ENVELHECENDO EM TEMPOS SOMBRIOS (¹)
Resumo:
O aumento expressivo da população idosa no mundo torna imperativa a reflexão sobre as diferentes dimensões do envelhecimento. Aprisionados na lógica econômica e nas desventuras do desemprego, frequentemente deixamos de lado a dimensão amorosa, afetiva, e laboral nas implicações do tornar-se idoso. Ignoramos, igualmente, a posição de exilados a qual frequentemente delegamos os nossos velhos. O presente trabalho, fruto de reflexões acerca destes temas, pretende retomar o lugar do amor, do trabalho e do corpo na constituição subjetiva do sujeito, mais especificamente, do sujeito em processo de envelhecimento.
Palavras-chave: .
AGING IN DARK TIMES
Abstract: the world increase of elderly population makes it imperative to reflect upon the different dimensions of ageing. Imprisoned in the economic logic and in the misadventures of unemployment, we often leave aside the loving, affectionate, and working implications of becoming elderly. We also ignore the position of exile which we often designate elderly people. The present work, intends to discuss the place of love, work in the subjective constitution of elderly people.
Keywords: .
O aumento expressivo da população idosa no mundo torna imperativa a reflexão sobre as diferentes dimensões do envelhecimento. Aprisionados na lógica econômica e nas desventuras do desemprego, frequentemente deixamos de lado a dimensão amorosa, afetiva, e laboral nas implicações do tornar-se idoso. Ignoramos, igualmente, a posição de exilados a qual frequentemente delegamos os nossos velhos. O presente trabalho, fruto de reflexões acerca destes temas, pretende retomar o lugar do amor, do trabalho e do corpo na constituição subjetiva do sujeito, mais especificamente, do sujeito em processo de envelhecimento.
Começo com os versos de um de nossos maiores compositores brasileiros, Chico Buarque de Hollanda descrevendo sua nova relação amorosa na música Essa Pequena:
Meu tempo é curto, o tempo dela sobra
Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora
Temo que não dure muito a nossa novela, mas
Eu sou tão feliz com ela
Feito avarento, conto os meus minutos
Cada segundo que se esvai
Cuidando dela, que anda noutro mundo
Ela que esbanja suas horas ao vento, ai
Às vezes ela pinta a boca e sai
Fique à vontade, eu digo, take your time
Sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas
O blues já valeu a pena.
Como o grande poeta que é, Chico serve de inspiração para abordar algumas questões fundamentais no que diz respeito à velhice e sua inserção social.Inserção, não apenas no mundo do trabalho, do qual muitos estão alijados, mas também do amor, do pensamento e da capacidade de viver de forma mais criativa.
Com seu cabelo cinza contraposto ao vigor da cor de abóbora Chico Buarque vai reafirmar que o amor, a paixão e o desejo não têm data marcada nem prazo de validade. Que é possível vivê-los em sua “idade avançada dos cabelos cinza”, pois sou tão feliz com ela.
Se o poeta teme que não dure muito a nossa novela, ou que ainda vai penar com esta pequena também afirma que o blues já valeu a pena.
Mas por que inicio justo com esta trova? O que podemos refletir acerca destes versos? Gostaria de enfatizar seu caráter de afirmação de vida para todos, sem se importar com a idade. Pensar o amor é pensar a vida não importa em qual tempo.
Ouvir os poetas é, ainda, uma das formas mais revolucionárias de transformar o mundo! E o amor não é coisa pouca!
Chico já inicia contestando nossa estabelecida ideia de que na velhice não há lugar para grandes emoções interditando todo um imenso segmento da população do amor, do sexo e das emoções inesperadas. Velhice é tempo de descanso, sossego e... decadência. O que nos leva a relembrar que o olhar do outro, frequentemente, é a polícia que sequestra nossos afetos, impede que novos projetos surjam e nos destina às masmorras do esquecimento e do tédio.
Os dois ritos de passagem que anunciavam a velhice, o fim do trabalho e da libido, estão, ambos, perdendo autoridade. Vou continuar, por enquanto com a libido, já que com o trabalho não poderemos ser tão otimistas. Penso que não escapa à ninguém que com a liberalização dos costumes e/ou com os progressos da medicina a sexualidade na 3ª. idade deixou de ser um tabu. Envelhecer como sinônimo de decadência deixou de ser um destino inexorável se pudermos repensar o significado da palavra decadência.
Contudo, um parêntese se faz necessário. Será isto amplamente reconhecido? Nem sempre encontramos este eco nos profissionais com quem temos de lidar em nosso cotidiano. Em artigos publicados anteriormente (Vilhena & Novaes 2009 a, b), discuti algumas questões do envelhecimento feminino. Neles apontava que, enquanto para a medicina o corpo é apenas um organismo, com órgãos que falam pelos seus sintomas, para nós, da área psi, o corpo tem outro discurso que não se restringe às reposições hormonais ou às disfunções eréteis.
Em excelente trabalho Furtado (2001) aponta o silêncio imposto aos órgãos em sua significação mais profunda -, como se estivéssemos diante de um corpo sem narrativa. Para a autora a menopausa, por exemplo, ainda é pensada culturalmente como um momento em que a feminilidade tenderia a desaparecer, na medida em que finaliza a possibilidade reprodutora sem o apelo a métodos artificiais de geração de novas vidas humanas.
No Brasil é comum mulheres relatarem sentir um vazio no corpo, como se o mesmo fosse oco. Tal sensação é sintetizada no provérbio/dito popular: mulher na menopausa vira homem. Para os desconfortos do envelhecimento, a reposição hormonal. Para os sinais da passagem do tempo, as cirurgias e a cosmetologia. A menopausa, vista como algo “natural” é reduzida ao âmbito biológico, com seus sintomas “desagradáveis”, facilmente suprimíveis com o tratamento adequado.
Para os homens -, simplesmente Viagra ou Ciallis.
É esta narrativa que muitas vezes escapa na busca por outro corpo. Reduzido à uma questão de vaidade ou de funcionalidade, deixam-se de lado todos os aspectos subjetivos envolvidos no processo de envelhecimento. Com isso, evitariam se defrontar com o desafio de significar seus corpos de forma diferenciada daquela em que foram pensados até muito recentemente. (De Leo & Vilhena, 2010)
Com o aumento da população idosa, torna-se fundamental o investimento em estudos sobre o processo de envelhecimento e os problemas enfrentados pelos idosos neste período da vida. Mudando um pouco o eixo de nossa discussão, vejamos, por exemplo, o que significa a diminuição das capacidades cognitivas bem como das funções executivas.
Os idosos apresentam com frequência, queixa de perda de memória, porém, estudos revelam que o envelhecimento está mais relacionado ao declínio das funções executivas quando comparado às outras funções cognitivas como memória e linguagem. Tais tarefas, aparentemente simples como preparar a comida, dirigir, fazer compras, tomar medicamento conforme prescrito e manusear dinheiro exigem memória de trabalho e habilidades de planejamento e de monitorização preservadas para que sejam realizadas.
Uma das tarefas que ficam mais comprometidas com o declínio das funções executivas no envelhecimento é a arrumação da casa. Aparentemente, varrer a casa, guardar objetos e tirar o lixo são tarefas que não exigem um gerenciador. Porém, arrumar a casa engloba a realização dessas três atividades ao mesmo tempo, e é preciso planejamento, monitorização e todos os outros domínios das funções executivas para que seja realizada.
A questão que se coloca é como lidar com esta nova realidade e até que ponto apenas a medicação dará conta do sofrimento e desamparo vivido? Sabemos que os corpo são traidores mas isto não justifica nos tornarmos reféns deste tempo outro. Se o poeta teme que não dure muito a nossa novela, também afirma que o blues já valeu a pena.
Como bem nos diz com grande sabedoria e sensibilidade Ines Pedrosa:
Envelhecer não significa necessariamente embrutecer - deixar de chorar desconsoladamente e de rir às gargalhadas, deixar de acreditar na força transfiguradora da paixão e na possibilidade de um mundo melhor, deixarmos de dizer o que pensamos e agir exactamente de acordo com isso. O corpo pode correr menos - mas abraça melhor, com mais vagar, porque em cada afago florescem todos os afagos anteriores, os reais e os sonhados.
Mas por que me detenho tanto sobre o corpo? Porque como Foucault (1994), acredito que toda genealogia do poder passa pelo corpo. Toda a história humana, toda a sociedade, toda a singularidade existencial é experimentada e vivida nos corpos reais dos que vivem ou viveram. Se quisermos então saber do mundo humano, da sociedade, de nós mesmos, devemos olhar para os corpos vividos, pois é no corpo que se inscreve a história humana e a história de um único indivíduo. (Le Breton, 1985)
Ninguém quer parecer idoso, já que ser idoso está associado a uma sequência de perdas que começam com a da beleza e a da saúde. Ao processo de envelhecimento, associa-se, paradoxalmente, nosso horror ocidental em poder pensar a morte.
Vejamos o que nos diz Norbert Elias em A Solidão dos Moribundos e em Envelhecer e Morrer. No primeiro, o autor aborda o processo civilizatório da sociedade e dos indivíduos e os modos por meio dos quais se instalam, em cada um, os sentimento de constrangimento, medo e embaraço em relação a tudo que lembre a finitude da vida biológica.
O segundo ensaio, Envelhecer e Morrer, é uma versão revista de uma conferência médica em 1983 e aborda, especialmente, o isolamento dos velhos e moribundos em asilos, hospitais e clínicas de saúde.Segundo o autor o abandono e isolamento dos idosos em nossa sociedade não podem ser explicados unicamente a partir da ideia de que idoso é improdutivo economicamente.
Elias nos leva a refletir sobre os inúmeros terrores que envolvem o fato de envelhecer e morrer ressalvando, no entanto, que o constrangimento social e a áurea de desconforto que, frequentemente, cerca a esfera da morte em nossos dias é de pouca serventia para uma mudança de valores e atitudes frente à questão. O afastamento dos velhos e moribundos do convívio social é o sinal mais evidente da não identificação entre os jovens e os que estão envelhecendo e morrendo.
Se essa não identificação é apreendida, pode também ser alterada, o que coloca um papel fundamental para a educação das novas gerações. Atualmente, o pavor da morte e de tudo que lhe é associado é ensinado, muito cedo, às crianças. Pais e professores evitam falar da morte, de pessoas que morrem ou estão morrendo, as crianças, às vezes, são impedidas de verem pessoas mortas e de vivenciarem as emoções provocadas pela morte. A possibilidade de transformar a relação dos jovens com os velhos e moribundos passa, necessariamente, pela superação do ocultamento da morte durante a infância, bem como pela inserção da criança em relações afetuosas e de amizade com as pessoas que se encontram próximas do fim da vida.
Há outros autores que estudam uma nomenclatura alternativa para designar pessoas acima de 60 anos pelo estigma que o termo velhice carrega. Guitas Debert (2004) analisou em seus trabalhos, a elaboração cultural dessa nomenclatura, que não vai classificar uma fase do curso da vida, a sua fase final, mas uma maneira específica de vivê-la.
Essa forma de experiência do envelhecer é elaborada na sociedade moderna quando a aposentadoria se faz presente como direito social nas nações modernas, quando aumenta a expectativa de vida e quando a ideologia individualista está implicada em todos os níveis da vida. Neste contexto, a representação negativa da velhice é substituída por uma imagem positiva no discurso de especialistas no envelhecimento na área médica e psicológica e, hoje, na sociedade como um todo. Esta positividade elege a juventude como um modelo de vida, vista não mais apenas como uma fase da vida, mas como uma forma de se viver.
Contudo, a substituição da perspectiva da miséria pela perspectiva do idoso como fonte de recursos não é feita sem dificuldades. As concepções ancoradas em visões pessimistas da velhice têm muita vitalidade, permanecendo de maneira engenhosa como fundamento teórico, mesmo quando os dados exigem uma revisão da perspectiva da miséria. (Derbert 2004)
O mesmo ocorre no tratamento da aposentadoria. O pressuposto é de que o abandono do trabalho leva a uma situação traumática que envolve a perda da auto-identidade e do equilíbrio psicológico. É um pressuposto tão fortemente sedimentado na Gerontologia que, quando os dados contradizem os efeitos negativos esperados da aposentadoria, a tendência é apontar para erros na metodologia empregada na pesquisa, antes de discutir se a teoria é ou não correta.
A perspectiva do idoso como "fonte de recursos" aparentemente parte de pressupostos opostos à perspectiva da miséria. Os estereótipos do abandono e da solidão, que caracterizariam a experiência de envelhecimento, são substituídos pela imagem dos idosos como seres ativos, capazes de oferecer respostas criativas ao conjunto de mudanças sociais que redefinem essa experiência. Novas formas de sociabilidade e de lazer marcariam essa etapa da vida, reciclando identidades anteriores e redefinindo as relações com a família e parentes. (Debert 2000)
Entretanto, não está ausente da perspectiva do idoso como "fonte de recursos" a criação de um novo ideal de produtividade que emerge de um conjunto de receitas que ensinam, aos que não querem se sentir velhos, a maneira adequada de dirigir a vida e participar de atividades preventivas.
Aposentados e velhos que não se empenham em desenvolver uma nova carreira ou um novo conjunto de atividades de lazer ou, ainda, que não se envolveram ativamente em programas voltados para a terceira idade são considerados seres problemáticos, que necessitam de motivação.
Todos podem manter os sinais que elegemos na sociedade moderna como positivos para viver: a jovialidade, a esperança, a saúde, a alegria, a vida sexual e afetiva etc.
Contudo, nesse discurso ideológico encontra-se embutida a ideia de que para viver bem o último período da vida, bastaria nos engajar nessa ideia e se não o fazemos, isto se deve mais a nós mesmos do que às condições sociais e culturais. É nesse sentido que Guita Debert (2004) fala em reprivatização da velhice.
Para mostrar como essa transformação é operada, bastaria citar algumas frases de geriatras, transcritas em uma das várias reportagens em que eles são chamados a opinar sobre os problemas da velhice.
O mau humor e a depressão, comuns entre os velhos, são consequências, não causas, de uma vida mal administrada, diz o professor...
O pesquisador (...) realizou testes e provou que uma pessoa de 70 anos que faz exercícios físicos regulares pode ter o mesmo desempenho físico de uma sedentária de 30.
No mais, o importante é prevenir. O geriatra não é um médico especializado em tratar velhos acabados, explica o especialista. Uma atitude positiva perante a vida, , é essencial.
(...) manter-se em atividade reduz a degeneração dos neurotransmissores,
Milagres, porém, não existem. " O que significa que quem quiser ter uma velhice melhor vai ter de trabalhar para isso.
E é aí que vemos se apresentar com muita clareza a presença da ideologia individualista no trato com a velhice e na experiência do envelhecer. Como se vê, há uma distinção clara entre velhice e terceira idade, mas há, também, o ponto fundamental a aproximar essas duas expressões que é o fato de serem, ambas, culturalmente construídas. (Lins e Barros,2008)
O que nos leva a um ponto central – a questão do trabalho. Em tempos de diminuição do estado de bem-estar social, desemprego e perda das utopias como pensar o sujeito fora desta cadeia?
O trabalho não detém uma positividade intrínseca para a humanidade. Antes encarado como maldição ou como algo eticamente neutro, o trabalho tornou-se uma vocação e as pessoas passaram a definirem-se como profissionais (Weber, 1904). A posição que o trabalho ocupa no mundo contemporâneo converte-o em fonte de realização pessoal e, também, de angústia e dor. Nos dias de hoje, na vigência do desemprego estrutural, a maldição lançada por Deus contra Adão, Eva e seus descendentes ganhou sentido inverso: outrora expulsa do Paraíso/ócio, a humanidade teme ser excluída do paraíso/trabalho.
Os teóricos do tema concordam que o universo do trabalho passa por uma reestruturação fomentada por um novo modelo tecnológico, organizado em torno das tecnologias da informação. Segundo Dowbor “a revolução atual não é mais de infraestruturas como ferrovia ou telégrafo, ou de máquinas como o automóvel e o torno, mas de sistemas de organização do conhecimento.” (2002:67)
Bauman (2001) argumenta que o esfacelamento do modelo fordista promove um desencaixe no formato e nas relações de trabalho. O autor argumenta que qualquer um que conseguisse seu primeiro emprego na Ford iria terminar sua vida trabalhando no mesmo lugar, enquanto, hoje, um jovem americano com nível moderado de educação espera mudar de emprego pelo menos onze vezes durante a sua vida profissional. A esse processo é dado o nome de flexibilização, tendo sempre em mente que esta envolve o afrouxamento dos direitos trabalhistas.
Sendo assim, é fundamental entender as implicações dessa imaterialidade não só no trabalho, mas em todas as esferas da vida, sobretudo nas subjetividades. Isso porque, conforme nos fala Pelbart (2003) a produção de subjetividade exerce múltiplas funções na dinâmica em questão.
O que nos leva diretamente à questão do envelhecimento. Como se adaptar ao novo cenário? Apesar de haver grande diversidade de características apresentadas por idosos, que os identificam como tal, como por exemplo, a aparência e a dificuldade em atividades físicas, eles são frequentemente reconhecidos pela diminuição das habilidades cognitivas como mencionamos anteriormente.
Considerando o aumento do número de idosos nos últimos anos; a suscetibilidade deste grupo ao declínio das funções cognitivas, dentre elas, as funções executivas, e ainda, o papel de tais funções na realização das atividades da vida diária, justifica-se a importância do investimento em estudos sobre o processo de envelhecimento e os problemas enfrentados pelos idosos neste período da vida, visando a colaboração para práticas de promoção de saúde e autonomia para esta população.
Ou seja, apontamos para uma relação com o trabalho apoiada na conciliação entre o bem individual e o bem coletivo, apostando ser este um caminho legítimo para uma vida mais feliz.
É nesta articulação entre o bem individual e o coletivo que gostaria de me deter antes de finalizar. Certamente não terá escapado aos senhores que até o presente momento não mencionei a questão do desemprego. Deliberadamente deixei para o final mostrar seus impactos no corpo, no trabalho (ou falta dele), nas relações amorosas e sociais, mas, sobretudo, no sentimento de menos valia e de culpabilização que todos parecem carregar.
Sabemos que o sujeito moderno é aquele que não se responsabiliza pelos males presentes no mundo em que vive. Aqueles que não conseguem alcançar os padrões de vida considerados minimamente aceitáveis, não o fazem por responsabilidade própria. (Ehremberg, 1998)
Estar desempregado, por exemplo, segundo a compreensão moderna, nada mais é do que reflexo da incapacidade do indivíduo. Essa suposta incapacidade individual é uma das propriedades que identificam esse grupo. Dentro dele não é possível que seja alcançado nenhum valor que possa ser aceito culturalmente. Se os movimentos de classe, os sindicatos e os protestos generalizados estão aí para nos mostrar que ainda há esperanças não há como negar os efeitos que o desemprego produz individualmente no sujeito.
Para Honneth (2003) a vida social existe através do reconhecimento do outro como destinatário social. Isso significa reconhecimento subjetivo, a valorização de si dada através do outro, que deve sempre ocorrer de forma recíproca. A necessidade da realização deste ato afeta o funcionamento social, assim como as lutas políticas, pois estas implicam a tentativa de um grupo de serem reconhecidos e valorizados por outros grupos.
A estima dirigida a um sujeito, apesar da importância da sua biografia individual, diz respeito à sua coletividade. Ele é reconhecido através das propriedades comum ao seu grupo. A honra é coletiva. A solidariedade surge então na estima recíproca, ou simétrica como chama Honneth. Em situações extremas de guerra, exemplo dado pelo autor, é comum que através do sofrimento surja o interesse solidário. Da estima coletiva parte-se para a individual, pois ao estar dentro daquele grupo estimado, o sujeito já atribui a si próprio o respeito de que goza. Surge então o sentimento do próprio valor, a autoestima. Nela é reconhecido o seu valor para a sociedade.
Faço aqui um recorte para ilustrar o que falei anteriormente e que conheço bastante profundamente através de minha clínica tanto particular como social desenvolvida na universidade. Tomo como paradigma os homens por acreditar que ainda é sobre eles que incide a maior auto-desqualificação.
Minha primeira observação é sobre o espelhamento no corpo e nos comportamentos violentos. Enquanto nas classes médias, altas e na faixa dos executivos observamos com imensa frequência as disfunções sexuais encobrindo quadros depressivos mais graves, nas camadas menos favorecidas o alcoolismo e a violência doméstica comparecem com assustadora frequência.
Destituídos de sua função de provedor parece que lhes é retirado todas as insígnias da masculinidade. A busca pelo auto emprego em diferentes níveis configura-se com uma saída possível (quando possível), mas longe de ideal.
Curiosamente, é nas mulheres que vamos encontrar as soluções mais criativas para tentar sobreviver à crise com menos dificuldades -, o que não significa facilidade. Acostumadas ao reino da administração doméstica (mesmo as que trabalham) encontram nestas mesmas tarefas fontes alternativas de renda que, muitas vezes, transformam-se em empreendimentos de sucesso.
Como atividades, agora comerciais, fazem bolos, biscoitos, costuras, etc. São também elas que conseguem, talvez pelo espírito mais gregário, montar cooperativas que passam a fornecer produtos para estabelecimentos comerciais. Um bom exemplo é a CoopaRoca. Cooperativa de costureiras da Favela da Rocinha na cidade do Rio de Janeiro que hoje fornecem não apenas para o mercado interno como iniciam suas exportações. Esta nova forma de atividade econômica inaugura um campo de reconhecimento.
O reconhecimento jurídico permite ao sujeito entender suas ações como manifestações de sua autonomia. Isto é chamado de auto respeito. Este se dá quando se entende como ser que partilha com todos os outros as propriedades necessárias para a participação pública. Assim como a confiança no afeto do outro é fundamental para a criança se sentir no direito de se manifestar, a segurança de ser merecedor de respeito do outro leva ao respeito de si próprio. Tal fenômeno, entretanto, não costuma ser notado em sua existência, quando está presente e ocorrendo nas relações sociais. Ele só é percebido em sua forma negativa, ou seja, quando é negado o autorrespeito, como frequentemente observamos no caso dos desempregados.
Quem hoje recusa a “fatalidade” da lógica econômica é taxado de sonhador, quando não de “neobobo”, na feliz expressão de Moacir Werneck de Castro para designar os “não-alinhados” à ideologia da globalização liberal. Entretanto, frisamos o quanto é simplório pensar que um sistema que produz tantos excluídos irá eternizar-se. Acreditamos que, cabe aos homens e mulheres do século XXI, e também à Universidade, tecer novas tramas para um futuro mais justo e inclusivo onde não haja lugar para que apenas os “economicamente arianos” sobrevivam. (Vilhena & Barroso 2005).
Mas por que falar disso tudo?
Nenhuma realidade humana prescinde de dimensão social. A singularidade da dor (física ou psíquica) como experiência subjetiva torna-a um campo privilegiado para pensarmos a relação entre o indivíduo e a sociedade. Toda experiência individual inscreve-se num campo de significações coletivamente elaborado.
Ao estudarmos o papel da universidade, é preciso ter um olhar crítico - e ser crítico ‚ ter pressupostos, pré‚-conceitos e mesmo ideologias, que deverão ser submetidos a uma nova crítica. Acreditamos que o papel da universidade ao resistir ao poder instituído, questionar certas ordens de verdade e quebrar certos limites, facilitará ao sujeito criar novas verdades, novas histórias e novos mundo.
É preciso relembrar, como apontava Foucault (1994), que o sujeito jamais é aprisionado pelo poder; há sempre possibilidade de modificar a sua dominação de acordo com estratégias precisas. A despeito do poder instituído, há algo que acontece nos interstícios das relações; e este algo seria a resistência.
Termino aqui recorrendo, novamente, aos poetas:
Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares... é o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos. (Fernando Pessoa).
NOTAS:
(1) O presente artigo é uma versão reduzida da palestra apresentada no II Congresso Internacional de Gerontologia Social organizado pela Universidade de Coimbra e pela União Geral de Trabalhadores realizado em maio de 2012 na Universidade de Coimbra. O título da mesa redonda era o Papel da Universidade nas formulação de políticas de inserção social de idosos em tempos de crise.
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Recebido: 15/06/2012
Aceito: 01/07/2012