Lipis

DO ACOLHIMENTO À AUTONOMIZAÇÃO: O QUE DIZEM ADULTOS QUE VIVERAM INSTITUCIONALIZADOS. BREVES NOTAS METODOLÓGICAS.

JOÃO PEDRO GASPAR Professor no Ministério da Educação e Ciência, Investigador do Instituto de Psicologia Cognitiva e Desenvolvimento Vocacional e Social da Universidade de Coimbra e Pesquisador Associado do LIPIS. Doutorando em Psicologia da Educação, Mestre em Geociências pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, gasparjp@gmail.com


Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar uma descrição da metodologia utilizada num estudo compreensivo das transições de adultos e jovens adultos que viveram um longo período de tempo em Lares de Infância e Juventude (LIJ) – casas de acolhimento para crianças e jovens em risco, de acordo com as suas perspectivas. Pretende-se ilustrar uma articulação de técnicas e procedimentos utilizados na análise dos desafios da autonomização de ex-institucionalizados e a sua integração em diferentes contextos de vida (social, profissional e familiar). No referido estudo, discute-se o levantamento da realidade do país – Portugal, comparativos internacionais e também a evolução da legislação a partir de uma perspectiva histórica. Conclui-se da importância da adaptabilidade do investigador, para compreensões tão vastas como aferir a relação entre o apoio e a formação proporcionada enquanto institucionalizados e a sua posterior integração na sociedade, através de descrições auto-biográficas.
Palavras-Chave: Crianças e Jovens acolhidos; Autonomização; Transições; Metodologias

TÍTULO EM INGLÊS

Abstract:The aim of this paper is to present a description of the methodology used in a comprehensive study of the transitions of adults and young adults who have lived a long time in Homes for Children and Youth - foster homes for children and youth at risk, according to their prospects. It is intended to illustrate an articulation of technics and procedures used in the analysis of the challenges of empowerment of ex-institutionalized and their integration in different contexts of life (social, professional and family). In this study, we discuss the surveying of the reality of the country - Portugal, international comparisons and also the evolution of legislation from a historical perspective. This underscores the importance of adaptability of the investigator to assess understandings as vast as the relationship between the support and training provided while institutionalized and their subsequent integration into society, through descriptions auto-biographical.
Keywords: Children and Youth in Foster homes; Institutionalization; Transitions; Methodologies

«É tempo de pensar nos outros - coitadinhos - nos que padecem, de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria…»
(Adaptado de António Gedeão)

INTRODUÇÃO

É comumente aceite que as franjas da sociedade são esquecidas no seu real conhecimento, passando à margem justamente por serem consideradas grupos pouco representativos. Mas não será a sociedade formada apenas por muitas “franjas”, sendo cada uma delas merecedora de análises consequentes que as possam tornar mais vísiveis e menos vulneráveis? Em Portugal, de resto como na maior parte dos países desenvolvidos, são muitas as crianças e jovens negligenciadas e vítimas de maus tratos. Consideram-se “em risco”, mas a expressão pode camuflar situações já vivenciadas e algumas repetidamente. Do abandono à violência física e sexual, passando pela privação de liberdade e de educação/ensino, pode-se encontrar de tudo um pouco.

Para estes menores, embora erradamente, a institucionalização costuma ser vista como um último recurso, pois a ideia de separar um filho dos progenitores e depositar a criança num “orfanato” é por si só assustadora. No entanto, não sendo desejável, é uma solução que acontecendo num Lar de Acolhimento funcional, pode mitigar o cariz negativo e até trazer benefícios, desde logo o corte com os maus tratos e a convivência com pares, também eles vítimas e os vínculos que entre estes se podem estabelecer.

Trabalhar com infantes e jovens é uma riqueza ímpar e fazê-lo com quem sofreu abandono e tem tantas carências, torna-se uma experiência rica ao ponto de querermos sempre ir mais além, não só nos gestos, mas sobretudo no conhecimento aprofundado. É aqui que se levanta o problema da informação a recolher e como tratá-la, no fundo, a  metodologia e/ou metodologias a aplicar num campo tão vasto e num objecto tão difuso.(1)

Analisar a problemática do acolhimento em instituições preparadas para esta população infantil e juvenil, que é retirada à família para desta ser protegida considera-se questão central, com o intuito de identificar padrões que levaram ao sucesso ou ao fracasso, boas práticas e erros a evitar, acontecimentos marcantes que desencadearam angústias, frustrações, mas também vinculações e filiações que motivaram transições positivas e autonomizações de sucesso. Com base nas perspectivas dos intervenientes, procura-se aferir a determinância que as afiliações desenvolvidas antes e principalmente no período de institucionalização, tiveram enquanto interações seguras, na perspectiva da teoria ecológica do desenvolvimento humano, percebendo como a institucionalização pode ser um fator positivo ou negativo nas transições que já vivenciaram e na preparação para a vida adulta - autonomização.

Um pouco da história e do contexto

“Estranhos tempos quando ser jovem e ser vulnerável implica quase um pleonasmo”
Vilhena et al.

O número de menores referenciados pelas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) e mesmo o total de acolhidos, resulta num grupo razoável de população jovem portuguesa, não se vislumbrando num curto/médio prazo uma redução significativa, merecendo por isso uma atenção especial, reforçada em parte pela atual conjetura económica europeia.

Em Portugal, o tratamento inadequado aos menores não é um problema recente, pois já nos séculos XVII e XVIII se verificava um grande número de crianças abandonadas, levando D. Maria I a implementar normativos legais que serviram de sustentação para a organização do acolhimento das crianças em instituições. Assim, também como sequência do terramoto de 1755, surge em 1780 a Casa Pia de Lisboa, provisoriamente instalada no Castelo de S. Jorge, recebia crianças órfãs e abandonadas, além de mendigos e prostitutas, em sectores diferenciados. Em 1911 o Estado formaliza a Lei da Infância e da Juventude, onde prevê intervenções de Instituições Particulares de Solidariedade Social e Centros de Acolhimento no sentido de encaminhar para lá menores negligenciados. Trata-se de uma Lei que considera as crianças e jovens até aos dezasseis anos, vítimas de maus-tratos e autoras de crimes, como merecedores da intervenção tutelar do Estado, promovendo a sua proteção e a prevenção da delinquência.

Em 2011 o número de crianças e jovens caracterizados pelas entidades competentes ascendia a 11.572, sendo que uma percentagem elevada (77%, correspondendo a 8.938 menores) estavam acolhidos (2). Por outro lado, o número de acolhidos em Lares de Infância e Juventude (LIJ) ultrapassa claramente (65% do total de institucionalizados) os restantes menores em outras respostas sociais, como Centros de Acolhimento Temporário ou Acolhimento Familiar, pelo que fará sentido estudar a realidade mais abrangente desta problemática (3). De resto, os LIJ procuram suprir as falhas no exercício da função parental das famílias de origem das crianças e jovens, proporcionando-se condições de vida semelhantes às que ocorrem em contexto familiar normativo, sendo a autonomização o destino mais recorrente, o que justifica uma sequência do estudo, com base no esquema conceptual exposto na Figura 1.


         Figura 1 - Esquema conceptual do percurso de acolhimento

Os dois LIJ em estudo acolhem menores de ambos os sexos e operam em regime aberto, de acordo com as normas gerais de funcionamento constantes no regulamento interno de cada equipamento, ou de acordo com as deliberações das entidades oficiais com competência na matéria de infância e juventude. Cada Lar tem um quadro de funcionários que assegura o funcionamento dos serviços prestados, visando colmatar as necessidades educativas, de animação e ocupação de tempos livres, bem como as questões de natureza psicossocial. É constituído por técnicos de serviço social, psicólogos, professores, monitores e auxiliares de ação educativa, além de funcionários que asseguram a alimentação, higiene, transportes e área administrativa (4).

Estas duas instituições pretendem assegurar os meios necessários ao desenvolvimento físico, psicológico, social, escolar e profissional de cada criança/jovem e a sua inserção na sociedade, com vista a satisfazer as suas necessidades básicas, promover a sua reintegração na família/comunidade e contribuir para a sua valorização pessoal, social e profissional. Um dos Lares foi fundado em 1973 tendo o outro aberto oito anos mais tarde. Ambos funcionam permanentemente, durante as 24 horas do dia, em todos os dias do ano. No entanto, durante o fim-de-semana e período noturno, onde a presença dos menores é mais constante, verifica-se uma quase ausência de professores, técnicos e encarregada geral, o que limita a oferta que vá além da alimentação e higiene.

Com o intuito de compreender as vicissitudes  do processo de institucionalização e autonomização de crianças e jovens, tornou-se fundamental que o investigador conseguisse chegar ao âmago de alguns participantes, sem deixar de ter dados, embora mais superficiais, de uma amostra representativa, para que o resultado final pudesse espelhar o mais fielmente possível a ótica dos intervenientes no estudo. Apresenta-se então um recorte da pesquisa realizada com algumas dezenas de adultos e jovens adultos que durante longos anos viveram institucionalizados, para a qual foram delineados objetivos gerais (5):

No fundo, ressalta a importância de investigar boas práticas por parte dos cuidadores e das Instituições de acolhimento, capazes de promover transições favoráveis ao longo da vida dos menores em risco, bem como o seu inverso. Para atingir os objetivos propostos, este trabalho tem por base uma metodologia qualitativa, baseada predominantemente em entrevistas aprofundadas, proporcionadoras de descrições detalhadas das diferentes experiências pessoais e sociais a ex-acolhidos de dois LIJ. Pretende-se, no desenrolar de todo o trabalho (6), compreender a perceção que os ex-institucionalizados têm da relação entre o apoio e a formação que lhes foi proporcionada enquanto institucionalizados e o eventual contributo desses adquiridos na sua posterior integração nos diferentes contextos de vida.

O papel do investigador

Qualquer estudo interpretativo exige o acesso do investigador a dados sobre as conceções, os significados ou os valores expressos mais ou menos explicitamente pelos indivíduos, por isso a validade do estudo depende também da relação de confiança entre os participantes e o investigador. Erikson (1986) propõe quatro formas de estabelecer e manter essa relação durante a investigação: neutralidade de juízos face aos indivíduos, confidencialidade, envolvimento e clareza.

Dado que qualquer investigação não é independente da pessoa que a desenvolve e dos referenciais que possui, torna-se portanto um processo pessoal de construção de um objeto de estudo e desconstrução de ideias pré-concebidas, de formas simplistas de ver o mundo e de perspetivar a realidade envolvente. A própria escolha do tema tem por base o trabalho desenvolvido durante mais de uma década em LIJ e no apoio aos jovens adultos que lá viveram. Esta atividade permitiu conhecer de perto pessoas que foram acolhidas enquanto crianças e os seus cambiantes. Mas a convivência com esta realidade é muito forte, não só pela panóplia de sentimentos (compaixão, esperança, impotência…) como pela necessidade de procurar compreender este fenómeno que pode marcar de forma irreversível tantas personalidades, como percetível na Figura 2.


Figura 2 - Esquema conceptual da dinâmica da institucionalização

A organização do trabalho

1 - Fundamentação e justificação epistemológica do trabalho

Abordando a fundamentação conceptual para a metodologia utilizada e tendo consciência que todos os resultados em investigação são respeitantes à problemática mas também ao esquema teórico no qual se baseiam os métodos através dos quais foram obtidos, impõe-se explicitar os fundamentos do que foi usado neste estudo.

Ao pretender conhecer os significados atribuídos pelos adultos e jovens adultos acolhidos em Lares, privilegiou-se o que é próprio do método qualitativo, como interpretações, crenças, costumes, posturas e conceções. Ou seja, investigando através dos relatos dos protagonistas, são os próprios indivíduos que, através das suas palavras, dão sentido às suas vivências, garantindo assim que o elemento essencial na interpretação da ação é o dimensionamento do significado subjetivo daqueles que dela participam. Entende-se que dos intervenientes, enfatizando a definição individual subjetiva e as vivências relatadas.

A opção pelas entrevistas semi-estruturadas, respondidas a dois tempos, abrangendo a componente escrita e oral, permitiu ao entrevistado falar da sua própria vida, privilegiando, sempre que entendeu, uma estrutura de discurso cronológico, dando conta da sua trajectória, numa visão pessoal, pois é vulgarmente aceite que os métodos qualitativos permitem uma visão holística, através da descrição, valorizando a compreensão interpretativa na recolha e análise dos dados dos actores intervenientes, na medida em que integram acontecimentos, eventos implícitos e verbalizados: percepções, representações, opiniões, discursos, gestos, práticas, experiências (Lessard et al, 1996).

Através destas entrevistas tentou-se “montar o puzzle com o mosaico de imagens que a vida proporcionou”, fazendo uma reconstituição subjectiva dos percursos dos jovens (a posteriori, passando pelo filtro da memória), e implicando três ordens de realidades (Bertaux, 1997):

2 - Elaboração de um levantamento das respostas sociais portuguesas para as crianças e jovens em risco, levando em conta a sua evolução temporal e um comparativo com países vizinhos, suportando a institucionalização nas disposições legais em vigor.

3 - Caracterização e compreensão das Instituições intervenientes no trabalho, incluindo a realização de entrevistas aos responsáveis e descrição do trabalho de observação participante.

4 - Intervenientes envolvidos: Amostra -  salienta-se a existência de uma listagem pré-determinada pelos contactos recolhidos, partindo-se de um universo de cerca de uma centena de jovens adultos que viveram vários anos nos lares envolvidos no estudo, acabando por serem dirigidas entrevistas a 26 ex-utentes, tendo sido recolhidas apenas 24, por manifesta falta de disponibilidade num caso e alguma instabilidade emocional no outro. A selecção foi feita de modo aleatório, dependendo, essencialmente, da disponibilidade de cada indivíduo (7).

Para assegurar aspectos relacionados com a fidelidade e a validade do estudo, procurou-se assegurar que seria atingida a saturação dos dados (8), bem como salvaguardar as questões de ordem ética normalmente levantadas quando são utilizadas amostras muito pequenas e em que trabalhamos com informações verdadeiramente pessoais, por se correr o risco de possível identificação dos informadores e por isso não cumprir o compromisso de confidencialidade que teria de ser respeitado (Guerra, 2006).

No contacto inicial foi explicada claramente a cada participante a finalidade científica da pesquisa, garantida a confidencialidade, a ausência de dano do processo e o direito de recusa ou interrupção no momento em que desejassem. Os trabalhos de recolha decorreram entre Setembro de 2011 e Março de 2012, com especial aproveitamento da época natalícia, pois os participantes vivem em várias zonas do país (Algarve, Lisboa, Coimbra…) e da Europa (França, Áustria, Alemanha, Suíça…).

Metodologia - a ação centrou-se no recurso a entrevistas semi-estruturadas a ex-acolhidos, que começaram por uma componente escrita, onde os participantes tiveram algumas semanas para refletir e registar à medida que tivessem disponibilidade temporal e emocional, havendo posteriormente um contacto presencial, com recurso a gravação. Após um contacto inicial que aconteceu presencialmente, por telemóvel ou por via informática, houve recurso ao correio electrónico para fazer chegar o guião da entrevista, que após preenchimento foi devolvido pelo mesmo processo. Concluída a análise das respostas, foram promovidos encontros presenciais para complementar informações e aprofundar algumas percepções (9). Seguindo esta metodologia, os diversos contactos e as entrevistas aos participantes, embora tenham consagrado muito tempo, foram fundamentais para o estudo pois permitiram desenvolver uma aproximação relacional, de observação abrangente e optimizar a etapa metodológica seguinte - sinopse e análise do seu conteúdo.

5 - Recolha de opiniões sobre as principais conclusões dos dados já recolhidos, por parte de entidades envolvidas na problemática em estudo (Direção Regional de Educação, Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, Departamento de Investigação e Ação Penal, Segurança Social, Tribunal de Família e Menores, Polícia de Segurança Pública, Observatório Permanente da Adopção, Centro Educativo e Instituições envolvidas no estudo). Inicialmente os contactos foram realizados ao mais alto nível, no sentido de por um lado os responsáveis pelas entidades indicarem técnicos com experiência e contacto direto com menores acolhidos em LIJ e por outro, tentando fugir ao “politicamente correto” e às respostas de circunstância, visto o estudo ser anónimo e confidencial.

6 - Relatos auto-biográficos de adultos ex-acolhidos, diferenciando autonomizações com integração bem sucedida, de situação de vulnerabilidade, enfatizando as transições.

7 - Elaboração de conclusões e implicações para a intervenção na área de intervenção ao nível do acolhimento inicial, acompanhamento e autonomização, bem como uma reflexão crítica sobre metodologias de acolhimento institucional de crianças e jovens, nomeadamente ao nível da humanização/vinculação e do apoio à autonomização e inclusão.

O que dizem os jovens

As crianças e jovens sentem particular temor pela quebra dos laços afetivos que vão desenvolvendo ao longo da sua existência. Na maior parte dos casos, o meio com maior impacto nas suas vidas é o LIJ que o acolheu, em muitos casos, durante mais de uma década. Não será por isso de estranhar que alguns relatem essa fase como o período das suas vidas mais positivo, principalmente se o recordarem como um meio privilegiado para o estabelecimento de laços afetivos que se mantiveram após deixar a instituição.

«Era uma relação de fraternidade, criaram-se laços importantes, pessoas pelas quais tenho a maior consideração. Pessoas com quem passei o mais longo e melhor momento da minha vida, era raro haver atritos relevantes entre utentes. Foi como ganhar uma nova família e novos irmãos.»
(Ex-acolhido que viveu cerca de 13 anos num Lar de Infância e Juventude)

Outros há que sentem revolta pela forma como foram tratados no acolhimento, relatando ser encarados como potenciais delinquentes com um futuro condicionado, não vendo reconhecido o facto de enquanto crianças terem sido arrastados num turbilhão de meios adversos.

 «“Os teus pais abandonaram-te e nem querem saber de ti! Vocês nunca vão ser nada na vida!” Este tipo de frases repetidas sistematicamente ao longo dos anos, por algumas funcionárias, causam-me ainda hoje angústia e revolta, principalmente por virem de pessoas que ganhavam a vida para cuidar de nós.»
(Ex-acolhida que viveu cerca de 12 anos num Lar de Infância e Juventude)

No entendimento dos intervenientes no estudo, a distribuição de poderes por parte da direção, equipa técnica e pedagógica, deve ir avançando gradualmente à medida que os jovens vão amadurecendo e desenvolvendo mais competências. Reconhecem a importância da preparação para situações futuras, como serem pais, considerando que as instituições que acolhem crianças e jovens não são prisões, hospitais ou pensões com hóspedes, onde as regras são afixadas nas paredes, valorizando as conversas constantes e a transmissão de afetos.

«Hoje dou mais valor a quem me soube transmitir valores, ainda por cima com uma insistência que na época considerava uma chatice (…) Essa paciência com os meninos, ajudou a criar um ambiente familiar num espaço onde as paredes eram frias e algumas pessoas também.»
(Ex-acolhida que viveu cerca de 10 anos num Lar de Infância e Juventude)

Para estudar esta temática, afigura-se fulcral vivenciar as ocorrências do acolhimento, embrenhar-se nas adversidades das vidas dos menores institucionalizados, “respirando o mesmo ar”, para que a confiança entre o investigador e os intervenientes possa fazer emergir os sentimentos e as perceções mais próximas da realidade. É importante que seja uma figura com a qual tenham partilhado experiências, para que os relatos não tenham coibições, de resto, no acolhimento estas entidades são fundamentais no crescimento integral dos menores. A relação criada com o staff desempenha um papel central na vida destas crianças e adolescentes, já que esses adultos assumem verdadeiros papéis no sentido de os orientar, proteger e acarinhar, constituindo inclusivamente as suas referências. Se estas relações forem bem sucedidas, o menor poderá ter um percurso sócio-escolar equilibrado, construído numa boa integração social, com aumento da auto-estima, e melhor capacidade de lidar com a rejeição. Mormente em jovens ex-institucionalizados, a perda de uma dessas referências pode desencadear um processo que conduza a uma diminuição da resiliência.

«A relação dos funcionários com os utentes pode-se dividir em duas ideias diferentes, havia os funcionários que trabalhavam apenas porque era o seu emprego e havia aqueles funcionários que para além de ser o emprego eram um porto para ajudar crianças necessitadas de carinho, de amor, de tudo o que não encontraram numa família (...) também posso dizer que estes foram os tais que me fizeram crescer e me deram aquela educação, ideias, mais propriamente, ajudaram a formar a minha pessoa, a pessoa que sou hoje.»
(Ex-acolhido que viveu cerca de 10 anos num Lar de Infância e Juventude)

O momento da saída da Instituição, atendendo a que na maior parte dos casos se trata de uma autonomização, pois a família de origem não existe enquanto tal, é assinalado por quase todos os intervenientes no estudo como marcante e angustiante, dado o receio de falhar e a impreparação que não sendo admitida, é sentida. Na maior parte dos casos ocorre uma rutura com a Instituição, não só com o espaço físico, onde sentem que não são bem-vindos, mas também nos contactos com os técnicos, havendo um “apagar” forçado do lar onde cresceram e a que carinhosamente chamam “casinha”.

«Para ser sincera, não tive qualquer apoio. Na altura senti-me perdida e não tive ninguém que me ajudasse. Fiz as minhas mudanças sozinha e consegui. Ainda me lembro como se estivesse a viver esse momento agora (…) Mesmo no ponto em que me despedi daquela casa tão grande mas que é a minha casinha. Aí não senti apoio de ninguém e até hoje não tive ninguém que me ligasse para saber como estou, como me encontro, se preciso de apoio, nada.»
(Ex-acolhida que viveu cerca de 15 anos num Lar de Infância e Juventude)

O investimento por parte dos cuidadores, nas crianças e jovens institucionalizados é tido como fundamental e tenderá a refletir-se no seu bem-estar atual bem como na futura integração na sociedade, sendo urgente investir no acompanhamento e também no “desmame” dos jovens na desinstitucionalização, para que este ocorra sem sobressaltos e após uma preparação para o mundo exterior que os espera.

Considerações Finais

Nota-se grande interesse por parte dos ex-acolhidos no investimento nestas questões, também para tentar perceber a importância de existir alguém capaz de facilitar a reorganização da vinculação nos menores ainda acolhidos (alguns familiares e/ou amigos), sendo que vários sujeitos mostraram contentamento por terem participado, chegando mesmo a agradecer por o estudo lhes ter proporcionado uma reflexão profunda “sobre o seu passado, as suas vivências e sobre si próprios”. Este facto contribuiu paea que fosse possível analisar o processo de desinstitucionalização, nomeadamente o momento da saída, os sentimentos gerados e o processo de autonomização pessoal, social e profissional, levando ainda em consideração perspetivas de empregadores, chefias e colegas de trabalho, além de parceiros de residência e eventuais familiares que possam ter sido, entretanto, constituídos.

Com este estudo concorre-se para a apresentação de conclusões sobre áreas de intervenção ao nível do acolhimento inicial, acompanhamento e autonomização, bem como uma reflexão crítica sobre metodologias de acolhimento institucional de crianças e jovens, nomeadamente ao nível da humanização e do apoio à inclusão. Desde logo salienta-se que os Lares de Infância e Juventude devem ser moderadores, protegendo e criando uma envolvência segura, sendo desejável que através dos seus cuidadores, tendam a transformar vivências negativas em representações convenientes, logo que consigam funcionar como amortecedores de raivas e frustrações, nunca respondendo com insultos ou violência (ainda que verbal), destacando antes os aspetos positivos da vida, ajudando a melhorar o autoconceito e reconstruindo identidades sofridas. Também foi notório que nas perspetivas dos entrevistados, o suporte para a vida após a saída do acolhimento, reside, em grande parte, nas aprendizagens mas sobretudo nos exemplos e nos vínculos que vivenciaram e desenvolveram enquanto institucionalizados, com os cuidadores e entre pares.

Quem viveu dez anos num Lar nunca teve de decidir nada, teve sempre alguém que decidisse por ele. A maioria não tem autonomia financeira, não sabe sequer fazer uma sopa e não tem quaisquer competências de gestão e de decisão.”
Idália Moniz, Secretária de Estado Adjunta e da Reabilitação, (Dez. 2010).

Por tudo isto, não podemos esquecer os menores que permanecem nas instituições, sendo necessário ponderar como se organizam os afetos, quais as suas necessidades, quais os constrangimentos das instituições, a formação dos seus profissionais e dirigentes, no fundo, qual a estrada que nos leva aos afetos e o criar laços, para assim evitar que continuem as gerações futuras num “crescer vazio”. Talvez esta seja uma das questões mais polémicas e de difícil resposta… mas um desafio a seguir no trabalho em curso, para uma verdadeira resposta de qualidade a quem já perdeu tanto.


NOTAS:

(1) Este estudo faz parte do trabalho de Doutoramento em Psicologia da Educação, a decorrer na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra

(2) Comissão Nacional de Proteção das Crianças e Jovens em Risco (2012). Relatório Anual de Avaliação da Atividade das Comissões de Proteção de Menores em 2011.

(3) Instituto de Segurança Social (2012). Plano de Intervenção Imediata. Relatório de Caracterização das Crianças e Jovens em Situação de Acolhimento em 2011. Lisboa: ISS.

(4) Há uma tendência para prolongar a manutenção das mesmas pessoas nos cargos, sendo que a maioria dos funcionários já trabalha na instituição há mais de duas décadas, sendo esporádicas as alterações ao quadro de pessoal.

(5) Este artigo remete para uma pesquisa mais ampla (Gaspar, J.; Santos, E. & Alcoforado, J. - Os desafios da autonomização: estudo compreensivo dos processos de transição para diferentes contextos de vida, na perspetiva de adultos e jovens adultos ex-institucionalizados – no prelo).

(6) Este artigo remete para uma pesquisa mais ampla (Gaspar, J.; Alcoforado, J. & Santos, E. - Respostas educativas para menores em risco: estudo de caso duplo da institucionalização em lares de infância e juventude – no prelo).

(7) Alguns dados biográficos foram fornecidos pelas Instituições

(8) De acordo com Rousseau e Saillant, a ideia da saturação dos dados, “faz referência ao momento da colheita de dados a partir do qual o investigador não aprende nada de novo dos participantes ou das situações observadas” (Rousseau e Saillant, 2003: 156)

(9) Por manifesta falta de competências para a escrita organizada por parte de alguns entrevistados, o recurso à oralidade presencial prevaleceu claramente sobre os registos escritos

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERTAUX, D. Les Récits de Vie. Paris : Nathan, 1997.

Comissão Nacional de Proteção das Crianças e Jovens em Risco (2012). Relatório Anual de Avaliação da Atividade das Comissões de Proteção de Menores em 2011. [Disponível em http://www.portugal.gov.pt, consultado em 02/06/2012].

Erickson, F. Qualitative methods. In: Research in teaching and learning. Vol. 2, New York: Macmillan Publishinf Company, 1986.

GUERRA, I. Pesquisa qualitativa e análise de conteúdo: sentidos e formas de uso. 2. ed. Estoril: Principia, 2006.

Instituto de Segurança Social (2012). Plano de Intervenção Imediata. Relatório de Caracterização das Crianças e Jovens em Situação de Acolhimento em 2011. Lisboa: ISS.

LESSARD-HÉBERT, M.; GOYETTE, G. & BOUTIN, G. Investigação qualitativa: fundamentos e práticas. (Trad portuguesa). Lisboa: Instituto Piaget, 1996.

Rousseau, N.; Saillant, F. Abordagens de investigação qualitativa. In: FORTIN, M. O processo de investigação: da conceção à realização (N. Salgueiro, Trad., 3.ª ed.). Loures: Lusociência, 2003.

Vilhena, J.; Zamora, M.; Novaes, J. & Moreira, A. O sentido dos atos destrutivos dos adolescentes: entendendo os jovens em conflito com a Lei. O Social em Questão, PUC Rio de Janeiro Vol 32, p. 141-156, mar. 2010.

Recebido: 12/2012
Aceito: 01/2013

| ©2013 - Polêm!ca - LABORE | Contato (@) | <-- VOLTAR |