Questões Contemporâneas

POÉTICAS, ESTÉTICAS E PRODUÇÕES SUBVERSIVAS NOS/DOS/COM OS COTIDIANOS ESCOLARES

TIAGO RIBEIRO é Mestrando do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Integrante do Grupo de Pesquisa: Práticas Educativas e Formação de Professores (GPPF), do Grupo de Estudos e Pesquisa das/os Professoras/es Alfabetizadoras/es Narradoras/es (GEPPAN) e da Rede de Formação Docente: narrativas & experiências (Rede Formad).

VICTOR JUNGER é Pedagogo graduado pela UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro).


Resumo: Este trabalho traz reflexões acerca da produção dos cotidianos (escolares), a partir de múltiplos e singulares golpes de seus praticantes. Aborda as poéticas, estéticas e produções subversivas nos/dos/com os cotidianos, como possibilidade para compreender de outro modo as complexas redes de saberes e sentidos que são tecidas em um processo de invenção/vivência dessa cotidianidade, de acordo com os peculiares modos de ser (estilos) de cada sujeito. Por fim, busca apontar a importância de essas poéticas serem pensadas e sentidas, a fim de que modos hegemônicos de pensar/sentir/praticar os cotidianos escolares possam ser problematizados.
Palavras-chave: Cotidianos escolares; poéticas, estéticas; produções subversivas.

POETIC, AESTHETIC AND SUBVERSIVE PRODUCTIONS IN/FROM/WITH THE SCHOOL EVERYDAYLIVES

Abstract: This paper presents reflections on the everyday lives (school) production from multiple and singular strikes of its practitioners. Approaches the poetic, aesthetic and subversive productions in/from/with the everyday lives as a possibility to understand on the other way the complex networks of knowledge and senses that are woven into a process of invention/experience of everydayness according to the peculiar modes of being (styles) of each subject. Finally, tries to point out the importance of these poetics are thought and felt, so that hegemonic ways of thinking/feeling/practice the school everyday lives may be problematized.
Keywords: School everydaylives; poetics; aesthetics; subversive productions.

Algumas considerações iniciais...

A cotidianidade escolar é espaçotempo complexo. Não complexo como complicado ou confuso, mas como lugar fabricado onde múltiplas lógicas e modos de ser (estilos) coexistem. Assim, se as escolas guardam cartograficamente a ordem planificada dos grandes sistemas funcionais, elas permitem, por outro lado, que seu espaço seja recortado e modelado pelas práticas cotidianas, seja ressignificado e recriado desde seu modo de funcionamento até sua estruturação. É com este último aspecto que a ambição totalizadora da modernidade(1) é potencialmente diluída; ambição que se detém, frente à multiplicidade de eventos, recuando no limiar da vida ordinária. As insuspeitas produções, os textos codificados e as performances ocasionais incorrem sobre o funcionamento burocratizado, durante os deslocamentos diários, invisíveis às estatísticas e olhares que fitam a escola pelo que nela falta.

A fim de romper com um olhar que se detém sobre o unívoco, uma mirada já denunciada por Certeau (2007, p.170) como aquela cujo intento é “ser apenas este ponto que vê”, seria preciso encontrar vias de se pensar a pluralidade do real e, simultaneamente, dar cabo deste pensamento a nível prático. Para tanto, há de se deixar ver as articulações entre saber e poder que, sob a lógica moderna, são forjadas a partir de estratégias disciplinadoras. A estrutura que se expande na gestão da escola distribui e demarca os territórios – em seu próprio interior haverá o traçado do centro e da periferia (SÁ EARP, 2007) –, promove deslocamentos e delimitações, intenta produzir mesmidade, fabrica incessantemente “detritos”, enquanto toma por supérfluo tudo o que não se reduz à lógica do acúmulo, da homogeneização.

De tal sorte, subsidia-se nessa mentalidade o espaço das salas de aula como lugar privilegiado da relação aprendizagemensino(2), da hegemonização de rudimentos pedagógicos, currículos prescritos e de livros didáticos; enfim, dos elementos que entram na escola, inclusive os corpos, e que devem ser estruturados/formalizados, a partir de uma razão funcionalista a todos imposta.

Todas essas operações (ainda hegemônicas) em prol de uma unicidade excludente coexistem com golpes subversivos e singulares que, no dia-a-dia da instituição escolar, esboçam outras possibilidades de estéticas, poéticas e práticas. Certeau (2007), em sua obra, ao tratar da questão da cidade (e também podemos pensar a escola) como produção ordinária, busca vasculhar, nos intricados jogos de poder, as operações práticas que subvertem as imagens outorgadas sem necessariamente ir de encontro a ela. Seu interesse é trazer à baila pequenos procedimentos, práticas cotidianas e golpes poéticos e ordinários.

É justamente sobre (a possibilidade de) esses procedimentos e golpes forjados e realizados nos espaçostempos escolares que queremos pensar neste trabalho. Essas operações e artes podem ser lidas como aspectos (JOSGRILBERG, 2005, p.89) de três diferentes modos: o polêmico, que procura dar conta das relações de força por meio de estratégias e táticas; o estético, que confere ao léxico das gramáticas impostas o gesto poético que as reinventa; o ético, que resiste incessantemente, de “mil maneiras” possíveis, a uma ordem estabelecida. Trata-se de três aspectos que se entrelaçam e confundem, pois perfilam a construção de uma configuração espaço-temporal outra.

Assim, o estético surge como os léxicos imagéticos das errâncias e itinerâncias, enquanto traços e marcas, por onde cabe narrar seus deslocamentos, suas capturas, seus desejos diferentes e suas poéticas de fruição. O que equivale, em certa medida, a considerar os gestos performáticos, as imagéticas para/com/nos usos, a estética dos indícios, do que se desperdiça, onde o cotidiano se abre às subversões de seus praticantes. Em tais procedimentos, desenrolam-se no espaço escolar estilos próprios de subversão da norma, emergem invenções poéticas singulares para que os escolares se desloquem em busca de fruição. Certeau (2007) compreende tais operações práticas que insinuam uma leitura estética como fabricações, maneiras de empregar, as quais podem ser compreendidas como fazeres poéticos, poiein cotidiano, incessantemente produzidas em um quase-estado de invisibilidade.

Todavia, é importante ressaltar que a poética, enquanto fabricação e imbricamento, conota também uma dimensão singular que resguarda no seu próprio forjamento a marca do sujeito produtor, seus estilos, seus modos de ser. Para além das gramatologias dos códigos linguísticos, Certeau concebe as poéticas como um movimento de disseminação do crível (JOSGRILBERG, 2005, p.93), fazendo eclodir as experiências estéticas que evoquem o outro sobre o insondável dos cotidianos.

Nesse sentido, a poética alinhava-se ao produtivo, os quais, juntos, constituem a dimensão poiética dos cotidianos (NAJMANOVICH, 2011). A poiein é produção, fabricação e – defendemos nós – a produção dos cotidianos escolares para além do óbvio, para além do etiquetado pela sua cartografia oficial e autorizada, alinhavando poéticas, éticas e estéticas. Não uma estética reduzidamente entendida como concernente ao campo artístico, mas estética como dimensão pulsante da vida, inevitavelmente ligada a uma ética e a uma poética que perfazem, enquanto unidade tridimensional, possibilidades de ação e atuação no mundo. Como defende Aldo Victorio Filho, “as relações entre as pessoas e seus espaços, no plano coletivo ou individual, são permeadas de buscas estéticas, como indiciam as inúmeras pistas que encontramos quando escolhemos sentir o cotidiano que nos envolve” (2003, p. 77).

Tais relações humanas é que fazem dos cotidianos escolares espaçostempos complexos, povoados pelo encontro de vozes, pela polifonia. As enunciações múltiplas que aí pululam preveem em sua composição uma arte de “moldar” percursos. Arte que seria o resultado de um imbricamento entre o que pode ser entendido como estilo e uso. Este apresenta o trato singular com o simbólico; aquele parte de um código. Ambos se entrecruzam para modular uma maneira de ser e de fazer. Dessa forma, as apropriações espaciais não passam de um desvio de “sentido literal” da geometria funcional das instituições. Nas enunciações, o sentido próprio do sistema escolar é perdido para uma multiplicidade de atalhos e desvios do ‘figurado’. Os sentidos acometem as trajetórias, aprofundando os traços, alterando os itinerários e estimulando novas motricidades. Sentidos outros que assumem por tarefa a rarefação dos sentidos literais, promovendo uma geografia segunda, de fazeres poéticos, sobre os territórios instituídos da cidade.

Entendemos ser importante, para uma pesquisa dos sentidos e uma educação pelo sensível na escola, empreender caças e capturas desta geografia segunda, geografia semântica, produtora e criadora de escolas cotidianas, onde os praticantes se licenciam a habitar, ocupar e fruir.

(In)conclusões que abrem novas possibilidades de conversações...

Habitar, ocupar e fruir... Três verbos que talvez já deixem entrever uma concepção outra de educação conectada à mirada por vias da poética e da estética. Uma educação que não vise à formação do outro atrelada a um modelo, a um molde, a uma fôrma. Educação cuja efetuação não seja a “enformação”, a “deformação” para que o sujeito venha ser algo diferente do que é.

Falar de poética e de estética em educação, a partir de um viés no qual a experiência é tomada não como aquilo que se passa, mas aquilo que nos passa, nos acontece e nos modifica (LARROSA, 2004), implica em falarmos em uma poiein alteritária como produtora e produzida dos e nos emaranhados complexos e multifacetados que são os cotidianos escolares. O menino que se nega a fazer a atividade, a criança que “não acompanha o ritmo da turma”, a menina que se esconde debaixo da mesa para pintar as unhas, o grupo de crianças que “atrapalham o andamento da aula”, o garoto que vai assistir às aulas com uma pulseira eletrônica colocada nos presos em regime semi-aberto... São miríades de cenas e acontecimentos que impossibilitam uma escrita única da cotidianidade escolar; ela se inscreve polifônica e dialogicamente, porque é escrita por muito sujeitos diferentes e singulares, com seus variados modos de ser e fazer, com seus estilos próprios.

           

Então, por que se falar de poética e estética em educação? Em poéticas dos cotidianos?

           

Ao longo de nossa formação, fomos ensinados por vias da castração dos sentidos. Apre(e)ndemos de forma disjuntiva, obedecendo à dualidade corpo X mente, de modo a extirpar de nossos processos de conhecer os sentidos e sensações fundantes do humano. Entretanto, ainda que velado ou invisibilizado, porque fundante, o sensível perdura em nós e em nossas interrelações; é constitutivo da cotidianidade escolar, dos movimentos de aprendizagemensino, os quais inexistem sem as partilhas do sensível (RANCIÈRE, 2009).

           

Portanto, talvez falar em poéticas do cotidiano seja tentar resgatar essas dimensões apagadas, tornadas invisíveis. Falar em poética dos cotidianos é buscar enxergar a diferença e a heterogeneidade onde elas não são autorizadas, de modo que o outro não seja tolerado, admitido ou incluído, mas seja compreendido como outro, em sua condição de alteridade, de outredade que comigo mantém uma relação exotópica: é dele o excedente de visão que diz de mim o que não posso ver, nem dizer (BAKHTIN, 2003). Como na música de Chico Buarque: “é na soma do seu olhar que eu vou me conhecer inteiro”.

           

O desafio colocado, então, é a legitimação dessas inteirezas efêmeras somente possíveis quando da vivência da alteridade em sua pluralidade de atuação e materialização. Pensamos que o espaço escolar, ao manter uma estruturação que preza pela reprodução e causalidade, dificulta horizontes e espaços possíveis de exercício da diferença e da multiplicidade (dificulta e não impede, pois, pelas frestas e brechas, os escolares reconstroem o espaço oficial, como já sublinhado neste texto).

           

Nesse sentido, falar em poéticas, estéticas e produções subversivas nos/dos/com os cotidianos é importante à medida que nos convida a (re)pensar nossos mapas cognitivos e práticas diárias; bem como as instituições onde atuamos. Elas têm sido lugares instituídos ou espaços praticados? E nossas práticas, têm se aberto a poéticas na sua flexão plural ou têm tragado a diferença para dentro da institucionalização (sempre impossível) da homogeneização?

           

Concordamos com Filho (2003) que a “a fruição estética [e poética] é mais que uma necessidade: é uma exigência da condição humana (p.81). Exigência que visa ao resgate do sensível como dimensão inexorável do fazer cotidiano, dos golpes que refratam o instituído e possibilitam pequenas vitórias, gestadas nas e com as partilhas. Exigência que nos lembra, a todo o momento, de que, apesar de estar sendo isso, a vida pode ser outra coisa. E, como a vida, a educação também pode ser outra coisa: não a continuidade do mesmo, mas a afloração do múltiplo, não que ela também não seja isso (a afloração do múltiplo), mas que isso, então, não habite o marginal, invisível, porque desautorizado...


 

NOTAS:

(1) No bojo dessa ambição totalizadora da modernidade a escola é gestada como uma instituição preocupada com a produção de homogeneidade.

(2)Vygotsky (1994) nos ajuda a pensar aprendizagem e ensino como processos indissociavelmente conectados; processos que, para os russos, não podem ser nomeados se não como uma coisa só: obuchenie. Nessa linha, Sampaio (2008) propõe pensarmos o termo aprendizagemensino como uma possibilidade de significarmos ambos os processos por meio de uma estética outra, mais coerente com o modo compartilhado, complexo e articulável como o conhecimento é produzido e apropriado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BUARQUE, C. Tanto amar. Rio de Janeiro: 1981. Música.

CERTEAU, M. A Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. 13ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

FILHO, A. V. Alguns caminhos para uma vida bonita. In: GARCIA, R. L. Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

JOSGRILBERG, F. B. Cotidiano e Invenção: os espaços de Michel de Certeau. São Paulo: Escrituras, 2005.

LARROSA, J. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. In: GERALDI, C. M. G; RIOFI, C. R; GARCIA, M. F. (orgs.). Escola Viva. São Paulo: Mercado de Letras, 2004.

NAJMANOVICH, D. El Juego de los Vínculos. Subjetividad y Redes: figuras em mutacíon. 2ª ed. Buenos Aires: Biblos, 2011.

RANCIÈRE, J. A Partilha do Sensível. 2ª ed. São Paulo: EXO experimental; Editora 34, 2009.

SÁ EARP, M. L. Centro e Periferia: um estudo sobre a sala de aula. Revista Contemporânea de Educação. v. 2, n. 4. Rio de Janeiro agosto/ dez, 2007.

SAMPAIO, C. S. Alfabetização e formação de professores: Aprendi a ler (...) quando misturei todas aquelas letras ali. Rio de Janeiro: WAK, 2008.

VYGOTSKY, L. V. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

Recebido: 29/06/2012
Aceito: 17/10/2012

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