prática, seja na clínica ambulatorial, em hospital geral, unidades de referência, centros de testagens fixos, itinerantes e unidades básicas de saúde. Nos diversos lugares onde o crescimento da epidemia têm demandado a inserção do profissional e dos serviços de atenção, tais obstáculos podem contribuir para a ampliação dos saberes sobre HIV/aids, solicitando um trabalho de pensamento que ocasiona a proposição de questionamentos, novas hipóteses ou problemas identificados para pesquisa. Dos novos campos de prática aos quais nos referimos, o hospital é o lócus onde germina o desejo de saber que move a presente pesquisa e, com nossos resultados, pretende-se oferecer ao debate nossa contribuição para a inserção da problemática da subjetividade e do sofrimento psíquico na atenção integral a saúde do portador de HIV/aids.
Palavras-chave: Cuidados, Psicanálise, Dispositivos Clínicos, Hospital Geral.

TÍTULO EM INGLÊS

Abstract:: Health professionals who nowadays work with HIV/AIDS must necessarily be familiar with obstacles that are shown in their practice. Whether in the outpatient clinic, general hospital, centers of randomized fixed, mobile or in reference units. In several places where the growth or the epidemic has demanded the insertion of professional care services, such obstacles may contribute to the expansion of knowledge about HIV/AIDS, prompting thoughts, questions, new hypotheses or research problems identified. Of the news fields of practice to which we refer, the hospital is the locus where the desire to know what moves this research and with our results we intend to offer our contribution to the debate; the insertion of the problem of subjectivity and psychic suffering in the integral attention in the health of patients with HIV/AIDS.
Keywords: Care, Psychoanalysis, Clinical Dispositives, General Hospital.

A noção de cuidados permite um avanço no que concerne à nova configuração histórica da tradição clínica que, no século XXI, em todo o mundo ocidental, é multiprofissional (ORENGEL & MOREIRA, 2011). Cuidar é sinônimo de curar, palavra que vem do latim cûra.  A concepção de cura desta pesquisa pretende ser fundamento para possibilitar o debate com as demais disciplinas científicas. Tratando-se de um campo transdisciplinar e multiprofissional e, o desafio de considerar as questões epistemológicas referentes à cientificidade do conhecimento produzido neste campo e, neste sentido, propomos percorrer o caminho que Figueiredo nomeia como atravessamento dos paradigmas (FIGUEIREDO, 2009).

Cuidar,no sentido etimológico do termo, significa cogitar, imaginar, pensar. O verbo cuidar entrou para a língua portuguesa no século XIII, vindo do latim cogitare (CUNHA, 1996). Cuidar é, portanto, em primeiro lugar, cogitar, ou seja, pensar, refletir. O cuidado em saúde pode ser definido como inclinar-se para o outro para pensar nele. Sabe-se que a prática produz pensamentos, fantasias, imagens, afetos e sensações.  Cuidar da saúde é, então, pensar no sofrente, desde que estes pensamentos, imagens, afetos e sensações sejam refletidos, no ato mesmo de cuidar, assim como antes dele, na apropriação da teoria que o fundamenta e, depois dele, na elaboração teórica que deve seguir-se.

Cuidado em psicanálise

No que se refere ao cuidado em psicanálise diante do diagnóstico de HIV/aids, deve-se destacar a impossibilidade de simples transposição do método psicanalítico de clínica e pesquisa ao hospital. A escuta no ambiente hospitalar é circunscrita, neste trabalho, a um público específico, o indivíduo vivendo com aids. Neste caso, deve-se levar em consideração o local de atendimento, que necessariamente implica em tempo curto de permanência, restrito ao período de internação e ao ambiente público, embora reservado, de uma enfermaria. Nesta, não há uma garantia de privacidade para a construção de um espaço de intimidade necessário a uma analítica dos processos psíquicos inconscientes. Um espaço específico deve ser uma exigência para instalação do dispositivo clínico psicanalítico.

A hospitalização é um evento gerador de angústia, sobretudo pela perda do sentimento de identidade (BERRY, 1991). Cabe discussão sobre os efeitos de internação quando ocorre a redução da autonomia do sujeito no exercício de hábitos corriqueiros, como os cuidados com o corpo, roupas, objetos pessoais, incluindo, às vezes, a necessidade de uma pessoa para auxiliar nos cuidados básicos. Há também dificuldades quanto ao exercício de tarefas, antes consideradas simples, como ficar de pé, andar, comer, sentar, conversar.

A sexualidade não tem espaço de livre expressão no hospital, sendo radicalmente excluída neste cenário, o que não pode deixar de causar espanto, já que ela faz parte da condição humana e a comunicação do diagnóstico de aids constitui, quase sempre, um trauma sexual. A repressão da sexualidade na instituição retorna, às vezes, como sintoma psicopatológico e, também, em condutas transgressivas, passíveis de disciplinarização. Não há espaço para visitas íntimas, como em instituições de longa permanência, onde o contexto é outro. Seria desejável que o debate multiprofissional abordasse a sexualidade em sua dimensão de prazer, de modo que a intervenção de todos levasse em conta o trauma sexual e seus efeitos subjetivos, tais como o conflito psíquico e a angústia. Esta última pode estar associada a fatores diversos, como inquietações ligadas à vida do paciente fora do hospital, suas condições socioeconômicas, problemas financeiros, de emprego e renda, devidos, ou não, ao afastamento pela internação.

A hospitalização atinge também os familiares do paciente em suas relações entre si, na comunicação entre todos e nas funções que o usuário desempenha na configuração familiar, impondo a necessidade de novos arranjos nas funções dos indivíduos, para dar conta desta ausência. Têm-se ainda as fontes de sofrimento psíquico ligadas propriamente às características da epidemia, no contexto da qualidade da atenção integral a saúde, na região e instituição onde o paciente encontra-se: diagnóstico tardio, instalação súbita de doenças oportunistas e incerteza sobre o prognóstico.

O cotidiano no hospital abre espaço para a oferta de escuta do analista, na medida em que o sujeito tem algo para falar que vai além de suas queixas orgânicas. Existem inúmeras atribuições e desdobramentos delineados com o desenvolvimento da psicanálise fora do setting tradicional da clínica. Tais desdobramentos serão abordados a partir de dois pontos analisados por Moreira (2002) que são fundamentais à escuta analítica no hospital. O primeiro ponto diz respeito precisamente ao texto Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise em que Freud afirma:

Na prática, é verdade, nada se pode dizer contra um psicoterapeuta que combine uma certa quantidade de análise com alguma influência sugestiva, a fim de chegar a um resultado perceptível em tempo mais curto – tal como é necessário, por exemplo, nas instituições. Mas é lícito insistir em que ele próprio não se ache em dúvida quanto ao que está fazendo e saiba que seu método não é o da verdadeira psicanálise (FREUD, 1912, p.157).

Esta advertência de Freud surge como fundamento norteador da prática e das questões teóricas suscitadas nela, quando o que está em pauta é o atendimento do psicoterapeuta de base psicanalítica voltado a pacientes internados no hospital. Deve-se observar que, no hospital geral, grande parcela dos pacientes carrega o estigma de morte, pois ao receberem um diagnóstico positivo para aids, muitas vezes, a doença já se encontra em estágio avançado. Chega-se, então, ao segundo ponto, relativo à temporalidade nos cuidados que o profissional de saúde deve manter, frente a um paciente com aids:

[...] em muitos casos, a partir da comunicação ao paciente de um diagnóstico de Aids, a evolução a óbito se dá em curto espaço de tempo [...]. O limiar entre a resistência, no sentido analítico do termo, e o mal-estar e dor orgânicos como imperativos reais, colocam enormes problemas para uma escuta que se oferece em uma situação em que há ameaça real à integridade do sujeito em prazos extremamente curtos (MOREIRA, 2002, p 16).

O tempo cronológico não é impedimento à instalação de um processo psicanalítico, por este se dar, costumeiramente, em um prazo impossível de estipular, pois como ‘processo’ é um movimento que depende dos “passos” da dupla, paciente e psicoterapeuta, mais as singularidades de cada indivíduo e as implicações institucionais. Dito de outra forma, o que é colocado em questão é o tempo do inconsciente, do processo primário, que é atemporal, não obedece ao relógio. O tempo, portanto, é vivido no interior dessa relação dialógica que se estabelece entre o psicoterapeuta e o paciente no intuito de oferecer a este último a transformação da vivência do sofrimento em experiência sobre o sofrimento, ao encontrar palavras para ser falado.

Como analisa Freud em Sobre o início do tratamento:

Uma pergunta importuna que o paciente faz ao médico, no início, é: ‘Quanto tempo durará o tratamento?’[...] Nossa resposta assemelha-se à resposta dada pelo Filósofo ao Caminhante, na fábula de Esopo. Quando o caminhante perguntou quanto tempo teria de jornada, o Filósofo simplesmente respondeu ‘Caminha!’ e justificou sua resposta aparentemente inútil, com o pretexto de que precisava saber a amplitude do passo do Caminhante antes de lhe poder dizer quanto tempo a viagem duraria (FREUD, 1913, p. 169-170).

Desdobramentos: inserção na instituição hospitalar

Propõe-se aqui a construção de teoria do processo analítico em nova modalidade, a saber, a construção de um dispositivo clínico em hospital geral.  Nesse sentido, o fundamental é que nesse encontro entre paciente e o psicoterapeuta de orientação psicanalítica, o primeiro possa falar e que, nesse discurso sobre si, ele se dê conta de que seu eu é também um outro, inconsciente e estrangeiro a si mesmo, que pode emergir no campo transferencial.

Já por estar em uma instituição hospitalar, o psicoterapeuta deve analisar as implicações de sua atuação em equipe transdisciplinar e multiprofissional, em que diversos paradigmas orientam a prática de cuidados em saúde. Assim, a solicitação dos serviços da psicologia pode vir entrelaçada a expectativas que produzam inquietações, pelas limitações da teoria ou da prática, colocando novos problemas de pesquisa e exigindo do psicoterapeuta/pesquisador a produção constante de teoria, que apresente sentidos outros da sua prática e explicite melhor clareza nessa relação.

Nessa realidade institucional, existem demandas de profissionais da equipe multidisciplinar para “acalmar” algum paciente, ou então para “convencê-lo” quanto à adesão a algum tipo de medicação ou de procedimento com especificidades, às vezes, ainda não debatidas ou publicadas, que implicam em disciplinarização do portador de HIV/aids que, portanto, solicitam o trabalho de produção do pensamento. Nesse ponto, é interessante atentar para algumas diferenças fundamentais no que se refere às especificidades da prática médica em relação à prática de cuidados do psicoterapeuta que leva em conta a subjetividade e o sofrimento psíquico. A medicina busca regulamentar, classificar e enquadrar doenças para buscar uma cura, tendo conseguido, na clínica da aids, vários avanços naquilo que se propõe. A prática médica objetiva avaliar o sintoma pela queixa do paciente, estabelecer um diagnóstico fundado em tecnologia por exames complementares de várias ordens e nas disciplinas científicas que a constituem como profissão para, a partir daí, adotar procedimentos para recuperar a integridade física do paciente e eliminar o sintoma, concebendo o portador da enfermidade como um organismo que precisa ser restaurado.

A psicanálise, ciência do inconsciente, concebe outra modalidade de cura, por considerar não haver um modelo de homem normal a ser seguido. Assim, o sintoma apresenta-se como indicativo do caminho para os pensamentos inconscientes, pois este se coloca como substituto de algo subjacente, ou seja, trata-se de uma formação de compromisso entre o pulsional e os interditos, que pode ser decifrado pela interpretação. No sintoma e no sofrimento psíquico temos o ponto de partida para escutar o indivíduo, conduzindo-o a elaborar a própria história sobre seu adoecimento.  Como analisa Levy:

Entendemos que a psicanálise possa modificar a relação do sujeito em tratamento com suas pulsões, permitindo o acesso aos conteúdos inconscientes e trazendo-os para a consciência, permitindo outro destino de satisfação das pulsões, decifrando o sentido de seus sintomas (LEVY, 2008 P.76).

O sintoma em psicanálise tem uma função reveladora de conflitos psíquicos. O paciente encontra-se inserido em uma instituição e os diversos conflitos psíquicos e mecanismos de defesa que utiliza para lidar com a angústia face sua vida, sua enfermidade e internação, incluindo a ordem disciplinar, a que se vê obrigado a se submeter, na difícil relação saúde-doença, devem ser analisados. Nesse contexto, a escuta psicanalítica engloba logicamente uma especificidade técnica e teórica desafiante.

Propõe-se que há, portanto, nesse desafio, a possibilidade de oferecer uma escuta analítica, pelo recurso do manejo da transferência, a análise de sonhos, atos falhos e sintomas, de modo que o paciente construa sua história, criando, como dito anteriormente, condições para que ele possa transformar sua vivência do sofrimento em experiência sobre o sofrimento. Assim, o paciente pode deixar de ser apenas um número de leito, reposicionando-se nesse lugar como um sujeito que participa de seu tratamento, sendo dono do próprio corpo e possuindo uma história pela qual pode se responsabilizar.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERRY, N. O sentimento de identidade. São Paulo: Escuta, 1991.

CUNHA, A.G. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

FIGUEIREDO, L. C. As diversas faces do cuidar: novos ensaios de psicanálise contemporânea. São Paulo: Escuta, 2009.

FREUD, S. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912). In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. Vol. XII.

__________. Sobre o início do tratamento (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I) (1913). In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. Vol. XII.

LEVY, Elizabeth Samuel. Desamparo, Transferência e Hospitalização em Centro de Terapia Intensiva, 2008, 108f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) Universidade Federal do Pará, Belém, Pará, 2008.

MOREIRA, A. C. G. Clínica da melancolia. São Paulo: Escuta/Edufpa, 2002.

ORENGEL, J. MOREIRA, A. C. G. (2011) A transferência como dispositivo clínico. In: 7º CONPSI, UFBA.  http://www.conpsi7.ufba.br/ Acessado em 19/11/2012.

Recebido: 12/2012
Aceito: 01/2013

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