Questões Contemporâneas

UTILIZAÇÃO MÍSTICO-TRADICIONAL DA FAUNA NO SEMIÁRIDO PARAIBANO

JOSÉ AÉCIO ALVES BARBOSA é Licenciado e Bacharel em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual da Paraíba. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Recursos Naturais da Universidade Federal de Campina Grande. Trabalha com Etnobiologia e História Ambiental, com ênfase na caça e utilização tradicional da fauna.

JOSÉ OTÁVIO AGUIAR é Doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Campina Grande. Trabalha com História Ambiental e Questões Étnicas.


Resumo: Há muito tempo os animais são utilizados por diversas populações humanas. Uma das principais formas de utilização é a interação mística, o que acaba despertando discussões étnicas e judiciais. O presente artigo expõe esse tipo de uso da fauna em uma comunidade tradicional no Estado da Paraíba, bem como as implicações dessa prática para a conservação.
Palavras-chave: Uso da Fauna, Misticismo, Semiárido, Conservação

MYSTICAL AND TRADICIONAL ANIMAL USE IN SEMIARID OF PARAIBA

Abstract: The animals are used by different human populations. One of the main ways of using is the mystical interaction, which ends up raising ethnic and legal discussions. This paper presents such a use of wildlife in a traditional community in the state of Paraiba, and the implications of this practice for conservation.
Keywords: Animal use, Mysticism, Semiarid region, Caatinga biome

INTRODUÇÃO

No Brasil, animais vêm sendo usados por sociedades indígenas e por descendentes dos europeus e africanos desde o período colonial. Tais usos vêm se perpetuando ao longo do tempo e, atualmente, animais silvestres continuam sendo utilizados para diversas finalidades, desde alimentação, atividades culturais, comércio de animais vivos, partes deles ou subprodutos usados como vestuário, ferramentas e para uso medicinal e mágico-religioso (eg. Medeiros, 2001; Pianca, 2004; Rocha et al.. 2006; Trinca & Ferrari, 2006; Alves et al. 2007, Alves e Pereira-Filho, 2007).

A cultura e a religião influenciam diretamente os diversos modos pelos quais as comunidades humanas fazem uso da biodiversidade, inclusive faunística (Cohn, 1988; Anyinam, 1995; Berkes, 2001).

A relação místico-religiosa entre seres humanos e outros animais vem sendo registrada, desde épocas remotas. Isto pode ser evidenciado nas pinturas rupestres, em que animais estão representados, revelando o caráter místico de cenas de caçada e em outras atividades humanas e, em um país como o Brasil, que é caracterizado por sua diversidade biológica e cultural, é essencial que políticas de conservação estejam em sintonia com os aspectos culturais, já que os estudos que tratam desse tema são escassos (Leo Neto, 2008).

Com a intenção de mensurar a importância do uso da biodiversidade relacionando-o a interação místico-religiosa que os seres humanos possuem com os animais, objetivou-se documentar as espécies mais usadas, analisar os aspectos de uso, e caracterizar o contexto sócio-cultural em que se dá o aproveitamento místico-religioso dos recursos faunísticos na região pesquisada, bem como avaliar suas implicações para conservação.

MÉTODO

Esta pesquisa foi realizada entre maio de 2011 e março de 2012, na comunidade do Gravatá, no município de Queimadas (latitude 7º21´29"S; longitude 35º53´53"W, localizado na mesorregião do agreste paraibano. A comunidade estudada é formada por aproximadamente 80 residências e está localizada em uma região serrana com alguns trechos xerófilos e caducifólios de vegetação nativa preservada.

Inicialmente, buscou-se identificar os moradores locais que utilizam ou conhecem algumas práticas de uso de animais ou derivados destes para fins místico-religiosos. Após os primeiros contatos, os dados acerca da utilização dos animais foram obtidos através da aplicação de formulários semi-estruturados integrados a entrevistas livres feitas de modo individual (Albuquerque & Lucena, 2004). O formulário semi-estruturado apresentou questões englobando aspectos como dados a respeito dos animais utilizados, bem como as motivações e formas de captura destes, quando preciso. Além disto, ainda foi feita uma sondagem acerca da distribuição faunística na região. Por fim, foi aplicado um questionário sócio-cultural.

Para cada espécie de animal citada foi calculado seu respectivo valor de uso “VU” (Phillips et al., 1994), que possibilitou demonstrar a importância relativa da espécie conhecida localmente, independente da opinião do pesquisador. O valor de uso foi calculado através da seguinte fórmula: (VU = ΣU/n), onde: VU = valor de uso da espécie; U = número de citações por espécie; n = número de informantes.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Foram entrevistadas 46 pessoas (28 mulheres e 18 homens), com idades variando de 17 a 78 anos. A maioria dos entrevistados vivencia um relacionamento conjugal estável, através de casamento ou união consensual. Em relação à atividade ocupacional, a maioria deles trabalha na agricultura ou é aposentado. O grau de escolaridade dos entrevistados é baixo, tendo em vista a expressividade de indivíduos com ensino fundamental incompleto (75,5%). No que diz respeito à renda salarial, verificou-se a prevalência de 1 salário mínimo (com renda média de 1,3 salário mínimo por pessoa). Em relação ao número de membros da família, prevaleceu o número de 4 indivíduos por residência (45,6%). A maioria dos entrevistados é natural de Queimadas, tendo vivido durante toda a vida na região em questão.

Foi evidenciada a relação místico/religiosa de humanos com 20 espécies animais. Uma grande parte dessas espécies foi mencionada por se acreditar na sorte ou na falta de sorte que elas carregam. Os entrevistados também acreditam que, analisando o comportamento de alguns animais, é possível prever eventos futuros como a chuva, a chegada de visitantes e a morte de alguém. Além disso, também se observou o conhecimento por parte de alguns entrevistados acerca da utilização de animais em ritos afro-brasileiros.

As espécies de animais citadas se enquadram em sete grupos taxonômicos (Mamíferos, Aves, Répteis, Peixes, Equinodermos, Artrópodes e Moluscos). Os grupos animais mais citados foram: Aves (n= 7) e Mamíferos (n=6), que juntos somaram 65 % dos animais registrados.

Dentre os animais de valor místico na região destacaram-se o Bode - Capra hircus (19 menções), o Cancão - Cyanocorax cyanopogon (10 menções), a Lavandeira - Fluvicola nengeta (9 menções) e a Cascavel - Crotalus durissus (9 menções).

Os Valores de Uso (VU) das espécies citadas variaram de 0,002 a 0,074. A maioria das espécies apresentou um valor de uso baixo (menor que 0,025). Entretanto, 4 espécies tiveram um VU acima de 0,030: Galinha/ Pinto - Gallus gallus - VU=0,074; Cabra/ Bode - Capra hircus - VU=0,047; Boi/ Vaca - Bos taurus - VU=0,045 e Cascavel – C. durissus  - VU=0,031. Outras espécies silvestres de destaque foram o Cavalo marinho - Hippocampus sp; a Raposa - Cerdocyon thous e o Veado - Mazama gouazoupira.

A utilização da fauna pelos entrevistados para fins místico-religiosos apresentou várias vertentes, destacando: o uso como amuleto, o uso em rituais afro-religiosos, para “curas mágicas”, em “adivinhações”, animais considerados sagrados, portadores de má sorte ou ainda relacionados a contos místico-religiosos.

Os amuletos normalmente são utilizados para combater o “mau-olhado”, que segundo Leo Neto (2008), muitas vezes é fundamentado na inveja, e pode ser definido como uma espécie de energia que lesa outra pessoa, sendo direcionada através do olhar e prejudicando terceiros, causando-lhes doenças, insucesso amoroso e financeiro, bem como todo tipo de infortúnio. Para a confecção dos amuletos, normalmente são utilizadas partes dos animais, como cornos de Boi (B. taurus), patas e cauda de Coelho (Sylvilagus brasiliensis)e chocalho (“maracá”) de Cascavel(C. durissus), mas alguns animais também podem ser usados inteiros, como é o caso da Estrela-do-mar (Oreaster reticulatus). Leo Neto (2008), em seu trabalho acerca do uso e comércio de animais para fins mágico-religiosos em cidades da Paraíba e Pernambuco, também registra a utilização de B. taurus e O. reticulatus, o que demonstra certa disseminação desse tipo de prática em determinadas zonas da região Nordeste do Brasil.

A Cabra/ Bode(C. hircus), a Galinha (Gallus gallus) e o Cavalo Marinho (Hippocampus sp.) foram citados como utilizados em rituais afro. O Cavalo-marinho(H. reidi) está incluso, na Lista Nacional das Espécies de Invertebrados Aquáticos e Peixes Sobreexplotadas ou Ameaçadas de Sobreexplotação (MMA, 2004), e já teve sua utilização comercial e místico-religiosa investigada em cidades do Norte e Nordeste do Brasil (Alves, 2006; Leo Neto, 2008). Algumas religiões de matriz africana têm como parte de seu ritual o sacrifício de animais. A Constituição da República garante a liberdade religiosa como direito e garantia fundamental, positivando o principio em seu art. 5º, VI. O texto constitucional também protege a manifestação da cultura afro-brasileira, indígena e popular no art. 215 §1º. Por outro lado, a Carta Magna protege a fauna e a flora vedando as práticas que submetam os animais à crueldade (art. 225 §1,VII), o que gera uma calorosa discussão quanto ao tema. Entretanto, segundo Carianha (2009), da Universidade Federal da Bahia, algumas religiões têm os direitos dos animais bem estabelecidos, inclusive citando-os em seus livros sagrados, como é o caso do Cristianismo, do Islamismo e do Budismo.

Doenças com causas sobrenaturais existem em diferentes culturas (Rubel, 1977), logo, em função dos sistemas médicos tradicionais serem organizados como sistemas culturais, o uso das substâncias animais, além de uma perspectiva ecológica, deve ser compreendido também dentro de uma perspectiva cultural (Costa-Neto, 2004). O Gato (Felis catus), o Veado (M. gouazoupira), o Cancão (C. cyanopogon), a Galinha/Pinto (G. gallus), o Pombo (Columba livia), o Jabuti (Chelonoidis carbonaria) e a Concha do Mar (Iphigenia brasiliensis) são utilizados por alguns moradores do Gravatá nas chamadas “curas mágicas” de doenças, que podem ser físicas ou “espirituais”. Alguns animais são usados vivos, como é o caso do Jabuti(C. carbonaria) e o Gato(F. catus). Outros animais como o Veado(Mazama gouazoupira), o Pombo (C. livia) e a Concha do Mar (I. brasiliensis) são abatidos para que seus derivados possam ser utilizados como curativos. Alves (2006), em seu estudo sobre o uso de animais em tratamentos médicos tradicionais em comunidades pesqueiras no Norte e Nordeste do Brasil, também registra a prática de tratamentos para doenças “espirituais” e físicas, através de “curas mágicas”. Pieroni & Quave (2005) observaram, em um estudo realizado em Ginestra/Zhure, Itália, que as etiologias de várias doenças populares estão relacionadas geralmente à transmissão espiritual, e que os tratamentos são freqüentemente de natureza mágica ou psicoterapêutica.

A Cobra Preta (Pseudoboa nigra) é relacionada com contos populares, assim como o Urubu (Coragyps atratus) e o Vem-vem (Euphonia chlorotica) são animais citados como usados em predições e adivinhações. A Lavandeira (Fluvicola nengeta) e a Esperança (Espécie não identificada) são considerados animais sagrados. Já à Raposa (C. thous) é aderida uma imagem diabolizada, e o Tetéu (Vanellus chilensis) é um animal marginalizado na comunidade.

CONCLUSÃO

Apesar da utilização da fauna para fins místicos/religiosos na Comunidade do Gravatá, estudos sobre esse tema ainda não haviam sido realizados.

Determinados usos da fauna para fins mágico-religiosos na comunidade estudada culminam no abate do animal, além disso, o fato da existência de marginalização, criação de uma imagem diabolizada e até da domesticação de determinados animais silvestres pode gerar certa pressão sobre algumas espécies.  Esses fatos demonstram a relevância de estudos acerca desse tipo de modalidade de uso, no intuito de subsidiar medidas conservacionistas eficazes no combate à sobreexploração da fauna, na região.

A utilização místico/religiosa da fauna, no Gravatá, está ligada a aspectos culturais, constituindo-se de práticas religiosas e tradicionais antigas. Assim, medidas de caráter conservacionista devem estar intimamente ligadas com as questões sócio-culturais. Aspectos sócio-econômicos também devem ser levados em consideração, para a elaboração de políticas públicas, atentando-se, também, para a importância das crenças religiosas.


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Recebido: 29/06/2012
Aceito: 19/10/2012

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