LIPIS

USOS DA INTERNET: ALGUMAS REFLEXÕES ÉTICO-POLÍTICAS

CARLOS MENDES ROSA é Psicólogo. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio. Pesquisador Associado do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social – LIPIS da PUC-Rio. Bolsista do CNPQ. E-mail: carlosmendesrosa@gmail.com

MARIA HELENA ZAMORA é Maria Helena Rodrigues Navas Zamora - Doutora em Psicologia Clínica. Professora do Departamento de Psicologia Clínica da PUC-Rio; Vice-Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social - LIPIS da PUC-Rio. Profa. da Universidade Salgado de Oliveira – UNIVERSO. E-mail: zamoramh@gmail.com .


Resumo: Este artigo objetiva apontar algumas consequências da utilização da internet como veículo de agenciamento das subjetividades na atual cultura. Traça um paralelo entre as produções literárias e artísticas anteriores ao advento das tecnologias digitais e os novos modelos de escrita e expressão das individualidades. Reflete acerca da superexposição dos sujeitos no cenário contemporâneo e as mudanças que tais comportamentos ocasionam nos relacionamentos sociais e afetivos. Por fim, levanta a questão das redes sociais como veículo privilegiado para novas manifestações na cena pública e organização de movimentos de caráter social e político.
Palavras-chave: Internet, relacionamento, subjetividade.

USES OF THE INTERNET: SOME ETHICAL-POLITICS THOUGHTS

Abstract: This article aims to point out some consequences of using the internet as a vehicle of agency of subjectivity in the current culture. Draws a parallel between the literary and artistic productions previous to the advent of digital technologies and new models of writing and expression of individuality. It reflects on the overexposure of subjects in the contemporary scene and changes which such behavior cause in social and affective relationships. Finally, it upheave the question of social networks as a privileged vehicle for new expressions on the public scene and organization of movements of social and political nature.
Keywords: Internet, relationship, subjectivity.

INTRODUÇÃO

O presente texto discute os agenciamentos subjetivos advindos do fenômeno internet. Aborda temas do campo das relações virtuais tais como a superexposição do eu, as questões autorais, os relacionamentos afetivos e as mobilizações sociais. Não se trata de julgar o que há de bem ou mal, mas apontar para bons e maus efeitos em termos de funcionamento relacionados aos meios virtuais.

Iniciamos este texto afirmando que o desenvolvimento técnico multiplica nossa necessidade de viver na chamada esfera do imaginário. A sociedade começa a se dar conta de que a felicidade não se identifica com esse modelo de desenvolvimento. Freud (1930) já apontava em seu texto acerca da cultura, que o progresso da sociedade produz ambivalência, no sentido de que aquilo que mais desejamos – a satisfação dos instintos – se distancia cada vez mais, ironicamente, à medida que criamos mais instrumentos de satisfação. Isso porque, juntamente com tal instrumental (tecnológico, farmacêutico, virtual), vêm também normas que devem reger as práticas sociais e de utilização dessas ferramentas. São mecanismos sociais criados, à guisa de vigilância do tipo panóptica, proposta por Foucault (1989), supostamente para impedir que o homem “goze até morrer” e destrua a própria sociedade no processo.

Lacan (1956) já afirmava que o ser humano precisa de uma cota de imaginação e fantasia para colorir sua vida; a fantasia é o enfeite para o real, tornando-o mais palatável. O autor afirma que a loucura é o limite mais afastado a que pode chegar a liberdade do homem. Vemos também com Winnicott (1975) que, desde seu nascimento, o bebê utiliza-se de uma área chamada terciária, que primeiro é dominada pelas alucinações. Com o decorrer do tempo e sua consequente maturação, desde que as condições do ambiente permitam, essa passa a ser a área intermediária da experiência cultural, da brincadeira e da fantasia. Imaginar é, portanto, uma possibilidade de um desenvolvimento benigno e saudável. Mas não é disso que aqui tratamos. Mostramos várias faces dos também vários usos da internet, com suas implicações ético-políticas.

Com o advento das sociedades disciplinares, controladas e vigiadas, o consumismo apresenta-se como resposta para todas as demandas. E o mercado, demonstrando uma incrível capacidade de se antecipar a tais demandas, oferece produtos, objetos e serviços que, além de criar novas demandas, se apresentam como possibilidades de concretização das fantasias dos consumidores, já pouco ou nada relacionados às suas necessidades.

O que o sujeito encontra na ficção romântica das novelas e talvez também na pornografia, por exemplo, é uma história daquilo que ele nunca viverá. É a sexualidade como ficção, que sai da vida cotidiana. Lembrando que a fantasia sempre se utiliza de questões próprias à constituição subjetiva dos indivíduos, do mesmo modo que os objetos que habitam o imaginário definem a topografia daquilo que não se faz, podemos pensar que o que mais vemos, paradoxalmente, define aquilo que mais falta.

Devido à preponderância do poder econômico, o espaço político perdeu seu lugar de regulador da convivência entre os indivíduos, passando as sociedades a serem definidas como de consumo, segundo a visão de Baudrillard, e orientadas pelo espetáculo, ao adotarmos a opinião de Debord (Vilhena et al, 2005). Interessa-nos pensar nas novas possibilidades de agenciamentos subjetivos na sociedade em que vivemos, seja configurando novas formas de fazer política, seja construindo novas vias de acesso ao outro.

Devido à preponderância do poder econômico, o espaço político perdeu seu lugar de regulador da convivência entre os indivíduos, passando as sociedades a serem definidas como de consumo, segundo a visão de Baudrillard, e orientadas pelo espetáculo, ao adotarmos a opinião de Debord (Vilhena et al, 2005). Interessa-nos pensar nas novas possibilidades de agenciamentos subjetivos na sociedade em que vivemos, seja configurando novas formas de fazer política, seja construindo novas vias de acesso ao outro.

Subjetividades expostas

Nossos relacionamentos se constituem através da imagem visual, sonora ou a imagem táctil. No contemporâneo, na era da imagem técnica, intensificamos a discussão a respeito da imagem produzida pela fotografia, que tem início no século XIX e depois se transforma na imagem do cinema, no começo do século XX e em 1950 propaga-se para a televisão. A partir dos anos 80, com o boom do personal computer, passamos a ter também a imagem que está na tela do computador. As imagens técnicas, por definição, são produzidas por aparelhos e chegam por meio de aparelhos. Não é mais a imagem natural, conduzida pelos sentidos (Tiburi, 2012). Para Debray (1994) estamos na época da "videosfera", em contraposição à logosfera da Idade Media e a grafosfera do Renascimento e do Iluminismo. A lógica da relação social e política é o "estar na mídia". A sociedade tornou-se "midiatizada".

Ao observar, do conforto de suas poltronas, os astros anônimos dos reality shows, as pessoas se identificam e projetam suas vidas naquela imagem cristalizada e idealizada. Como no irônico título do livro de Clarice Lispector, “A Hora da Estrela”, onde a personagem, tão ou mais depauperada que a maioria dos brasileiros, sonha em ser alguém para alguém. Seriam as novelas e programas como Big Brother a “hora da estrela” para os que estão sentados em frente às televisões nas suas casas? Nas palavras de Certeau (1998) isso vem expresso através da afirmação: “sonhe, que faremos o resto”.

Através de uma projeção imaginária, os reles mortais que trabalham o dia todo e perdem horas de suas vidas voltando para casa em transportes públicos, competem, sofrem, perdem, vencem, têm aventuras, aparecem para o mundo. Tudo isso na figura de seus alters que lá na tevê se apresentam em suas performances.

O destino preconizado por Nietzsche (1978), como uma paródia, um pastiche ou uma deturpação, é que cada um irá transformar sua vida em uma obra de arte, mesmo que seja a obra de arte do outro. Ou seja, daquele que é contemplado hipnoticamente através da televisão, das páginas de revistas ou livros de ficção.

De fato, os participantes destes programas, como de qualquer outro de grande audiência, tornam-se conhecidos do público. Mas não de forma ativa, porque fizeram algo notável. E sim porque foram alvo, provisório, de identificação por parte de espectadores anônimos.

Nessa terra sem mapeamento, podemos ver aqueles que criam sua obra principal nos escaninhos virtuais dos blogs e sites da internet, uma terra sem leis onde se pode ser qualquer um e “fazer” quase tudo. Sibilia (2008) nos informa que, segundo matéria publicada pela Revista Times em 2006, a personalidade do momento hoje, no mundo, é “você”. Algo que é endossado no próprio nome do site de vídeos mais acessado do mundo, o youtube, em tradução livre, “você no tubo de imagens”.

Ou seja, na atualidade qualquer um, e todos, podem se tornar protagonista de algo que “pode” ser visto por milhares de pessoas nos espaços virtuais “saturados de eu”. Condição que, diga-se de passagem, imediatamente torna o feito pouco excepcional. O fato é que a “personalidade” continua sendo construída ou orientada para e pelos outros.

Fenômeno que pede reflexão, nesse sentido, pode ser observado nas situações nas quais a preocupação com a exposição de um ego virtual se sobrepõe ao cuidado mínimo consigo. Episódio emblemático do que falamos ocorreu em novembro de 2011 quando a barca que transporta passageiros entre Niterói e Rio de Janeiro chocou-se com o píer da Praça XV, ficando algum tempo à deriva e ferindo mais de 50 pessoas.

O episódio chamou atenção pelo fato de algumas pessoas, ainda dentro da embarcação e sem saberem qual seria o desfecho da situação, começarem a filmar e a fotografar a cena, principalmente a si mesmos e a postarem as imagens no youtube e no facebook. A preocupação em retratar o episódio em tempo real parecia ser mais importante que providenciar socorro a alguém ou a si próprio. Mais importante que o fato é o seu relato. Lembremos também que uma boa quantidade de eus “estrelas” no espaço virtual não é – e não chegará a ser – um coletivo de nada e menos ainda uma comunidade.

Que desejo é esse de apresentar sua imagem para o outro que leva as pessoas a agirem com tal despreocupação em relação a elas mesmas? Como aponta Khel (2003), a visibilidade é o que vai possibilitar ao sujeito o estatuto da existência. Existir é, antes de tudo, apresentar a própria imagem para o Outro. O que equivale a dizer, para um adulto que já tenha ultrapassado as fronteiras dos complexos familiares, que existir é apresentar a própria imagem no espaço público. É no espaço público e no reconhecimento cidadão que o sujeito atesta que sua existência faz alguma diferença (Vilhena & Rosa, prelo). Estudos consistentes – como o do professor Fernando Costa da USP, que se disfarçou de gari e trabalhou por dois anos no campus universitário sem nunca ser reconhecido (Costa, 2003) – mostram o quanto é sofrida uma existência invisível. Mas esta visibilidade não pode ser confundida com um narcisismo patológico que desmesuradamente deseja a auto exposição e lança mão de qualquer tipo de recurso para consegui-la.

Em entrevista publicada no youtube, Antonio Veronese (2012) afirma que antigamente a televisão abria espaço para o talento, mas hoje abre espaço para a mediocridade. Podemos ir mais além e questionar até que nível de rebaixamento as pessoas estão dispostas a aceitar para terem suas personas filmadas e transmitidas pelos programas de TV. Será que existe um limite para a degradação quando se trata de promover a própria imagem ou uma imagem alheia chocante e escandalosa – como as que aparecem nos famosos vídeos virais? Com uma finalidade mista de exploração capitalística, retorno da exposição midiática e narcisismo, personalidades “alter dirigidas” – termo de Sibilia (2008) para designar os sujeitos que estruturam suas características de personalidade baseados nos estereótipos criados pela mídia – criam contextos bizarros onde realizam o que parecem ser as fantasias mais primitivas de seu inconsciente.

A primeira frase escrita pelo protagonista do livro “1984”, de George Orwell, em seu diário secreto, pode refletir bem o pensamento de uma parcela da população brasileira atualmente – Abaixo o Big Brother! Ironicamente, Orwell (1949) dá voz de rebeldia a um personagem cujo ofício na trama era a fabricação de verdades e a produção de ídolos que atendessem aos interesses da classe dominante. Algo comparável ao papel da mídia ao chamar de heróis os participantes do BBB. Deixamos claro que esse não é o único programa que privilegia o exibicionismo e a exploração da sensualidade como atrativos midiáticos; ao contrário, esse recurso parece ser regra geral.

Os “heróis” desses programas não lutam por uma causa, mas passam o dia na piscina comendo, bebendo e tramando esquemas para conseguir vantagens sexuais e políticas dentro do jogo de quem elimina os outros e aparece mais. Vale reforçar que a suposta liberdade sexual ali vivida não questiona os estereótipos que desqualificam a mulher ou os homossexuais. Presos a eles e não trazendo qualquer discussão ou diferença, trata-se de um desfile de situações que na vida “real” seriam constrangedoras, ainda que dentro da lei.

É preciso lembrar também que programas desse tipo já foram acusados de promover a tortura, ao utilizar o confinamento em um quarto sem estímulos e, recentemente, uma situação sexual onde a mulher parecia desacordada provocou clamor público ao apontar para o abuso. De toda forma, os expectadores assistem e pagam para divulgar suas opiniões nos sites testemunhais da grande rede, concedendo a estes um estatuto de normalidade.

Textos sem dono

Nota-se sem esforço que muito daquilo que se produz hoje, em matéria de conteúdo, tem pouca ou nenhuma exigência de qualidade para que se possa publicar, seja nas páginas da internet, seja impresso nas revistas e livros, que são contados tão somente pelas cifras que arrecadam; os best sellers. O termo “literatura de consumo” define essa categoria de autores que escrevem apenas para serem devorados facilmente por seus milhões de leitores, enquanto eles viajam ou tentam não pensar em nada. Muito diferente dos autores que construíam histórias repletas de significado, as quais precisavam ser absorvidas e elaboradas ou que representavam, através de sua obra, toda uma sociedade, costumes e mazelas de seu tempo, como vemos em Leon Tostoi,  Honoré de Balzac, Machado de Assis, Gabriel García Marquez, Phillip Roth, entre outros.

Se as letras não definem a época e seus contextos, alguém mais interessado o fará, segundo seus próprios interesses. Benjamin (1987) afirma que o homem contemporâneo perdeu o valor da experiência, contrapondo a palavra experiência à palavra vivência. A vivência não produziria narrativa nem transmissão. Ou, nas palavras de Kehl (2003), a velocidade das transformações faz com que o mais familiar que você pode reconhecer na atualidade seja as nuvens do céu.

Sibilia (2008) afirma que as belas artes da narração das quais eram possuidores Joyce, Proust e outros grandes escritores, que narravam com brilhantismo e poesia aspectos às vezes corriqueiros de suas vidas, criam contraste com as narrações dos sites testemunhais e dos programas de TV.

No atual contexto, apesar de encontramos produções artísticas e literárias interessantes, muitas vezes, a única ambição do artista é poder ser autor. Materializar-se no espaço imaginário (virtual ou não) onde todos se colocam para a observação do outro, como o bebê, um dia, se colocou para a contemplação apaixonada da mãe, que o fazia nascer novamente e afirmar sua existência nessa mirada. 

Contornando a questão dos direitos autorais nas publicações digitais. Preferimos pensar as implicações subjetivas da autoria (ou ausência dela) nos escritos que proliferam nos escaninhos virtuais. Não ter autoria não se coloca necessariamente como um problema; aliás, ela sequer era pensada antes da gradual emergência histórica do indivíduo como forma de ser. Já sabemos que houve um tempo em que textos literários eram postos em circulação e valorizados sem que se pusesse em questão a sua autoria; o seu anonimato não era importante (Foucault, 1990). Problematizamos que, em tempos de consenso, de acordo entre indivíduos que defendem seu ponto de vista e seus interesses (Bauman, 2001), manifeste-se um individualismo tão narcísico que precisa se diferenciar com sua opinião, mas não ao ponto de ter que arcar com as consequências dela.

Podemos aqui radicalizar a afirmação de Foucault (1990) de que a modernidade separou o autor do enunciado. Parece-nos que, mais do que separar, a atual cultura digital promove a desvalorização de ambos, na medida em que não apenas o que se diz já ganha valor pelo simples fato de que está dito, e se “o que vem fácil vai fácil”, esse valor facilmente dado pode tornar-se “nenhum” com a mesma rapidez. Mas especialmente porque hoje é possível dizer o que se quer nos incontáveis fóruns e grupos de discussão sem necessidade de identificar-se. Se é fácil ser autor é mais fácil ainda fazer-se enunciado. Até porque, como afirma Bauman (2004), no mundo digital o importante é dar continuidade às conversas, pois “o silêncio equivale à exclusão” (p.54).

Certa blogueira bastante conhecida chegou a afirmar que os blogs substituem a psicanálise, porque quando você escreve sobre suas questões, as pessoas lêem e comentam e você reflete, já está feita a análise e, melhor, sem despesas! Isso pode até ser verdade, se levarmos em consideração a atual cultura do imediatismo, onde o que importa são os “resultados” rápidos e baratos. Tudo o que se deseja é não sofrer, não se implicar, não pagar o preço (emocional ou financeiro) pelos objetos de desejo e consumo. A superficialidade é o atrativo.

Nesta perspectiva faz todo sentido o grande sucesso dos psicotrópicos que prometem alívio e tranqüilidade comprimidos em uma pequena pílula, ou, aproveitando a contribuição de Birman (1992) o controle do tipo manicomial não acabou, apenas tomou outras formas, conta com a vontade do cliente, e reduz-se ao tamanho de um comprimido. Ou o alívio para uma realidade insustentável pode ser buscado no universo das drogas consideradas ilegais.

Antonio (1998) afirma que na internet cada indivíduo pode assumir várias identificações ao mesmo tempo: todos podem ser autores, produtores, editores e leitores, de modo que a subjetividade de cada papel prevalece de acordo com o instante. Os papéis se misturam e se confundem, distanciando-se de suas caracterizações tradicionais. A obra intelectual e artística não mais se apresenta exclusivamente como a produção íntegra e perene de autores que se pode reconhecer, mas também como obra virtual múltipla e frequentemente anônima, fragmentada, incompleta, fugaz. O que exige uma reflexão sobre o patrimônio intelectual numa cena cultural que pode prescindir da noção de autoria.

Defendemos, no entanto, que tal perspectiva não sirva como escudo para se enunciar qualquer coisa sem aceitar as implicações do próprio posicionamento. À época da morte de Steve Jobs, por exemplo, uma psicanalista escreveu, a convite de um veículo de imprensa, um texto acerca do fato de Jobs ter sido criado por pais adotivos. O texto provocou diversas reações por parte dos leitores, algumas a favor e outras contrárias, algumas equilibradas e outras apaixonadas. Mas o que nos chamou à atenção neste e em outros “debates” foi a quantidade de comentários sem autoria ou sob pseudônimos. A psicanalista aceitou debater com seus interlocutores, mas não com os que postaram comentários anônimos. Pois em psicanálise – como na vida cidadã – é preciso que se pague o preço pelas próprias palavras.

Em que posição ética está um sujeito que não se implica e não deseja se haver com as próprias questões? Se o modo de funcionamento do sujeito expressa-se de igual maneira em vários campos da sua existência então é preocupante como as pessoas lidam com a realidade em nossa cultura. Ser fake em qualquer esfera da vida não só é uma saída possível, como acaba sendo um recurso frequentemente empregado.

Um pouco sobre os relacionamentos em espaços virtuais

Neste contexto surgem os chamados relacionamentos virtuais. Relações fraternas, amigáveis, comerciais, amorosas ou várias delas juntas, que têm início a partir da tela e ligam pessoas de mundos diferentes através dos territórios comuns do espaço virtual. Nos relacionamentos onde existe alguma espécie de vinculo afetivo (amizade, o ficar, o namorar e as relações de cunho sexual), Bauman (2004) afirma que a vida social pós-moderna é marcada pela extraterritorialidade do poder, passível de ser levado a cabo a partir de qualquer lugar, devido à facilidade de circulação de pessoas e capitais (intelectual ou financeiro) e pela fluidez das relações. Poderíamos falar em instantaneidade? Segundo o autor, diferente dos relacionamentos reais; pesados, lentos e confusos, é muito mais fácil entrar e sair dos relacionamentos virtuais; eles parecem inteligentes e limpos, fáceis de usar, compreender e manusear.

Outros autores, como Nicolaci (2005), defendem que a internet permite a ocorrência de interações virtuais passageiras entre desconhecidos que freqüentam os ambientes de encontro nos quais (tal como em lugares de encontro “reais”) muitas pessoas podem interagir em busca de afinidades que possam transformar essas interações passageiras em relacionamentos. A autora afirma que os relacionamentos virtuais podem ser definidos como o desenvolvimento, a médio e longo prazo, dessas afinidades estabelecidas online, sendo potencialmente tão duradouros quanto qualquer relacionamento “real”.

Para nós, tais relações virtuais podem chegar a transformar-se em vínculos duradouros na esfera real, mas a forma como estes se estabelecem e se desenvolvem tem uma característica muito mais marcada pela instantaneidade e trivialidade. Poderíamos chamar de um tipo multimídia de relação, e com isso queremos dizer um tipo muito parcial de gozo. Quando o interesse acaba, ou a situação chega a determinado ponto que exige, se não reflexão, pelo menos elaboração, sempre se pode apertar a tecla “delete”. Não sem consequências psíquicas ou com tanta leveza quanto se pode aparentar, já que a modernidade não chega com esta velocidade ao psiquismo. As pessoas também sofrem e se desapontam com relacionamentos on line.

Nas relações virtuais, o outro tende a ser rapidamente amado e odiado, introduzido na vida como muito íntimo e descartado como inútil, quando não cumpre com o destino a ele determinado. Ao outro não cabe um encontro de afecções ao modo espinosiano, mas simplesmente um acoplamento (Detoni, 2012), que pode facilmente ser esvaziado de sentido.

Atualmente existe um abandono da linguagem discursiva e da linearidade, da narrativa com começo, meio e fim. Na internet, passa a haver um novo tempo que não é mais linear e, sim, simultâneo – quase uma ausência de tempo. Em nossa cultura é difícil pensar no que vai acontecer, porque vai se deparar com questões graves como morrer, envelhecer, perder. Pensar não nos deixa necessariamente mais felizes, mas pelo menos nos deixa em paz. Mas também é possível que tenhamos criado um mundo onde as pessoas têm muita informação, mas pouca possibilidade de pensar (Tiburi, 2012).

O reverso da internet – Liberdade e(m) política

Não se trata de adotar uma postura nostálgica de valorização do antigo, afirmando que nada do que se produz atualmente tem valor. É claro que hoje ainda existem novos e interessantes autores em plena produção e relações interessantes, com maior ou menor nível de compromisso. Tampouco fazemos uma crítica radical, que desconhece o grande bem promovido pelas redes virtuais na difusão de informação, na acessibilidade em sentido amplo e na facilitação que esta provê às mobilizações sociais, apenas para citar alguns pontos.

Quanto ao potencial libertário da internet, nosso último tópico de análise, podemos constatar muitos dos seus efeitos, mas ainda há relativamente pouca teorização sobre o assunto. Arriscamos uma aproximação do tema, colocando alguns pontos do desenvolvimento de Foucault (1989) sobre o poder para procurar entender como operam tais processos de comunicação. O potencial transformador da “militância digital”, como possibilidade de retomada da dimensão política, para tantos esquecida (Bauman, 2000), é um fenômeno que ainda precisa ser devidamente estudado.

O que faz com que o poder se mantenha e seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir (Foucault, 1989).

Cada luta se desenvolve em torno de um foco particular de poder e não de um poder absoluto e central. Designar os focos, denunciá-los, falar deles publicamente é uma luta, não porque ninguém tenha consciência disto, mas porque falar a esse respeito – forçar a rede de informação institucional, nomear, dizer quem fez, o que fez, designar o alvo – é uma primeira inversão de poder, é um primeiro passo para outras lutas contra o poder. Ou contra o segredo, como também mostra o autor (Foucault, 1989).

Uma parte central da capacidade de resposta democrática consiste em fazer-se inteligível, tanto para os outros quanto para si mesmo e romper com a zona de sombras do não dito, dos segredos à moda da Máfia (Lourau, 2007). Não se reduzindo às denúncias ressonantes, a possibilidade de fazer falar o poder e colocar em foco sua forma de funcionar é importante para qualquer iniciativa que se queira transformadora.

Um elemento-chave na dinâmica da comunicação, digamos, militante, é a "manifestação para outro", como afirma Norval (2011). O autor se apropria dos conceitos de “perfeccionismo moral” de Cavell que é a expressão não-teleológica de um desejo de mudança ou de transformação e se caracteriza pela busca de elucidar o tipo de cuidados e compromissos que estamos preparados para reconhecer.

Para Cavell (2004), o objetivo é definir quais posições normativas se reconhece, ao invés de avaliar se determinados compromissos normativos previamente conhecidos são adequadamente atendidos. Norval também utiliza o conceito de “parrhesia” em Foucault (2001), que consiste na liberdade da palavra, na condição de poder falar tudo sem disfarce, francamente e de coração aberto, de poder comunicar-se com outras pessoas, até com ironia e arrogância, se for o caso.

Norval utiliza os conceitos esboçados acima para demonstrar a importância crucial da “liberdade de expressão” propiciada pelas redes sociais para a concretização das mobilizações em prol da democracia, por exemplo, no caso do que se denomina hoje de “primavera árabe”. Segue afirmando que as ressonâncias e as divergências nos relatos tornam visível a importância de vários modos de manifestação para outro. Pois estas são uma parte fundamental do processo de pensamento através das modalidades de uma gramática de resposta democrática. Emitir e aceitar opiniões, capacidade de questionamento e respeito ao outro são características essenciais do regime democrático (Norval, 2011). Podemos lembrar ainda que a democracia é o foro privilegiado de expressão das opiniões contrárias.

A Primavera Árabe foi promovida e realizada através das movimentações das redes social (facebook e twitter) e com isso não cessamos de nos espantar. Pessoas secularmente oprimidas certamente desejavam alguma modificação nos regimes governamentais, no entanto, não bastava ser uma única voz que ecoa na multidão. O que ocorreu foi que tais ideias começaram a circular nas redes virtuais e foi-se percebendo que muitos já pensavam e desejavam as mudanças que vieram a ocorrer.

Freud (1921) afirma que existe algo em nós que, acusando sinal de emoção em alguém mais a nosso redor, tende a fazer-nos partilhar daquela emoção, se estivermos unidos a essa pessoa por laços grupais, como objetivos ou ideais comuns.

Uma dimensão de transformação social nunca antes vista se abriu com as redes virtuais. Ao mesmo tempo em que assinamos uma petição pública contra o apedrejamento de uma jovem muçulmana que se encontra prisioneira e condenada à morte em um regime islâmico fundamentalista, podemos promover uma movimentação favorável à construção de uma ciclovia em nosso próprio bairro. Vale dizer que todas as manifestações contra essas leis tirânicas foram efetivas; as vítimas de apedrejamento foram salvas e as ciclovias... encontram-se em discussão e não raro em construção.

Afastados pelos limites da distância e das diferenças culturais, no momento da manifestação solidária, pela via da internet, podemos nos contagiar pela indignação. E sem dúvida ampliamos a possibilidade de afirmar que “nada que é humano nos é estranho”.


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Recebido: 15/06/2012

Aceito: 01/07/2012

 

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