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HELIO OITICICA E LYGIA CLARK: ARTISTAS-EDUCADORES

MAURO SÁ REGO COSTA Professor Associado da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense / UERJ; Procientista; Coordenador do Laboratório de Rádio UERJ/Baixada e do Estúdio de Som e Música da FEBF/UERJ. Coordenador do Kaxinawá Pesquisas Sonoras - maurosarego@gmail.com


Resumo:Uma pequena introdução ao pensamento sobre a obra destes dois artistas neo-concretos, esboçando o lugar que representam na História da Artes, não só nas “artes brasileiras”;  relevando o contexto de seus percursos criadores e apontando sua importância para a educação em artes na escola.
Palavras-chave: arte e educação; Hélio Oiticica; Lygia Clark; neo-concretismo; arte dos anos 60 e 70.

HELIO OITICICA AND LYGIA CLARK: ARTISTS-EDUCATORS

Abstract: A short introduction to the thinking over the work of the two neo-concretist artists, sketching the place they occupy in the History of Art, not only in “Brazilian Art”; emphasizing the context of their creative journeys and pointing to their importance for school education in Arts.
Key-words: Art and Education; Helio Oiticica;  Lygia Clark; neo-concretism; art in the 60’s and 70’s.

No panorama das artes brasileiras a partir do final dos anos 50, e início dos 60, Lygia Clark e Hélio Oiticica desenvolvem, em parceria, um projeto definido, às vezes implicitamente, e, em outros momentos, explicitamente, de uma educação artística criadora, no seu sentido mais amplo.

 Chamar sua obra de arte-educação pode parecer uma provocação tanto para artistas quanto para educadores, mas é algo vivo no movimento interno de seu trabalho. Sua obra, enquanto artistas, encaminha-os progressivamente para uma zona de indiscernibilidade entre arte e educação. Clark ainda segue para outra região, a  dos cuidados com a saúde mental - ou seja, para aquele espaço transversalizador - arte-educação- processos de cura – que só os xamãs, artistas como xamãs (poucos) chegaram a habitar.

Isso que chamamos de "educação" brota organicamente dos questionamentos da sua arte. Suas questões, se exercem, de início, num plano estritamente artístico, ou artístico-filosófico, colocando-se em continuidade com uma linha de artistas-pensadores dos mais importantes do século XX: os construtivos russos - Tatlin, Malevitch, Gabo, Pevsner -  e os construtivos ocidentais - Kandinsky, Albers, Mondrian.

É bom não esquecer que é nesta linhagem da arte moderna que surgiram projetos bem definidos de arte-educação, como a Bauhaus (Gropius, Kandinsky, Albers, Moholy-Nagy, Klee...); que teve herdeiros como a New Bauhaus (American School of Design) e o Black Mountain College - depois, grande centro irradiador de uma educação artística  moderna nos E.U.A. - criados pelos componentes da Bauhaus exilados (Barbosa, 1985); assim como a Escola Superior da Forma de Ulm, de onde Max Bill veio nos ensinar a ser suíços (Brito, 1985).

Segundo Ronaldo Brito,

Ao contrário do Dadaísmo e do Surrealismo (...), os mo­vimentos de extração construtiva operam sempre e neces­sariamente no sentido de uma integração funcional da arte na sociedade. A sua intervenção é de natureza didá­tica, como todas as forças liberais, acreditam na Educa­ção com E maiúsculo - o seu esforço mais constante é no sentido de estetizar o ambiente social, educar estetica­mente as massas. (Brito, 1985, p.16)

     Construtivos, concretos e neoconcretos

Mas essa tendência não foi sempre, ou apenas, liberal. Ao tempo em que a Bauhaus é fundada em Dessau, Alemanha – 1919 -, e pouco depois da fundação da revista De Stijl (Mondrian, Van Doesburg e outros), na Holanda  - 1917 -, os construtivos russos estão ao lado da revolução soviética propondo sua arte de construtores ou produtores, pela transformação da sociedade, com base no materialismo histórico.

De um lado ou do outro, no entanto, são igualmente racionalistas. O que o construtivismo desse período pretendeu, em termos genéricos, foi uma arte não pessoal, baseada em princípios universais, objetivos, nutrindo-se dos avanços das ciências, e como elas, aliando-se às técnicas e à indústria. Sua linguagem pode ser pensada como a continuação do projeto de Cézanne e dos Cubistas,  da arte não mais como mimese do mundo, mas  como campo de conhecimento autônomo, com seu método, lógica e linguagem próprias. Não visavam mais a reprodução retiniana do mundo, mas a possibilidade de  uma percepção "essencial", como a matemática, promovendo uma inteligência  nova e direta do real por meios visuais. Daí sua função didática e educativa. Do lado ocidental, pretendia-se uma transformação ampla do ambiente humano aplicando as artes à indústria e buscando integrar-se institucionalmente à produção.  Estão na origem do Desenho Industrial. Na União Soviética, articularam o racionalismo metodológico a um racionalismo axiológico, envolvendo sua estética formalista com a teoria política revolucionária, aliando-se ao Estado, que passará logo a monopolizar a produção industrial. Em ambos os lados, o mesmo otimismo tecno-cientificista. (Brito, 1985; Cabo, 1991).

  É claro que este é um retrato com traços muito rápidos. A releitura feita por Oiticica e Clark do pensamento de Mondrian, Malevitch e outros, no contexto de suas próprias obras, permite complexificá-la. Ronaldo Brito, por exemplo, aponta deleuzeanamente que

o projeto construtivo soviético era largamente coletivista mas não autoritário: a arte permanecia manifestação de singularidades, e não mais de  individualidades (resultante do conceito humanista de indivíduo). (Brito, 1985, p.24)

  Mas o fato é que o projeto construtivo já é coisa do passado, no Primeiro Mundo, quando chega ao Brasil no início da década de 50, com as primeiras Bienais de São Paulo, e as grandes exposições de Max Bill, Calder e Mondrian.

     De acordo com o crítico inglês Guy Brett,

Enquanto o Expressionismo Abstrato aparecia em Nova York, com seu subjetivismo e individualismo extremos, e l'art informel, l'art brut e o tachisme na Paris do pós-guerra, o Brasil era exposto à geração pioneira dos artistas abstratos, como Mondrian, Malevitch, Klee, Moholy-Nagy, os Construtivistas Russos, a Bauhaus, como aos outros artistas "concretos" mais jovens, Max Bill e Joseph Albers. Seu trabalho era mostrado nas Bienais de São Paulo, e artistas europeus como Max Bill e arquitetos como Le Corbusier vinham dar conferências. Se por um lado, essas influências representavam o típico "atraso" na chegada de idéias dos centros de artes metropolitanos às culturas periféricas, por outro correspondiam aos interesses de uma classe média progressista, por um Brasil desenvolvido. (Brett, 1987, p.69)

Brett cita Brito contextualizando a chegada do Concretismo ao Brasil como um "projeto messiânico" da vanguarda da classe média lutando para superar o subdesenvolvimento, para parecer "moderna" a qualquer custo, e que não se distingue muito de outros momentos de importação acrítica de valores artísticos e culturais. "Há algo de ‘colonial’ na sua imitação do racionalismo formalista suíço". (Brett, 1987)

E continua, mostrando que uma resposta construtiva brasi­leira sairá desta "macaquice"  européia através do grupo neocon­creto, que além de Lygia Clark e Hélio Oiticica, incluiu Lygia Pape, Amílcar de Castro, Franz Weissmann, Reynaldo Jardim, Theon Spanudis, o poeta Ferreira Gullar e o crítico Mário Pedrosa.

Sem abandonar a linguagem da abstração geométrica ou a preocupação social do construtivismo, os neoconcretistas atacavam o reducionismo mecanicista da filosofia Bill-Ulm. O Manifesto neoconcreto (1959) pedia por uma recolocação da questão da expressão e da subjetividade (Brett, 1987, p.70)

Os neoconcretistas fazem uma outra leitura da obra dos construtivos, dando mais importância à sua própria recepção atual, instrumentada por Bergson e pela fenomenologia de Merleau-Ponty, e Cassirer e S. Langer. Lêem também detalhadamente o discurso de Mondrian, de Pevsner e outros, buscando contrariar a visada tecno-cientificista genérica, que se radicalizou no con­cretismo suíço mais recente.

  De acordo com o Manifesto,

Não importa que equações matemáticas estejam na raiz de uma escultura ou de um quadro de Vantongerloo, desde que só à experiência direta da percepção a obra entrega a "significação" de seus ritmos e de suas cores. Se Pevsner partiu ou não de figuras da geometria descritiva é uma questão sem interesse em face do novo espaço que as suas esculturas fazem nascer e da expressão cósmico-orgânica que, através dele, suas formas revelam. Terá interesse cultural específico determinar as aproximações entre os objetos artísticos e os instrumentos científi­cos, entre a intuição do artista e o pensamento objetivo do físico e do engenheiro. Mas, do ponto de vista esté­tico, a obra começa a interessar precisamente pelo que nela há que transcende essas aproximações exteriores; pelo universo de significações existenciais que ela a um tempo funda e revela.
(...)
O racionalismo rouba à arte toda a autonomia e substitui as qualidades intransferíveis da obra de arte por noções da objetividade científica: assim os conceitos de forma, espaço, tempo, estrutura - que na linguagem das artes estão ligados a uma significação existencial, emotiva, afetiva - são confundidos com a aplicação teórica que deles faz a ciência.
(Manifesto Neoconcreto, in Brito, 1985, p.12)

  Sua negação do racionalismo cientificista e afirmação da expressão, da "significação existencial, emotiva, afetiva", da obra, não implicará no abandono do pensamento na arte. Muito ao contrário, eles incorporam e partem das questões formuladas pelos construtivos em torno da linha, da cor, do plano, da forma, do espaço, do tempo e da estrutura, mas lhes dão outro tratamento, um novo tratamento, preocupado paralelamente com a singularidade, tanto do momento criador quanto da recepção da obra.  Trabalham assim em dois planos, e isso será mais evidente nas reflexões de Oiticica e Clark: um plano conceitual, virtual, e outro, o da sua atualização nos trabalhos criados, fazendo-os ressoar ou responder um ao outro, sem que o primeiro assuma um caráter diretivo, mas seja capaz também de formular questões trazidas pelo outro, prático, intuitivo. Esta estratégia também já estava indicada, embora pelo seu negativo, no Manifesto:

Ou bem a vertical e a horizontal são mesmo os ritmos fundamentais do universo e a obra de Mondrian é a aplicação desse princípio universal ou o princípio é falho e sua obra se revela fundada sobre uma ilusão. Mas a verdade é que a obra de Mondrian aí está, viva e fecunda, acima dessas contradições teóricas. De nada nos servirá ver em Mondrian o destrutor da superfície, do plano e da linha, se não atentamos para o novo espaço que essa destruição construiu. (Manifesto, in Brito, 1985, p.12)

       O exemplo é bom também ao salvar o pensamento, mesmo quando falho, mesmo quando entre teoria e prática não há dialética mas disparate: ele salva os dois planos indicando um caminho para fora da lógica positivista e igualmente para fora da dialética - "O infalível é falível e o falível infalível", dirá Oiticica ((1961)1986, p.26)) - tentando definir, pelo paradoxo, o caminho da criação.

Brett aponta como as contribuições de Oiticica e Clark para o neoconcretismo o fizeram igualmente distanciar-se da proposta Concreta, ao abandonar a articulação tecnológico-industrial, com a escolha de materiais simples e pobres na construção de seus trabalhos, materiais que o associavam à realidade brasileira de escassez. Esse movimento se amplia até chegar ao uso de material reciclado por Oiticica e à simplicidade dos "objetos relacionais" de Clark, utilizando pedras, areia, água, conchas da praia e sacos de plástico.

Esse movimento se combinou com a tendência internacional, a partir de meados dos anos 60, de negar tanto a participação direta do artista na produção para o Consumo, do Design e da Publicidade, como de tornar a própria Arte inconsumível, recusando-se a produzir com materiais nobres e duráveis ou a ter qualquer "produto" identificável  (ou comprável) como resultado de seu trabalho.(Brett, 1987) 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Ana Mae T. ((1985) Teoria e Prática da Educação Artística. São Paulo,Cultrix, 4ª ed.
BRITO, Ronaldo.(1985) Neoconcretismo. Vértice e Ruptura do Projeto Construtivo Brasileiro. Rio de Janeiro, FUNARTE/INAP.
CABO, Paula Cristina Terra.(1991) Hélio Oiticica - da Estética para a Ética. Dissertação de Mestrado. Depto. de História / PUC/ Rio de Janeiro, (xerox)
BRETT, Guy (1987). "Lygia Clark. The borderline between art life". Third Text. London, 1:65-94, Autumn, 1987.

OITICICA, Hélio.(1986) Aspiro ao Grande Labirinto. org. Luciano Figueiredo, Lygia Pape e Waly Salomão. Rio de Janeiro, Rocco.

Recebido: 02/2013
Aceito: 02/2013

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