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E-FEITOS DE OUTRA ÉTICA CULTURAL NA DANÇA

SÉRGIO PEREIRA ANDRADE é Professor Assistente do Departamento de Arte Corporal da EEFD/ UFRJ, atuando nos cursos de Licenciatura, Bacharelado e Teoria da Dança. Mestre em Artes Cênicas pelo PPGAC/UFBA, Mestrando em Filosofia pela PUC-Rio e Licenciado em Dança pela Escola de Dança da UFBA. Tem experiência como diretor, criador, bailarino, produtor e pesquisador na área das Artes, sobretudo em Dança. É Diretor Geral e Co-Criador do Grupo CoMteMpu's - Linguagens do Corpo (Salvador-Ba), tendo sido um de seus fundadores em 2005, onde desde então realiza trabalhos de pesquisa e criação artística em Dança, Performance, Intervenção e Vídeo. – sergioandrade.prof@gmail.com


RESUMO: Nesse artigo teço alguns deslocamentos sobre a questão da ética cultural na dança, tomando como premissa que os contextos friccionados nessa sentença – ética, cultura e dança – escapam a qualquer possibilidade de fixidez e unidade em defesa de um território, uma nação ou uma comunidade, sendo possíveis de serem tratados somente como e-feitos de fronteirização. Nessa discussão trago questões contemporâneas do pensamento da Alteridade e dos Estudos Pós-coloniais – e seus interstícios de entender o outro para além de uma contra-hegemonia localizável, identificável e endereçável – para provocar ruídos nas habituais noções de diferença cultural, corpo-cultura e etnografia na Dança. Pela complexidade incondicional dessa discussão, produzo uma tessitura fantasmagórica, assombrada por muitas vozes, ecos epistemológicos, relatos, links de internet e diferentes análises de configurações em dança, que abrem esse texto para o outro por vir.
Palavras-chaves: Estudos Culturais em Dança; Alteridade; Ética; Desconstrução; E-feitos de Fronteirização.

E-FFECTS OF OTHER CULTURAL ETHICS IN DANCE

ABSTRACT: In this paper I weave some displacements on the question of the cultural ethics in the dance, taking as premise that the contexts rubbed in this sentence – ethics, culture and dance – escape to any possibility of fixness and unity in defense of a territory, a nation or a community to only be thought like borderization effects. In this discussions I evoke some contemporary questions of the thought about Otherness and Post-Colonial Studies – their interstices to understand the other beyond a locatable, identifiable and addressable against-hegemony – to cause causes noises in the habitual notions of cultural difference, body-culture and ethnography in Dance. For the unconditional complexity in this discussion, I produce a phantasmagorical tessitura, haunted for many voices, epistemological echoes, stories, internet links and different analyses of configurations in dance, that open this text for the other for coming.
Key-words: Cultural Studies in Dance; Otherness; Ethics; Deconstruction; Borderization Effects.

 

I

As tradicionais visões sobre questões da cultura na Dança, por muitas vezes, levaram a entendê-la como um sistema de representação de uma identidade cultural que como um código pertencente a um texto commum, deve ser interpretado/ decodificado em outro texto, a crítica, para qualificar o sentido de pertencimento da obra a uma historicidade ou comunidade local. Por vezes, essa concepção tende a uma acepçãona dança muito restrita, que busca entender o outro como um território bem demarcado a ser defendido, surgindo assim os emblemáticos discursos sobre uma dança brasileira, negra, regional, feminina, gay, lésbica, entre outros partidarismos(1). Hoje, quando noções de identidade, território e cultura aparecem em crise, essas andanças etnográficas podem soar também como uma ingênua exotização do outro que cria guetos reprodutores da mesma lógica hegemônica a qual se diz opor.

Há um problema que parece anterior a discussão da relação arte e cultura, aqui recortada em dança e cultura, que parte de um pressuposto onde essas duas categorias – por constituírem campos próprios de pesquisas, políticas e atuações sociais diversas –, a priori, não estão relacionadas, cabendo a nós no exercício crítico chocá-las, atritá-las e amalgama-las. Mas existiria uma dança desvinculada de uma ética cultural?

Muito provavelmente, esse distanciamento entre as noções de dança e cultura são fruto do projeto estético moderno, sobretudo kantiano, que desencadeou a noção de Arte baseada em pressupostos complementares de autonomia e autopresença do Sujeito. O processo de autonomização da Arte gerado a partir daí, por sua vez, desvinculou a arte de toda a práxis vital para afirmar a arte como modos de conhecimento.

É preciso destacar que antes de ser postulado o projeto moderno da Estética, cunhado no século XVIII, as práticas artísticas estavam dependentes às finalidades de aplicação: ou como objeto de culto – na arte sacra, ou como objeto de representação da sociedade cortesã – como a arte no período de Luís XIV que deveria se propor em honrarias ao Rei Sol, ou como objeto de representação da autocompreensão burguesa – a indústria cultural financiada pela burguesia. Nesses contextos, não havia dúvida que dança e cultura faziam parte de um mesmo contingenciamento ao ponto de se confundir.

Em muitos períodos da história ocidental, a dança foi predominantemente vista como objeto de representação de ideias e desejos simbólicos, religiosos, políticos e sociais, no geral, da práxis vital de um determinado contexto. Porém Sally Banes, em Power and the Dancing Body (1994), irá dizer que a dança não somente reproduzia, mas era mecanismo de invenção e manutenção de códigos culturais. Cita como exemplo que

(...) o Ballet surgiu nas cortes da Europa nos séculos XVI e XVIII, não somente como promulgação simbólica do poder real, mas também como uma disciplina física que fazia parte da educação necessária a vida cotidiana. Ele se perpetua até hoje no seio das classes médias e superiores para educar os jovens a conservar a atitude. Desse modo, a dança primeiramente foi estudada como meio e não somente como lugar para depor o ensinamento da etiqueta (1994, p. 5).

Mais adiante Banes traz uma análise sobre as danças de casamento, nas quais as famílias reais realizavam troca de casais – a mãe do marido dança com o pai da esposa, marido dança com a avó da esposa e esposa dança com o avô do esposo, e assim por diante – são como uma “récita de uma unificação política para incorporação de dois grupos opostos, duas famílias em um grupo social harmonioso. As gerações se reúnem e se separam, compostas de novas alianças e finalmente ‘encenam’ literalmente os laços de parentesco” (pp. 7-8). Banes afirma assim que dança não representa os laços sociais, mas os codifica, os valida e os ratifica.

Com o postulado kantiano fundado na noção de “desinteresse”, a arte moderna irá reivindicar sua presença a si mesmo, destituída de qualquer funcionalidade ou utilitarismo da práxis vital. O desinteresse kantiano vai justamente contribuir para se pensar a arte para além da faculdade de desejar, pois, como comenta Peter Bürger (2008, p. 94): “se a faculdade de desejar é aquela capacidade do ser humano que, da parte do sujeito, possibilita uma sociedade fundada no princípio de maximização de lucro, então o postulado kantiano circunscreve também a liberdade da arte frente às coerções da sociedade capitalista burguesa emergente”.

Claro que Kant estava inserido no seu tempo, lutando contra a ascendente burguesia que revertia toda produção humana em lucro e também lutando contra a já decadente aristocracia que insistia em deter o poder sobre a produção artística, vendo o acúmulo de objetos culturais como meio de ostentação e afirmação social. Porém ao passo que a estética moderna criava um distanciamento do sistema aristocrático-burguês também se distanciava do commum, criando barreiras entre leigos e especialistas, artistas e não-artistas, o gênio e o mero reprodutor, entre outras dicotomias, que se as maximizarmos justificarão as reivindicações de: “dança pela dança” e “cultura pela cultura”, e seus respectivos sujeitos/ativistas, “o artista” e “o antropólogo” – os quais ao longo dos tempos se seduzem e protegem suas fronteiras.

Percebo que se pode identificar que desde a implantação do esteticismo passou-se a agenciar a relação entre dança e cultura a partir de duas perspectivas: distanciamento e pertencimento. Ambas partem de um projeto teleológico de unicidade que busca demarcar claramente os territórios da arte na vida, da dança na arte, da arte na cultura e daí por diante.

Sobre a perspectiva de distanciamento, o fazer artístico moderno se condicionou ao mesmo tempo como privilégio de esclarecimento – o gênio criador – e (suposta) fuga do fluxo vital. O atrito com a cultura passou a ser interessante se fosse para afirmar a capacidade do artista em se apropriar e subverter códigos culturais para gerar seus próprios códigos. Sob um ponto de vista etnográfico, o artista seria um leitor de códigos culturais que são recodificados criticamente em sua obra.

Vale lembrar a noção de artista moderno, homem do mundo, de Charles Baudelaire que o distingue do flanêur justamente pela sua capacidade de durante o dia capturar os códigos e atravessamentos do fluxo do tempo, e, à noite, em seu ofício (a criação artística), parar esse fluxo, criando sua ruptura perante o processo vital. Nesse sentido, a arte moderna ganha um tom de abstração justamente por esse escape simbólico e seu poder de reverter e romper a cruel temporalidade da vida, ligando a autonomia estética ao distanciamento subjetivo.

Na dança essa condição de distanciamento poderia ser identificada nas inúmeras tentativas de um abstracionismo, como a noção de movimento pelo movimento, por vezes, entrelaçado à busca de uma subjetivação do gesto dançado capaz de falar, ou mesmo, desvelar a “verdade” do sujeito-dançarino. Poderia se dizer que nessas danças a cultura é tratada como campo de apropriação e depósito, gerando efeitos de modificação sobre a realidade. Rastros dessa concepção podem ser encontrados desde o projeto de reforma da Ópera de Paris, de George Noverre, no século XVIII, até mesmo Isadora Duncan, que buscando uma corporalidade que se aproximasse da sua práxis vital, a fazia sem abrir mão do título de artista e do seu lugar privilegiado de perceber uma realidade ainda não presente a todos. Uma verdade tão pessoalmente subjetivada quanto a sua dança. Numa outra ponta, para além de uma subjetivação do bailarino, destacar-se-ia W. Forsythe e seu rigoroso método Improvisation Technology, que lapida quase que matematicamente estratégias de improvisação em dança que beiram ao abstracionismo da forma pela forma.

Sob a perspectiva de pertencimento, ecoa um sentimento de “nacionalismo” na cultura, que denota um projeto tanto civil quanto ideológico, destacado por Homi Bhabha (2007, p. 199) como “uma forma obscura e ubíqua de viver a localidade da cultura”. Para escapar das subjetivações abstracionistas do sujeito-distanciamento na arte, busca-se no sentimento de pertencimento a uma coletividade incondicional o lugar para atuação artística e social. Nessa perspectiva, o fazer artístico e o fazer etnográfico parecem querer ocupar o mesmo espaço-tempo.

Participar de uma coletividade é pertencer a um traço comum, a um mesmo código e contingência e assim, autonomia ganha sentido a partir da noção de sujeito histórico, a qual todos nós pertencemos e somos tributários. Sendo parte de uma historicidade cabe a nós representá-la e atendê-la pelo: estado, papel social, programa estético, manifesto, desejo comum, etc. A arte sob essa perspectiva passa a ser um mecanismo de restituição a um território de pertencimento.

Na dança moderna poderia destacar a segunda fase do expressionismo alemão, sobretudo as obras de terror/horror de Mary Wigman sobre os tempos de guerra, como os exoticizantes investimentos da Denishawn School em representar danças de povos e suas divindades como os hindus, egípcios, astecas, etc. Destacam-se também as coreografias de Doris Humphrey e Martha Graham que buscaram tratar dos pioneiros desbravadores americanos que formaram sua nação, contribuindo para a criação de um sentimento de heroísmo ao personagem colonizador norte-americano.

Dando um salto para a contemporaneidade brasileira, que se constrói em dissemiNação(2), pode-se destacar as emblemáticas danças parafolclóricas, vendidas mundo a fora como registros de uma identidade cultural nacional. Perspicaz sobre os riscos de uma dita representação nacional brasileira disseminadas por shows parafolclóricos, Fernando Passos (2004) ressalta que companhias como VivaBrazil, DanceBrazil e Roots of Brazil, sediadas em Nova York, manufaturam sob vestes de “auto-exotismo, super-erotismo e muita diferença”, aspectos que se entrelaçam e se confundem à noção de identidade nacional.

Passos aponta que esse três aspectos reforçam uma estratégia colonial, onde o outro, o subalterno, será sempre objeto de extrema distância cultural, nestes casos, um extremo diferente ou tipo ideal, frente ao “corpo bem norte-americano, possivelmente frio, entediado, sub-sexuado, protestante, branco e heterossexual”(3) (PASSOS, 2004, p. ?). Uma dança endereçada que se apresenta em pacote pronto – um “Brasil tipo exportação, um Brasil para inglês ver” – para um público ideal – rendido e totalmente alheio a qualquer possibilidade de rejeição/identificação frente “ao famoso bate-bunda da mulata quase nua no território livre dos clubes noturnos”. Destaca também a potência reducionista que esses shows abarcam, em geral, apresentando uma identidade cultural de um país de tamanho continental como o Brasil, como uma repetição afrocêntrica, que ele chama de “definição de Brasil em três cês: candomblé, capoeira e carnaval”.

Numa configuração esquerdista, gostaria de incluir ainda os projetos de “dança de resistência” e “dança folclórica”, que numa tentativa de contramão ao sistema social, se utilizam do mesmo mecanismo de pertencimento na busca de valorizar as minorias(4): o negro, o nordestino, a mulher, o gay, e tantos outros territórios que sempre aparecem, nesses casos, precedidos de artigos – “a”, “o”, “uma” e “um” – para garantir sua unicidade e, portanto, legitimar sua exotização. Nessas danças, romanticamente, volta-se a pensar numa preservação da memória de um povo como um projeto de tom quase pedagógico onde foguedos, rituais e mais diversos tipos de representação de guetos são cruamente lançados no palco como um discurso de contra-cultura.

 

II

 

Essas configurações de danças aqui citadas, tanto na perspectiva de distanciamento quanto de pertencimento, ecoam para além de uma localização na narrativa da história da arte. A categorização dessas configurações aparece como recurso didático para demarcar como que as questões sobre a cultura na dança sempre evocaram incondicionais conflitos, porém, por manutenção da tradição, aparecem denegados pelos mais diversos dispositivos para afirmar o projeto logocentrista de unicidade na Dança.

Para pensar numa outra ética cultural na dança é preciso, primeiramente, desconstruir essa noção de unicidade para conceber uma “localidade na Dança”. Não me refiro localidade como meio ou lugar onde a dança acontece, mas o próprio acontecimento singular da dança. Essa noção quer deflagrar como a dança e seus mediadores criam mecanismos para agenciar e sobreviver enquanto e-feito de localidade – uma configuração específica de pensar-fazer(5) dança (teoria, coreografia, intervenção, espetáculo, evento, etc.) que se dá em ato e não se encerra enquanto produto acabado. Uma tessitura processual que dependente do processo de troca com o ambiente (a instância da cultura) para se estabelecer enquanto diferença. Pensar em efeitos de localidade quer, então, justamente escapar a noção de unicidade que é sempre endereçável – localizável num lugar, nação e território. E-feitos de localidade na dança são sempre temporários, imateriais e ecoam em processo de disseminação na escritura(6).

Nessa noção, o artista da dança deixa de ser agente-gênio-criador de sua dança para ser parte de um processo de agenciamento corresponsável de produção de efeitos de dança sempre por vir; e aí já reside uma implicação ético-política, ou o que para Jacques Derrida deveria ser a primeira ética, a alteridade. Neste sentido, “um ato ético digno deste nome é sempre inventivo, mas de modo algum inventivo com o interesse de expressar a liberdade ‘subjetiva’ de um agente, mas sim como resposta a responsabilidade para com o outro” (BENNINGTON, 2004, p. 16-17).

Essa concepção provoca de antemão ruídos na estética fundada justamente em defesa ao sujeito, autônomo e autopresente, que reserva um lugar especial ao artista enquanto gênio. Claro que essa teleologia não está localizável apenas no projeto estético moderno, mas mantida pelos mais variados dispositivos conceituais que atravessam a metafísica – logos, substância, sujeito, signo, ser, eu... – e todo o esquema de repetição do mesmo em perseguição à unicidade que denega a diferença, que Derrida chamou de logocentrismo.

Com as intensas descontinuidades e certa resistência do pensamento contemporâneo de manter a teologia logocêntrica (e aqui poderíamos destacar o movimento da desconstrução de Derrida, mas que encontra ecos em Deleuze, Levinas, Foucault, entre outros pensadores das Filosofias da Alteridade) me parece providencial pensarmos numa ética cultural para dança numa relação indecidível, que quer dizer tanto pensar-fazer dispositivos de dança que criam conflitos às relações binárias (capitão/subalterno, colonizador/colonizado, hetero/homo, masculino/feminino...) quanto resistir ou adiar a qualquer noção de enquadramento a uma comunidade.

Uma pista que nos ajuda pensar nessas questões na Dança já há muito tempo foi trazida por Antonin Artaud em O Teatro e seu Duplo, que entende a cultura como força viva “idêntica à fome”, ou seja, necessidade cruel de vida, sobrevivência, portanto incondicional e anterior ao Sujeito. Essa concepção cria já um primeiro atrito necessário quanto à indecidibilidade cultura-vida, estendida a indecidibilidade corpo-cultura. Artaud (2006, p.2):

É preciso insistir na ideia da cultura em ação e que se torna em nós como um novo órgão, uma espécie de segundo espírito: e a civilização é cultura que se aplica e que rege até nossas ações mais sutis, o espírito presente nas coisas; e é artificial a separação entre civilização e cultura, com o emprego de duas palavras para significar uma mesma e idêntica ação.

Mais adiante, Artaud (2006, p.4) complementa: “Protesto contra a ideia separada que se faz da cultura, como se de um lado estivesse a cultura e do outro a vida; e como se a verdadeira cultura não fosse um meio refinado de compreender e de exercer a vida”. Nesse sentido Artaud reivindica cultura como experiência cruel de mundo, o próprio corpo. Cruel por sua incondicionalidade, pois não há outra maneira de compreender e exercer a vida se não for pelo próprio corpo(7).

A teatralidade artaudiana ajuda a pensar na cena como um ato político não de representação, mas o próprio exercício de sobrevivência no por vir da cultura. Nesse projeto onde ser alguma coisa já não é dado, onde esse chamamento dança sem ser, “sem ser um ser, e principalmente sem ser um sujeito, a subjetividade de um sujeito”, como subjétil(8), já não há mais nem endereçamento nem expectativa. Nesse sentido, a dança pode ser chamada e trair(9), pois seu e-feito se dá em tessitura processual. Uma espécie de processo cirúrgico de ferir e ao mesmo tempo de cicatrizar: “uma demiurgia ao mesmo tempo agressiva e reparadora, assassina e amorosa. A Coisa é reconstruída, a cicatrização lhe vêm do próprio gesto que a fere” (DERRIDA, 1998, p. 115).

O subjétil artaudiano nos ajuda a entender o corpo (esse axioma que nunca é rascunho, mas também nunca está pronto e que, paradoxalmente, costuma ser um grande modelo do hibridismo natureza-cultura) como agenciador fronteiriço da dança: a dança acontece na medida em que se corporifica em indecidibilidade – meio, entre, in; e nesse sentido, “a dança / e por consequência o teatro/ ainda não começaram a existir” (ARTAUD, 1948). O agenciamento do corpo que dança não parece reunir em si nem identidade precisa, nem estado de fixidez, e portanto torna-se um desafio a toda semiologia ou tradução antropológica que necessita de unidades fixas para estabelecer suas leituras. É na resistência do subjétil aos esquemas de tornar-se unidade – ser sujeito ou objeto – que outra ética cultural pode ser pensada para além de identificações de identidades, passando-se a pensar nas negociações de diferença que não se podem nem endereçar nem esperar, pois podem trair.

Nessa noção gesto dançado não restitui a nenhum texto(10), nem mesmo reúne a uma experiência total histórica que nos direcione a um sentimento de pertencimento, nem nacionalismo (social, estético, étnico, etc.). O gesto está lançado. A localidade do gesto está nos seus mecanismos de dissemiNação e adiamento de sentido, que parece, ao mesmo tempo, reunir e escapar ao binarismo codificação/decodificação cultural. Evidente que isso não é nenhuma novidade da arte contemporânea, haja vista que o ruído sempre foi parte do processo de comunicabilidade de qualquer obra até mesmo numa peça romântica. Porém numa perspectiva de outra ética, a mudança de foco é pensar como as novas estratégias de dramaturgia do corpo em cena constroem arquiteturas de dissonância ao invés de unidades de consenso que denegam as diferenças.

Outra contribuição pertinente é trazida por Homi Bhabha (2007, p. 245), numa perspectiva pós-colonial, sobre a noção de cultura como:

(...) uma prática desconfortável, pertubadora, de sobrevivência e suplementariedade – entre a arte e a política, o passado e o presente, o público e o privado – na mesma medida em que seu resplandecente é um momento de prazer, esclarecimento ou libertação. É dessas posições narrativas que a prerrogativa pós-colonial procura afirmar e ampliar uma nova dimensão de colaboração, tanto no interior das margens do espaço-nação como através das fronteiras entre nações e povos.

Bhabha nos faz pensar numa ética sobre os abafamentos que acontecem em nome da constituição dessa categoria chamada “cultura” – e todos seus ecos denegados ao longo do tempo, mas sem os quais a cultura em duplo jamais exerceria seu poder. Num reposicionamento ético sobre noções da localidade na dança cabe perguntar, por exemplo, quais abafamentos estão sendo gerados e denegados ao se enunciar “dança brasileira”, “dançar popular” ou ainda “dança contemporânea brasileira”? Quais são os agentes desse enunciado? Em que contexto esses proferimentos redimensionam efeitos de localidade na dança e refletem sobre a implicação de corresponsabilidade decorrente desses efeitos?

Assim, encarar a indecidibilidade dança-cultura se torna um ato político que não busca afirmações de territórios criados pela unicidade metafísica (e suas já caducas noções de identidade cultural). Trata-se de trabalhar na impura margem, os efeitos de fronteira, que nada se assimilam a uma honra ou paixão tributária a um povo, nação ou comunidade.

Como alerta Stuart Hall (2003, p. 104-105):

Os “efeitos de fronteira” não são “gratuitos”, mas construídos; consequentemente as posições políticas não são fixas, não se repetem de uma situação histórica a outra, nem de um teatro de antagonismos a outro, sempre “em seu lugar”, em uma infinita interação.

Esses efeitos de fronteira “nos obriga a reler os binarismos como formas de transculturação, de tradução cultural, destinadas a perturbar para sempre os binarismos culturais do tipo aqui/lá” (ibid, p. 108-109). Mais do que levantar bandeiras de representação cultural frente a uma hegemonia etnocêntrica, poderíamos pensar-fazer dispositivos de produção de différance – no sentido dado por Jacques Derrida, que não quer pensar diferença como apaziguamento de oposições (como a dialética hegeliana), mas a própria margem de conflito que não se deixa assegurar por nenhuma moldura. A différance não é “o diferente” – identificável outro –, mas o outro arrivant, ou seja, uma absoluta imprevisibilidade do ainda por vir.

Nessa ética do outro arrivant, artistas, obras, pesquisadores, instituições e as economias mais diversas na dança não se preocupariam nem representar, nem se apropriar da cultura, mas, talvez, trabalhar sobre brechas de escape a binarismos habituais da cultura. Claro que, como bem salienta Hal Foster (2005), essa concepção de trabalho sobre a indecidibilidade, em algum momento beira o perigo de uma “estetização” ou uma “feitichização de signos do híbrido e espaços do entre”. Para Foster, recai-se no perigo de estabilizar modelos que evidenciam conflitos das variadas diferenças (sociais étnicas, sexuais, etc.), criando uma “política que pode consumir seus objetos históricos antes mesmo que eles se tornem historicamente efetivos” (2005, p. 140).

Porém, as noções que venho apresentando aqui parecem sugerir uma ética de laboratório de traição do próprio espaço de segurança da cultura, da arte ou mais especificamente da dança. Trata-se de pensar a fronteira como um laboratório perigoso que não pretende se encerrar numa síntese dialética: nem apaziguando o conflito entre duas partes, criando um modelo referencial de conflito, nem mesmo na dupla afirmação das unidades que margeiam o traço diferencial da fronteira.

Sobre a questão fetiche da fronteira na performance art, o artista chicano Guillermo Gomez Peña, ativista político e performance artist/writter atuando desde a década de 1970 sobre assuntos de fronteira, em entrevista ao site Body Pixel comenta:

De muitas maneiras eu comecei a pensar sobre a fronteira como um laboratório. Como um laboratório pra desenvolver modelos utópicos e distópicos; e também como um lugar, como uma zona onde as rejeições do múltiplo à mono cultura, os exilados diferentes tipos de gêneros, raças, nacionalidade e linguagens poderiam se encontrar. Um terreno comum e uma espiral como uma suposição de linha fronteiriça. Então eu comecei a trabalhar nos meus livros e em minhas performances, numa maneira que eu pudesse me relacionar com meus colegas. Foi então, que a noção de fronteira tornou-se bastante popular, quase uma moda – o paradigma da fronteira.(11)

Mais adiante Gomez-Peña ainda diz que devido à feitichização da noção de fronteira, foi preciso mudar de estratégias para que não recaísse em reducionismo de representação do conflito entre duas culturas. Suas próprias performances, por exemplo, deixaram de se localizar geograficamente e geopoliticanmente na fronteira EUA-MEXICO:

(...) eu comecei a pensar que havia um sentido de processo de fronteirização do mundo, em que de muitas maneiras e em toda parte, onde duas ou mais culturas, linguagens, raças se encontram há um processo de fronteirização. Nesse sentido, nós podemos pensar Paris, Londres, Nova Iorque, Berlim como cidades fronteiriças.(12)

Nessa mudança de perspectiva, Gomez-Peña sai da noção de fronteira como um lugar identificável de relação binária entre duas nações bem delimitadas (Estados Unidos e México) para pensar em processo de fronteirização. Sendo assim, suas performances não se engajam em representar o conflito entre duas culturas, reduzir-se a um modelo de conflito, mas sim deflagrar como os efeitos de localidade se constituem em processo de fronteirização; ou seja, a dita cultura mais originária se faz de atritos entre rastros de diferença num processo que está sempre em deslocamento.

Os limites de uma dada cultura, bem como seu mais interior espaço, são demarcados por pulverizadas diferenças que produzem efeitos de suposta estabilidade, como as grandes nações citadas por Gomez-Peña (Paris, Londres, Nova Iorque e Berlim – cidades que se constituem historicamente meio a uma imensa população estrangeira e emigrante). Nesse não-lugar, noções como nativo, marginal, colonizador, colonizado, vítima, patrão e subalterno perdem sua estabilidade para assumir uma força desestruturante sobre suas próprias fronteiras. As provocações trazidas por Gomez-Peña, assim, afirmam a singularidade de uma cultura como e-feitos de dissemiNação.

 

III

 

Das vezes que pude acessar as performances de Guillermo Gomez-Peña – presencialmente no 7th Encuentro Hemispheric Institute of Performance and Politics (NYU), realizado em 2009 em Bogotá, e no Festival Panorama 2011, no Rio de Janeiro, além de diversos registros disponíveis na internet – o contato com suas obras sempre me vieram com uma experiência de desterritorialização de toda noção de unicidade cultural. As investidas de Gomez-Peña passam tanto por jogos de hipercolagem, parodização e co-habitação de signos culturais heterogêneos, como pelo deslocamento de habituais papéis que são denegados em nome de uma rubrica chamada cultura.

Só para citar um exemplo, em sua performance intitulada Psycho-magic actions for a world gone wrong, realizada em parceria com as artistas Marcela Levi (Brasil) e Michele Ceballos (Colômbia), no Festival Panorama 2011, uma das cenas mais intrigantes foi quando a chefe de limpeza do festival(13) foi convidada a participar da performance para, como num ritual sagrado, artistas e público lavarem seus pés numa bacia d’água. A cena primeiramente é protagonizada por uma performmer que vestida com uma burca preta inicia delicadamente a sessão de lava-pés (ato litúrgico presente tanto na cultura mulçumana quanto na cultura cristã). Logo em seguida, o público é convidado a participar do ritual.

É preciso destacar que essa performmer durante toda a obra, como sentinela, circulava aos redores do espaço cênico causando certo grau de desconforto tanto pela impossibilidade de identificação (se era o performmer ou a performmer, por exemplo), quanto pelo fato da burca, nos atuais dias de worrior(14) global, evocar, caricaturalmente, certo tom de ameaça. Essa lente assume aqui um perverso lugar comum de exotização fortemente difundido pelos meios de comunicação em massa, que define a cultura mulçumana, como uma ameaça pré-anunciada, devido à extrema inacessibilidade do mundo ocidental aos seus códigos culturais(15). A presença da burca evoca ainda outras conexões, positivamente, não resolvidas na obra pelos efeitos de fronteirização dessa personagem meio aos outros performmers que em vários momentos se desnudam e vestem objetos de fetiche sexual como próteses, espartilhos, cintas modeladoras de couro, saltos-altos, boinas, etc.

De pés calejados, ainda retorcidos pelo sapato apertado, a chefe de limpeza até se encabulava diante a tantas pessoas que in-voluntariamente se ajoelhavam para limpar seus pés. Ecoam perguntas: do que seria toda a organização do festival, ou mais especificamente, o que seria da possibilidade de acontecimento daquela performance, sem gestos de servilismo como uma sessão de lava-pés ou, ainda, os lava-privadas do festival? Aqueles que aceitaram o convite de esfregar cuidadosamente os pés daquela mulher estariam nesse momento o fazendo como meio de redenção e inversão de papéis (patrão/subalterno) ou apenas cumprindo uma função dada? Mise en scène? Onde inicia e termina o indecidível limite entre arte e vida nessa performance?

Esses deslocamentos produzidos na obra de Gomez-Peña me fazem querer pensar como outras configurações de dança estão pensando-fazendo estratégias que denegam, travestem ou deslocam rastros do nosso processo de fronterização na cultura. Quando nossas produções se põem em tom de denúncia, mas ao mesmo tempo abrem, ou não, margens para exotização do nosso processo de colonização cultural? Ou, ainda, quando essas noções, denúncia e exotização, parecem não atender mais e passa-se a validar uma espécie de resistência passiva, onde já não se forçam antagonismos, mas os adia?

Tomo ainda outro caso. Um protótipo clássico na dança contemporânea brasileira produzida nos últimos dez anos (se é que tal coisa existe), a espetáculo O Samba do Crioulo Doido(16), de Luiz de Abreu. Nesse trabalho, desnudo e em cima de um salto-plataforma super alto, Abreu executa uma gestualidade que transita entre arquétipos masculinos, femininos, glamour, deboche e decadência, beirando tanto o exotismo, o erotismo e a paródia, ao som da voz estridente de Elza Soares entoando: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. Um corpo excessivamente estereotipado, sexualizado e obsceno, que reverte movimentos com o membro sexual em movimentos de dança, e que no palco enfia a bandeira do Brasil no ânus e desfila na passarela. O que faz ali emergir e pulverizar lugares de pertencimento e distanciamento sobre a cultura brasileira? A potência de sua obra estaria justamente na resistência às asfixiantes molduras “brasilidade”, “dança negra”, “corpo feminino”, “corpo masculino”...?

Meio às mais diversas recepções, me parece a obra Luiz de Abreu, ainda dançada nos dias atuais em formato solo, se apresenta tanto como a-partidário sobre a defesa da identidade negra ao passo que também joga na impura margem fronteiriça do corpo negro, assumindo o risco, inclusive, de soar como uma arte panfletária. É o negro traindo às próprias noções de engajamento político sobre a negritude à medida que desloca a discussão, sobretudo, quando retira de cena tanto o lugar do herói quanto o lugar de vítima. Ao mesmo tempo clama por polemizar, saturar a discussão. Ai se coloca uma indecibilidade que preferiria não resolver nesse texto.

Por fim, para pensar ainda sobre configurações contemporâneas de dança, que saem do formato tradicional de espetáculo (um produto endereçado ao público), coloco-me também roda com as experiências promovidas recentemente pelo Grupo CoMteMpu’s, denomindas ZeZOU – Zonas de Ocupação Urbana(17).  Nestas experiências, o grupo junto a um artista convidado escolhe uma zona da cidade (bairro, nicho ou local qualquer) para residir/intervir artisticamente a partir de suas relações com o local de ocupação (tanto durante o evento quanto através de memórias coletivas perdidas na arquitetura urbana). Esse tipo de configuração artística por ser entendida como um tipo de site-specific.

O site-specific é apresentado por Hal Foster (2005) como uma configuração contemporânea do embaralhamento dos papéis de etnógrafo e artista. Esse tipo de configuração de arte faz menção a obras criadas de acordo com um ambiente e espaço determinado. Geralmente os projetos de site-specific são encomendados por instituições, nos quais o artista é convidado a desenvolver uma produção que incorpora ou transforma o espaço, por vezes, em diálogo com a comunidade nativa. Assim, esses projetos terminam por mapear etnograficamente, através de um produto artístico, uma realidade de uma determinada localidade. Por vezes, o site-specific acaba sendo um mecanismo de marketing cultural para as instituições promotoras, tornando-se um risco de se tornar mais um panfleto.

As experiências da ZeZOU se aproximam mas também se distancia desse tipo de noção apresentada por Foster (2005) devido ao não endereçamento nem expectativa dos rastros por elas gerados. A ZeZOU não foi uma proposta encomendada. Nas suas experiências já realizadas, nenhum produto foi apresentado ao público. Ou seja, artistas não foram a um local para produzir uma obra a ser apresentada no local, nem os transeuntes e nativos foram convocados a se ver, como num espelho representados entre gestos dançados em coreografias na rua. As propostas criadas pela ZeZOU se apresentaram como mecanismos de ocupação onde o próprio ocupar tanto constitui os limites movediços da zona quanto se apresentam como e-feito de dança.

Na ZeZOU v. 1, realizada no bairro do Comércio um dos resíduos que ecoaram foi a construção de um mapa a partir de atravessamentos corporais dos participantes da ocupação durante exercícios de cartografias realizados pelas ruas do bairro. A construção do mapa foi feita de maneira artesanal e precária, a mão, sem muita preocupação a uma fidelidade geográfica do bairro. Nesse mapa foram destacados pontos de atravessamentos cotidianos nas ruas do Comércio, que redimensionavam a experiência afetiva local com o urbano.

Para citar exemplos, um desses pontos, próximo ao Mercado Modelo, marca um possível encontro com o morador e artista de rua, Ari Hip-Hop, que gostava de contar sobre sua tarefa, quase que religiosa, de reunir resíduos urbanos e construir o que ele chama de “uma carta para o dono do mundo, uma carta para Deus”: uma espécie de conjunto de duas torres/esculturas feitas a partir dos resíduos urbanos coletados nas ruas. Poderia se dizer que sua obra é constituída por uma técnica de assemblage. Ari vivia e vendia artesanato nas mediações de sua obra e costumava contar suas histórias para aqueles que paravam para apreciar sua “carta”. Outro ponto do mapa foi chamado de “Zona de Descanso”, onde colocamos redes penduradas em árvores próximas ao mercado do Ouro, onde transeuntes e moradores poderiam sentar para papear, esperar o ônibus ou mesmo ignorar.

Cópias do mapa foram distribuídas aos transeuntes que poderiam optar em seguir as rotas sugeridas, criar outras rotas, habitá-las ou simplesmente descartar o papel. Porém, esses mapas estavam longe de atender a um formato de “produto artístico” que reunia resultados da ocupação apresentados ao público. Em princípio, até tentamos realizar algum acabamento artístico, como um evento performático, mas esse tipo de experiência onde a indecidibilidade arte-cotidiano é o leitmotiv da práxis, uma “obra a ser apresentada” – o que define a lógica de endereçamento e expectativa – realmente não parece funcionar. Todas as tentativas de fechar um produto a ser apresentado aos transeuntes que garantisse o lugar de “eis aqui a arte que vos espera” falharam e assim fomos abandonando, de vez, essa preocupação para realmente focar em mecanismos de ocupação de zonas afetivas.

Na edição seguinte, ZeZOU v. 2, realizada em Itapuã, o dilema processo-produto já havia sido superado. Nessa ocupação focamos na cultura local da pinauna(18). Durante a ocupação, foi criada uma programação que se seguiu em: estudos e pesca de pinaunas; preparo e degustação da iguaria (crua, assada e cozida); Seresta e oficina de desenhos – onde os participantes iam experimentando formas de corpo-grafias da pinauna em rabiscos, gestos e musicas inventadas despretensiosamente; oficina de serigrafia em papéis de seda para preparação de lambe-lambes que partiam do princípio de reprodutibilidade e diferença (como o mecanismo de sobrevivência da pinauna, que se multiplica e forma grandes tapetes espinhentos no fundo do mar de Itapuã); e criação de um painel urbano num muro qualquer do bairro. Todas as atividades contaram com a participação efetiva de alguns nativos do bairro que ou foram convidados ou se sentiram atraídos pela proposta. A oficina de serigrafia, inclusive, foi realizada em parceria com o silker Adriano Cintra, morador do bairro de Itapuã.

Um dos resíduos decorrentes da ação em Itapuã foi o hit #pinauna, que partia do leitmotiv de repetição e transformação do prefixo “pina” e do sufixo “una”, mesclando-os a musicalidade do funk e ícones da dança e da cultura de massa. O hit foi criado e gravado, informalmente, durante a noite de seresta e reproduzido durante a ação de colagem do lambe-lambe na rua e disseminado pela internet(19).

Artistas e eventuais transeuntes que conviveram ou participaram das ações de ocupação da ZeZOU em nenhum momento foram engajados a um discurso de resgatar as memórias perdidas daquela localidade. As memórias eram agenciadas como forma de ocupação afetiva do corpo no espaço urbano. Nesse tipo de configuração a própria experiência [da ocupação] e os resíduos produzidos daí se apresentam com espécies de e-feitos estéticos ruidosos que se fronteirizam com o cotidiano. Ou seja, foi a própria convivência no lugar da ocupação que se fez, momentaneamente, como arte (ou ainda não-arte, fazendo referência aos situacionistas). Nesses tipos de proposições artísticas o nivelamento de qualidade técnica ou fidelidade a uma determinada linguagem, como a Dança, parece não mais ser a ética em práxis, passando a operar uma ética de traição.

Conviver uma semana num ambiente urbano, produzindo desenhos, ideias, rascunhos de cartografias corporais, músicas despretensiosas, colagens de lambe-lambe em vias públicas... poderia não-ser dança? Como localizá-la? Quando chegará a dança? Desaparecerá?

Preferiria não.(20)

“Preferiria não” aqui vem adiar qualquer precipitação em responder a essas questões, para não recair no risco já enunciado de identificar a dança em vestes de uma unicidade-nação a qual, patrioticamente, devemos ser ou tributários ou antagonistas. Preferiria não, atitude que nem rejeita e nem agrega, nem se põe contra nem a favor, foge a toda possibilidade de engrenagem do esquema violento de estabelecer um pressuposto comum no qual a dança se enuncia como um território de distanciamento ou pertencimento. Somente a partir de uma noção de lugar comum (povo unânime que caminha para uma harmonia entre as partes) pode se pensar estágios de dentro e fora tão estanques na Dança, ao invés de se pensar-fazer seu processo de fronteirização e ligadura, como uma fita de Möebius que subverte a todo espaço de representação; e nesse sentido, preferiria não encerrar esse texto.


NOTAS:


(1) Em O artista como etnógrafo (2005), Hal Foster lembra que esse discurso cultural da alteridade na arte encontra ecos no discurso esquerdista trazido pela noção de “artista como produtor”, de Walter Benjamin (1934), onde o artista de esquerda (“avançado”) deveria intervir, como um “trabalhador revolucionário”, nos meios de produção artística para transformar o aparato da cultura burguesa. Nessa noção, por vezes, prioriza-se a relevância política das obras em detrimento da qualidade estética (e aqui já se deflagra o velho problema entre forma e conteúdo, que como bem lembra Foster, aparece sempre como uma discussão infrutífera). Na nova acepção de artista como etnógrafo “o objeto de contestação continua sendo, em grande parte, a instituição burguesa/capitalista (o museu, a academia, o mercado e a mídia); bem como suas definições excludentes de arte, artista, identidade e comunidade. O motivo da associação, contudo, mudou: o artista comprometido batalha em nome de um outro cultural ou étnico” (p. 138). Em outras palavras, uma arte etnográfica, aparece engajada contra um sistema hegemônico cultural e assim definem o outro como um lugar exterior a essa hegemonia. Meu desafio aqui é justamente recolocar a discussão do outro para além de uma fixidez contra-hegemônica, para se pensar no processo de exterioridade (différance) que escapa a qualquer esquema binário de contra ou a favor, marginal ou centro.

(2)Aqui faço referência, mais uma vez, a Homi Bhabha (2007) que jogando com termo dissemination (tanto fruto de sua tributação a J. Derrida, quanto fruto de sua própria experiência migratória), está preocupado em entender a noção de localidade da cultura para além de um pertencimento a comunidades de parentescos, que aqui gostaria de traduzir como síndrome do enraizamento – nasci aqui e pertenço a aqui – ou ainda síndrome de Gabriela – “eu nasci assim, eu cresci assim e sou mesmo assim, vou ser sempre assim”. Nesse sentido, trago a dissemiNação de Bhabha para abrir brechas a brazis que se dão pelo ato de anunciar-se e ser interpelado como tal e que constroem a diferença cultural brasileira diasporicamente. A dissemiNação, nesse sentido, ultrapassa a noção de pertencimento geopolítico nacionalista para “(...) uma forma de vida que é mais complexa que ‘comunidade’, mais simbólica que ‘sociedade’, mais conotativa que ‘país’, menos patriótica que patrie, mais retórica que a razão de Estado, mais mitológica que a ideologia, menos homogênea que a hegemonia, menos centrada que o cidadão, mais coletiva que ‘o sujeito’, mais psíquica do que a civilidade, mais híbrida na articulação de diferença e identificações culturais do que pode ser representado em qualquer estruturação hierárquica ou binária do antagonismo social” (BHABHA, 2007, p. 199)

(3) Grifo meu;

(4) Extremo paradoxo que reforça a auto-exotização.

(5) Pensar-fazer é um indecidível sob rasura que venho utilizando desde minha dissertação de mestrado em artes cênicas para tentar dar conta de uma noção de pensamento que se entende como ação e está preocupada com sua geração de efeitos, não como utilidade do pensamento, mas entendendo que este se dá na produção e no jogo de rastros. Da mesma maneira pretende privilegiar o fazer como um saber-fazer, nunca estando este desprovido de abstrações, conceitos, pensamento, ou, ainda, reconhecê-lo como acontecimento de pensamento, sua ação. Trata-se de reconhecer, portanto, a performatividade em duplo blind (ligadura) entre pensar e fazer.

(6) A partir de agora, quando me referir a “localidade” estarei enunciando neste sentido.

(7) Sobre a teatralidade artuadiana Derrida, em O Teatro da Crueldade e o Fechamento da Representação (2009), diz: “A teatralidade tem de atravessar e restaurar totalmente a ‘existência’ e a ‘carne’. Dir-se-á portanto do teatro o mesmo que se diz do corpo” (p. 339).

(8) Palavra evocada três vezes por Antonin Artaud em seus desenhos, em 1932, em 1946 e 1947, mas a qual nunca esteve apresentada por Artaud enquanto tal, e que foi recolocada por Derrida em Enlouquecer o Subjétil (1998).

(9) Não havendo possibilidade de local em si que se encerra em fronteiras estáveis, a noção de traição torna-se uma ética incondicional em qualquer relação de alteridade, pois o outro está sempre por vir, sempre escapará.

(10) Sobre a noção de texto aqui empregado, Derrida (1991, p. 203): “Gostaria de recordar que o conceito de texto que eu proponho não se limita nem à grafia, nem ao livro, nem mesmo ao discurso, menos ainda à esfera semântica, representativa, simbólica, ideal ou ideológica. O que chamo de ‘texto’ implica todas estruturas ditas ‘reais’, ‘econômicas’, ‘históricas’, socioinstitucionais, em suma, todos os referenciais possíveis. (...) isso quer dizer que todo referencial, toda realidade tem a estrutura de um traço diferencial e só nos podemos reportar a esse real numa experiência interpretativa. Esta só se dá ou só assume sentido num movimento de retorno no diferencial. That’s all”. Nesse sentido, ao dizer que a dança não restitui a um texto se desconstrói a noção de dança como representação de um código de um legado cultural. A dança nessa concepção é entendida como agenciamento da arqui-escritura, que, portanto, não se fixa e sempre escapa. Ver em: DERRIDA, J. Limited Inc. São Paulo: Papirus, 1991.

(11) GOMEZ-PEÑA apud BODY-PIXEL, 2012. Todas as traduções são minhas.

(12) Idem.

(13) Durante a performance Guillermo Gomez Peña anunciou o nome da funcionária, porém não me recordo, nesse momento da escrita, o tal nome. Seria esse lapso ou uma deflagração sobre a estrutura hierárquica entre artista e público? Ato falho?

(14) Indecidível já usado por Gomez-peña (Worrior for gringostroika) que joga com os termos war (guerra) e horror (horror) amalgamados em mesmo sintagma.
(15) O estereótipo é tratado por Bhabha como estratégia violenta do discurso colonial de fixar uma construção lógica da alteridade em ambivalência: “(...) está sempre no lugar, já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido” (2007, p. 105).

(16) Espetáculo montado em duas versões, como solo para o Rumos Itaú Cultural, em São Paulo (2004), protagonizado pelo próprio coreógrafo, e em grupo para o Ateliê de Coreógrafos Brasileiros - Ano III, em Salvador (2004), dançado por 9 bailarinos e uma 1 bailarina. A escolha dessa obra aqui é justamente pelo fato dela ter sido objeto de muitos estudos e discussões sobre o lugar da dança contemporânea frente às questões herança negra no Brasil.

(17) O CoMteMpu’s é um grupo de pesquisa e criação em dança residente de Salvador-Ba, no qual sou integrante co-criador desde 2005. Em 2011, o CoMteMpu’s iniciou uma série de quatro ações de ocupação urbana denominadas ZeZOU que buscam criar tensões entre dança, corpo e espaço urbano. Até então, da série, duas ações já foram realizadas: uma em setembro de 2011, com a participação do artista Tiago Ribeiro, na ocupação do bairro do comércio e outra em dezembro de 2011, com a participação da artista Clara Domingas. Farei considerações sobre as duas experiências tanto pelo fato de se tratar de dois nichos bem diferentes da cidade de Salvador – Comércio como bairro mais central e Itapuã como um bairro mais periférico – quanto para evidenciar as diferentes propostas advindas da singularidade de cada localidade. Registros e relatos dessas ações podem ser encontrados em http://zezolandia.blogspot.com.br/search/label/A%C3%A7%C3%A3o%203.

(18) Termo local para ouriço-do-mar. A pinauna que geralmente é vista como praga para a ocupação turística de praias, em Itapuã é parte da memória afetiva de nativos da região, sendo, inclusive, uma iguaria muito apreciada por seus pescadores.

(19) É possível ouvir o hit #pinauna nesse link: http://soundcloud.com/punkz/pinauna.

(20) Única frase proferida e repetida por Bartleby, personagem do texto “Bartleby, o escriturário exemplar”, de Hermam Melville, recentemente adaptado por Denise Stoklos na peça “Preferia não?”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Sérgio Pereira. O Grupo CoMteMpu’s e a Dança Frouxa: (re)olhares sobre o pensar-fazer desconstrutivo em Dança. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA. Salvador, 2010.

ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo, Martins Fontes, 2006.

BANES, Sally. O poder e o corpo dançante. Livre tradução de Ana São José. IN:______, Escrevendo a dança na idade do pós-modernismo, Wesleyan University Press, 1994.

BENNINGTON, Geoffrey. Desconstrução e Ética. In: DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar (org.). Desconstrução e Ética: ecos de Jacques Derrida. Rio Janeiro, PUC-Rio; São Paulo, Ed. Loyola, 2004, pp. 09-31.

BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte, UFMG, 2007.

BODY-PIXEL. Interview with Guillermo Gomez Pena: You know, I worship the imagination!. Disponível em: <http://www.body-pixel.com/2010/06/16/interview-with-guillermo-gomez-pena-you-know-i-worship-the-imagination/>. Entrevista de Guillermo Gomez Peña ao site Body Pixel. Acesso em 11 de abril de 2012.

BÜRGER, Peter. Teoria da Vanguarda. Tradução de José Pedro Antunes. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

DERRIDA, Jacques. Enlouquecer o Subjétil. Jacques Derrida; (ilustrações Lena Bergstein), Tradução Geraldo Gerson Souza. São Paulo: Ateliê Editorial: Fundação Editora Unesp, 1998.

______. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973.

______. O Teatro da Crueldade e o Fechamento da Representação. IN: ______. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Perspectiva, 2009.

FOSTER, Hal. O artista como etnógrafo. Arte e Ensaios 12. Revista de Pós-Graduação em Artes Visuais EBA – UFRJ. Rio de Janeiro, número 12, 2005, pp. 137-151. Ano XII.

HALL, Stuart. Quando foi o pós-colonial? IN:______. Da diáspora. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

_______. Quem precisa de identidade? In: TOMAZ, Tadeu (org.). Identidade e diferença. Vozes, 2000, p. 103-133.

KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Tradução de Valério Rohden e António Marques. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária, 1993.

O SAMBA do Crioulo Doido. Coreografia e Interpretação: Luiz de Abreu. Rio de Janeiro, Festival Panorama 2011, nov. 2011. Espetáculo de Dança, 40 min.

O SAMBA do Crioulo Doido. Coreografia: Luiz de Abreu. Elenco: Rogério Guerra, Leonardo Luz, Salvador, Ateliê de Coreógrafos Brasileiros – Ano III, out. 2004. Espetáculo de Dança, 45 min.

PSYCHO-MAGIC actions for a world gone wrong. Performmers: Guillermo Gomez Peña (Eua/Mex), Marcela Levi (Brasil) e Michele Ceballos (Colômbia). Festival Panorama 2011, nov. 2011. Performance, 65 min.

PASSOS, Fernando Antônio de Paula. Corpos em trânsito x tráfico de danças: coreografando (nas) fronteiras. In: ______, What a Drag!:Etnografia, Performance e Transformismo. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA, Salvador, 2010.

PREFERIRIA não?. Direção e solo performance: Denise Stoklos. Caixa Cultural: Denise Stoklos, abr. 2012. Solo performance, 90 min.

ZEZOU v. 1– Zonas de Ocupação Urbana. Artistas: Eros Ferreira, Gatha, Iara Sales, Mariana Gottschalk, Natália Matos, Sérgio Andrade, Tiago N. Ribeiro, Victor Hugo. Salvador: Grupo CoMteMpu’s, set. 2011. Site-specífic e ocupação artística no bairro Comércio.

ZEZOU v. 2– Zonas de Ocupação Urbana. Artistas: Eros Ferreira, Clara Domingas, Gatha, Iara Sales, Mariana Gottschalk, Natália Matos, Sérgio Andrade, Victor Hugo. Itapuã, Salvador: Grupo CoMteMpu’s, dez. 2011. Site-specífic e ocupação artística no bairro Itapuã.

Recebido: 14/02/2012
Aceito: 15/03/2012

 

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