LIPIS

BATEU, LEVOU! O QUE DIZEM OS LUTADORES DE MMA(1)

JOANA DE VILHENA NOVAES é Psicanalista. Pós-Doutora em Psicologia Médica (UERJ). Pós-doutora em Psicologia Social (UERJ). Doutora em Psicologia Clínica (PUC-Rio). Coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social, LIPIS da PUC-Rio. Pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine - CRPM-Pandora. Université Denis-Diderot, Paris VII. Autora dos livros: O intolerável peso da feiúra. Sobre as mulheres e seus corpos. PUC/Garamond (2006). Com que corpo eu vou? Sociabilidade e usos do corpo nas mulheres das camadas altas e populares. Pallas/PUC (2010). Corpo pra que te quero? Usos, abusos, desusos. Em co-organização com Junia de Vilhena.  Appris/PUC (2012). www.joanadevilhenanovaes.com.br E-mail: joanavnovaes@gmail.com


Resumo: Partindo do recente fenômeno de popularização do vale-tudo no Brasil, o artigo tem  como objetivo investigar as representações sociais em torno dessa prática esportiva. Através da escuta de lutadores de MMA buscamos entender uma prática que, cada vez mais, ganha adeptos, admiradores bem como críticos ferrenhos.
Palavras-chave: corpo, disciplina, violência, visibilidade e identidade.

KNOCK OUT! WHAT DO THE MMA FIGHTERS SAYS

Abstract: The article aims to investigate the social representations of the practice of MMA in our society. By listening MMA fighters we seek to understand a sport that, increasingly, gains fans, admirers and critics of all kinds.
Keywords: body, discipline, violence, visibility and identity.

INTRODUÇÃO

Partindo do recente fenômeno de popularização do vale-tudo no Brasil, o artigo tem como objetivo investigar as representações sociais em torno dessa prática esportiva. Através da escuta de lutadores de MMA buscamos entender uma prática que, cada vez mais, ganha adeptos, admiradores bem como críticos ferrenhos. O que significa um corpo que não sabe o que é viver sem dor e no qual a disciplina é assimilada através da luta, foi algumas das indagações que nortearam esse estudo.

Parte de uma pesquisa mais extensa, buscamos, neste trabalho, apresentar de forma bastante resumida, alguns dos resultados que julgamos mais relevantes.

Conforme demonstraram nossos entrevistados, nesse universo o corpo é uma moeda de troca valiosa e devidamente adestrado através de um rígido controle de si, leva à ascensão social.

Além disso, verificou-se que essa prática corporal constitui um importante meio de sociabilidade, contribuindo para a formação de um universo bastante hierarquizado, no qual a transmissão da técnica corporal reforça a construção identitária masculina. Finalmente, desse estudo também derivou uma discussão, bastante polêmica, sobre o estatuto que as práticas de combate assumem no imaginário social: tratar-se-ia, pois, de uma violência gratuita espetacularizada ou destino biológico?

Chegando de mansinho: sobre o reconhecimento do território

O contato com uma academia de MMA (prática que condensa múltiplas artes marciais) é impactante sob vários aspectos: o primeiro é através do olfato, uma vez que a primeira impressão que toma literalmente, de assalto qualquer estrangeiro ao meio, é o forte odor de suor potencializado pela adesão à uma dieta rica em proteínas que muitos desses lutadores fazem uso antes das competições. Esses ambientes rescendem à testosterona, e é justamente ela que nos recepciona fazendo a devida introdução ao universo pesquisado! 

Embora a apresentação do ambiente não seja das mais convidativas, após um tempo no local, percebo que os lutadores constituem um grupo bastante coeso, algo da ordem de uma fratria, irmandade ou mesmo uma família-, ou seja, uma prática cuja disciplina promove o sentimento de pertencimento e que por isso faz com que o sujeito sinta-se acolhido. Pertencimento, aliás, é o sentimento que permeia as diferentes falas como veremos adiante.

Difícil não sentir alguma dose de desconforto em um campo impregnado de significantes tão fortes! Afinal, como nos lembra Bourdieu (1980), - transgressão tem a ver com domínio e sentir-se a vontade está diretamente relacionado a ter familiaridade com as regras do jogo.

Em uma perspectiva sociológica, o “outro” só passa a ser considerado objeto de aceitação ou negação a partir de determinado grau de conhecimento, formulado a priori e numa relação de proximidade (física, cognitiva e moral). O “estranho”, neste caso, é representado pelo “outro-diferente” e pela falta de conhecimento objetivo sobre ele. No entanto, o “estranho”, como já apontava Freud (1919), não é apenas uma representação daquilo que desconhecemos no outro, mas principalmente daquilo que desconhecemos em nós mesmos-, ou ainda, que não queremos reconhecer em nós mesmos. Na ausência de referências, qual seria então a moeda de troca?

 Tanto na clínica quanto na prática de pesquisa, aprendi que uma escuta atenta, sensível e acurada pode nos servir de múltiplas formas. Oferecer uma escuta significa valorizar, conferir status ao sujeito e confirmar sua importância. Em um ambiente altamente hierarquizado, coeso e no qual submissão e respeito são palavras de ordem, lição depreendida em uma visita anterior ao universo do jiu-jítsu, esse conhecimento me foi útil para tentar adequar a minha aproximação naquilo que supus fosse, em princípio, um ambiente hostil. Nada mais respeitoso que dar a palavra a quem se dispõe a conosco conversar.

“O treino é duro, tem que ter disciplina até criar resistência, mas somos todos parceiros, temos cumplicidade e respeito, pois isso aqui acaba sendo uma grande família, vira tudo brother, a equipe serve para dar suporte e tem o mestre que nos transmite os seus ensinamentos a cada treino”. (B.6)

Trocando em miúdos: notas sobre o campo e seus personagens

Todo pesquisador tem uma dívida com seus entrevistados e com o conhecimento que produz. Penso ser esta uma prática bastante violenta. Contudo, apesar do preconceito, falta, antes de prosseguir, registrar o meu reconhecimento ao tempo despendido por todos os meus entrevistados nos inúmeros encontros que tivemos.

Ainda que não me tenha sido solicitado, optei por não identificar meus entrevistados à exceção de Giovanni Tonzano(2), dono da Academia Coach, em Copacabana e Claudio Coelho da Academia Nobre Arte, no morro do Cantagalo. Busquei, ainda, retirar qualquer coisa mais específica que pudesse identificar os sujeitos sem, entretanto, prejudicar a essência do que me estava sendo transmitido. Este cuidado, talvez excessivo para muitos, redunda não apenas de minha experiência clinica, como da preocupação em preservar a privacidade dos entrevistados-, sejam eles publicamente conhecidos ou não.

UM CORPO QUE DÓI: HABITUS, RESISTÊNCIA E ADESTRAMENTO.

Conforme apontam White, Young & Mcteer (1995), é através dos treinos que o sujeito masculino vai sendo modelado. É também no treinamento que o corpo assimila a disciplina, dando ao atleta o controle de si como tão bem sinalizou Foucault (1985), ao discorrer sobre as tecnologias do eu, relações de controle e domínio em sua genealogia do poder.

Com as técnicas corporais incorporadas e o domínio do corpo, os lutadores adquirem uma valiosa estratégia/capital contra os seus oponentes. Aprendem a controlar a dor, superá-la, neutralizá-la e até mesmo dissimulá-la. Suportam e convivem com a mesma de forma tão intensa e constante que, na sua ausência, desconfiam não estar desempenhando o seu papel corretamente, como nos mostram as falas dos nossos entrevistados, sugerindo estranhamento ao treinar sem dor.

“Vivo com dor, assim é a vida de um atleta e quando não é assim até estranho e desconfio que não ando treinando direito (risos). Treino em média umas oito ou nove horas por dia e nas semanas que antecedem as competições uso o meu corpo até o limite, chego em casa, como, tomo banho, dou um beijo na minha mulher e desmaio exausto, as vezes chego e ela já tá até dormindo, mas é o meu instrumento de trabalho, meio de sustento e a razão de ter conquistado tudo na minha vida até agora. Tá vendo aqui (apontando para o bíceps) faço muita fisioterapia e treino com dor direto, por isso vim enfaixado e com a tipóia.( B.1,  33 anos, lutador de UFC – BTT).

VALE QUANTO PESA: CORPO, DISCIPLINA E CONTROLE DE SI

Das falas apresentadas estas talvez sejam as que mais guardem semelhanças com o campo das academias de ginástica freqüentadas por mulheres de classe média alta. Em estudos anteriores, (Novaes, 2001; 2006; 2007; 2011) ao falar sobre os usos do corpo na sociedade de consumo/cultura carioca, enfatizei a crescente relação persecutória com a balança que fazia, muitas vezes, da malhação o sintoma de uma profunda insatisfação com a própria aparência. Esse desconforto espelhava um agudo sofrimento psíquico que era potencializado pelo horror à gordura do qual somos todos testemunhas.

“O momento da pesagem é tenso, é a única hora em que não gosto e me arrependo de ser um lutador profissional. Chega umas três semanas antes da luta e o corte tem que ser muito radical, tipo assim porque você as vezes tem que perder doze quilos e senão perder é penalizado e não luta. Vai chegando perto da luta o treino intensifica e você vai ficando mais ansioso porque sabe que tem que perder.... é sinistro. Lembro uma vez em Brasília que simplesmente não conseguia enxugar o que precisava pra minha categoria, estagnei no peso, por causa do clima seco eu praticamente não suava nos treinos, por mais que me enchesse de roupa feito hoje   aqui, por exemplo, que estou usando duas camisetas, uma até de manga comprida, que é para aumentar o gasto calórico e eu poder comer algum carboidrato” (B.2)

“Pô essa parte da dieta antes da pesagem é f..... é muita restrição, uma semana antes da luta chego a sonhar com Mc Donald, rola uma fissura mesmo, porque chega assim uns dois, três dias antes da pesagem e é só dieta líquida, isso porque nessas semanas que antecedem você já é obrigado a ir cortando sal ,açúcar, leite e termina só na proteína mesmo. A dieta, antes do combate, talvez seja o que exija mais autocontrole, disciplina e privação do profissional”  (B.4)

Não pude deixar de recordar a fala de uma de minhas primeiras entrevistadas, na época com 16 anos e que me disse: “Não vejo a hora de ficar velha para poder comer uma macarronada sem culpa”. (Novaes 2001:43) Tantos anos se passaram, entrevisto agora pessoas tão diferentes e a sensação da balança perseguindo permanece a mesma! 

CORPO: IDENTIDADE, INVESTIMENTO E CONSUMO

Segundo Rodrigues (1986), o corpo, em uma civilização de abundância industrial, tem uma nova tarefa. Ainda que não seja mais um corpo-ferramenta deverá ser um corpo consumidor, individualizado, livre e, sobretudo, cuidado.

Para Rodrigues (op.cit) é fundamental entendê-lo para podermos falar no corpo liberado. Inadequado para as fábricas, para que servirá este corpo moderno?

Não há como ignorar o vetor financeiro uma vez que a indústria da luta (Culto ao corpo, consumo de insumos esportivos + produção e veiculação de imagens violentas que geram altos índices de audiência) vem demonstrando ser bastante lucrativa, movimentando cifras bastante altas, agora disputadas pela grande mídia televisiva que busca deter os direitos de exclusividade de exibição dos combates de MMA. Dentre eles o UFC é o campeonato de maior prestígio, considerado a elite no universo das lutas.

Um capital, ou um tipo de capital, é aquilo que é eficaz em um determinado campo. É ao mesmo tempo a arma e o que se disputa, o que permite a seu detentor exercer poder, influência, e, portanto, existir em determinado campo, em vez de ser uma simples quantidade negligenciável. No trabalho empírico é uma só e mesma coisa determinar o que é campo, seus limites, os tipos de capital atuantes, qual alcance de seus efeitos, etc. Vemos que as noções de capital e de campo são estreitamente interdependentes.(Bourdieu,1980:4).

Trata-se, assim, do corpo como valor e moeda de troca –, capital.

“Se a luta não tivesse me dado a oportunidade de ganhar o mundo e ter mobilidade social talvez estivesse envolvido com o mundo do samba, da malandragem, porque eu ia sempre nos ensaios, meu pai, que é alfaiate, é um cara bem conhecido nesse meio, sei lá.... tenho muito orgulho da minha origem, mas sei que de onde eu vim é preciso ter sagacidade pra sobreviver e se dar bem e a luta me deu isso, viajei, comprei e conquistei coisas... nem sei onde eu estaria se não lutasse e  praticasse o bem.” (B.1)

“Foi com a luta que eu consegui a segurança que não tinha quando era mais novo, quando te disse que era um adolescente inseguro por conta dos meus pais serem separados. Acho que os treinos te dão isso, ele te exige persistência e obstinação para não desistir dos seus objetivos, te dá força, torna o cara resistente é o que eu sempre procuro passar para os meninos da minha equipe. A luta te prepara para ser um ganhador, te faz encarar melhor as revanches da vida, mas ao mesmo tempo te ensina, física e emocionalmente, a suportar melhor as derrotas.” (B1)

“A luta foi muito importante na minha formação, ela ajudou a formatar a minha personalidade e o meu caráter como homem, reforçando valores como a hombridade e o respeito. Além disso, me deu autonomia financeira, reconhecimento, notoriedade e visibilidade até eu poder criar a minha equipe e passar para eles a minha técnica” (B.6)

Nesse sentido, ao falar da formação identitária dentro de grupos sociais específicos, o pensamento de Cecchetto (2004) parece estar bem afinado com a fala do nosso entrevistado, no tocante ao fato dos esportes de combate potencializarem habilidades baseadas na resistência e na técnica. Esses atributos comparecem no discurso dos lutadores através da crença de que buscar a vitória nos combates, interfere na própria formação, fazendo com que o sujeito desenvolva características de personalidade, tais como a tenacidade e a obstinação.

DE VOLTA À ARENA ROMANA: VIOLÊNCIA GRATUITA OU DESTINO BIOLÓGICO?

Segundo Jurandir Freire Costa (1985), a violência pode ser definida pelo desejo de humilhar e degradar o outro. É porque o sujeito violentado (ou o observador externo) percebe no sujeito violentador o desejo de destruição (desejo de morte, de fazer sofrer) que a ação agressiva ganha o significado de ação violenta. Não existe violência sem desejo de destruição. A violência definida como agressividade e equiparada a um impulso instintivo e termina por ser trivializada.

Escolhemos a definição do autor para iniciar o que talvez seja a categoria de análise mais polêmica desse estudo, já que a não é mistério a crença de muitos e o discurso partilhado por outros tantos acerca das lutas como um exercício de violência gratuita e espetacularizada: a volta à arena romana.

Relendo o texto freudiano, ao mesmo tempo em que traz as concepções de Hanna Arendt sobre a relação da violência com o poder, Costa (op.cit) vai nos conduzindo ao caminho da violência como desejo, jamais como algo “irracional” ou da “natureza humana”.

Para o autor a banalização da violência é, talvez, um dos aliados mais fortes de sua perpetuação A resignação de que somos "instintivamente violentos" faz com que o homem se curve a uma inexorabilidade igual à da morte. Faz dela seu "destino biológico" ou o princípio e o fim de seu destino psíquico, social ou cultural. Não há, portanto, violência instintiva, porque falar de violência é falar de uma intenção de destruir.

Violência é, então, o emprego desejado da agressividade, com fins destrutivos. A irracionalidade do comportamento violento deve-se ao fato de que a razão desconhece os móveis verdadeiros de suas intenções e finalidades. Esta definição nos será útil ao interpretarmos as falas de nossos entrevistados.

Em suas falas percebemos como a “violência da luta” não é, de forma alguma, percebida como um ato violento-, quando muito, trata-se de agressividade inerente a todo ser humano.

A argumentação é a da existência de inúmeras regras e normas que, caso não respeitadas, penalizam o lutador, impedindo/balizando os chamados impulsos violentos que possam, por ventura, partir deles. Ou seja, o argumento da “gratuidade, violência e barbárie” é combatido em face de existência de uma lei.

“A maioria das pessoas acusa o vale-tudo de ser um esporte violento, mas desde os gregos todo mundo adora ver porrada – foi e sempre será assim. É o institnto animal que todo homem tem. Não é violência é agressividade, luta pela sobrevivência, a parada é biológica – violência e estuprar, roubar, matar –  o MMA é um esporte, tem regras que se não forem respeitadas o combate é interrompido na hora visando preservar a integridade física dos atletas”. (Giovanni)

"Essa imagem que as pessoas têm do lutador porradeiro, marginal e bandido é que estigmatiza a gente! Você veio aqui entrevistar a gente com essa ideia também? Acha a mesma coisa que apareceu outro dia na matéria da Rede TV? Essa imagem tem a ver com aqueles pitboys de classe média, zona sul, na década de noventa que ficavam deslumbrados com as técnicas que aprendiam com o jiu-jitsu e saíam brigando em boite”.(B.1)

Outro argumento bastante utilizado nas respostas dos lutadores e treinadores entrevistados foi a menção à teoria Darwiniana na intenção de dar sentido à prática esportiva desses embates. A noção evolucionista de que somente o mais forte e apto deve sobreviver, parece pautar a lógica desse campo, - a luta reproduziria, assim, o show da vida na sua luta pela sobrevivência: que vença o mais forte!

“Mas acho que na luta é como no reino animal, sobrevive o mais forte, o mais apto. Na verdade com a evolução da espécie humana também foi assim, não mesmo? Prevaleceu o mais resistente, o mais sagaz, o mais forte...."(B.3)

Para Hanna Arendt o argumento que faz da agressividade instintiva, do "componente animal no homem", a causa da violência, baseia-se numa redundância do tipo "o homem comporta-se como um animal porque é um animal". Segundo a autora:

 Para saber que o povo lutará por sua pátria não precisamos descobrir instintos de territorialismo nas formigas, peixes e macacos; para aprender que a superpopulação resulta em irritação e agressividade, não temos que fazer experiências com ratos. Basta passar um dia nos cortiços das grandes cidades (1979:139).

 Sobre o imaginário popular e as representações sociais das artes marciais nas classes populares nos fala Claudio Coelho, - dono da academia de boxe Nobre Arte e responsável por um projeto social (e de vida) que tem como objetivo ensinar essa prática esportiva aos jovens daquela comunidade. Com seu tom de voz quase sempre gritado, denotando aspereza e calejamento, o treinador combate a noção de violência gratuita que é atribuída ao esporte, revelando que a luta pode configurar uma das estratégias de sobrevivência em um território que não dá a todos as mesmas chances de competitividade e, portanto, possibilita aos jovens encontrar no esporte, muitas vezes, uma possibilidade de vencer as adversidades.

“As pessoas acusam a luta de ser um troço violento, achavam que era coisa de marginal. Violento é o mundo, isso aqui é a saída do inferno, que a vida por aqui pode se tornar para muitos desses meninos. Poderia te contar uma infinidade de histórias de meninos que a luta fez renascer. Vou lhe ensinar uma coisa, aqui funciona assim, minha querida: no asfalto, quando algo dá errado em casa, a meninada sai dando porrada na rua, aqui, dá em tiro mesmo, é pá, pum, vacilou dançou, não tem essa de trabalho comunitário não, é cadeia mesmo – é a lei do cão. É por essas e outras que a cada. menino que conseguia tirar do tráfico era uma vitória, um assalto ganho na luta. Vir aqui lutar para esses meninos não significa aprender a sair dando porrada a torto e a direito, significa passar a ter alguém que se preocupa e se interessa pela vida daquele moleque, que muitas vezes é caótica, sem perspectiva. É também e, acima de tudo, passar a ser enxergado, por isso que eu grito e cobro, dentro e fora do treino. É também obriga-los a frequentar a escola antes de treinar, eu tenho esse dever com a formação deles, muitas vezes eles chegam aqui meio gente, meio qualquer coisa e saem homens, esse é o meu maior orgulho!. O garoto passa a ter aqui, uma família estruturada e pai de verdade, que ama, cobra, grita e tem que ser duro, as vezes implacável e muito agressivo. Eu falo a língua deles porque vim do mesmo lugar e sei que mundo aqui em cima é mais duro, dói e cria feridas, para sobreviver tem que ser casca grossa! -  tenha sempre isso na cabeça quando for escrever essa sua pesquisa aí”. (Claudio Coelho)

Conforme pudemos observar, aqui o argumento da lei é novamente trazido à tona. Entretanto, ao invés de remeter às rígidas regras do universo esportivo, em função de demandas e carências inerentes ao meio, parece cristalizar-se na figura do treinador que assume uma função paterna organizadora. Nesse novo código interpretativo, o limite imposto pela disciplina é interpretado como um amor que retira crianças e adolescentes de um universo precário, muitas vezes de desamparo absoluto e no qual a estratégia de sobrevivência são as redes de solidariedade. Não à toa, uma das primeiras inscrições que é possível ler nas paredes da academia do Cantagalo, refere-se ao fato da solidariedade ser um esporte coletivo, - sentimento que posto em prática e vivenciado pelo sujeito, ameniza a dor de outro tipo de violência, bem como de toda sorte de privação, dessa vez não somente concretas, mas sobretudo, simbólicas!

Considerações finais

Ao final da pesquisa realizada não me tornei uma fã das lutas e, certamente, creio que há outras formas de inserção, reconhecimento, visibilidade e ascensão -, poucas é verdade. Ainda vejo a luta como extremamente violenta e lamento que sua espetacularização reflita tanto os tempos em que vivemos.

Mas, se há algo que venho aprendendo nestes anos em pesquisas de campo é que se não tivermos uma escuta atenta e respeitosa perderemos o que há de singular e único em cada um de nossos entrevistados. Isto não significa deixar de ser crítica. A grande maioria de meus entrevistados, mesmo na brutalidade de seus ofícios como lutadores, sempre demonstrou uma imensa delicadeza e atenção para com todos no seu entorno (fora da luta -, é obvio!) e um profundo respeito com as regras estabelecidas. Sejam elas as da luta sejam as de minhas entrevistas.

Não há dúvida que a luta, com tudo o que esta implica (grupo, regras, disciplina, valorização e recompensa) foi um fator redentor e/ou de mudança e/ou salvação para muitos destes homens; assim eles nos falam todo o tempo. Nesse sentido suas falas espelham o imaginário social sobre o “Lutador Ideal”, revelando elementos, aparentemente, consensuais sobre essa figura.

Os esportes de combate, com ou sem armas, evocam uma habilidade baseada na força e na técnica, atributos que seus praticantes acreditam que devem possuir e adquirir para construir socialmente sua masculinidade. Demonstrar tenacidade e determinação seriam os aspectos exigidos dos homens ao buscar a vitória no combate, valores também conhecidos como "garra" ou força de vontade para vencer (Cecchetto, 2004, p. 142).

Igualmente digno de nota é a importância do grupo e da relação coesa entre seus membros, na transmissão dessas representações. Os valores, as normas e a própria percepção do que significa ser um lutador é assimilada e reiterada, cotidianamente, na prática (treinos), através da introjeção e aceitação da hierarquia e a partir da transmissão dos ensinamentos por parte dos lutadores mais experientes em relação aos mais novos, conforme demonstra a fala de todos os entrevistados que afirmam o papel da luta na formação da personalidade, do caráter e da masculinidade.

Mas é a fala de Claudio Coelho(3) que me toca de forma muito singular. Isso aqui é a saída do inferno que a vida por aqui pode se tornar, para muitos desses meninos. Penso que não sem razão me lembrei das palavras de Simone Weil acerca do desenraizamento. Ser é pertencer e para pertencer é preciso acreditar que vale a pena criar raízes. Infelizmente, tal só é possível através da demonstração do interesse, por parte de alguém ou de um grupo, no estabelecimento e manutenção desses vínculos em relação ao sujeito. Nesse sentido, alguém que fale a mesma língua e use o mesmo código, converte-se em um solo fértil para que as raízes possam ser fincadas.

E aí permanece minha indagação: será apenas através da luta que a disciplina, o grupo, a visibilidade social, a ascensão e o pertencimento serão possíveis?


NOTAS:

(1) Trabalho apresentado no V  Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental, realizado em setembro de 2012. Fortaleza.

(2) Devo a Giovanni grande parte de minhas entrevistas e a inserção mais facilitada no mundo da luta.

(3) O boxe constitui uma das modalidades de luta presentes nos treinos de MMA. Para uma descrição mais detalhada do projeto e dos vários depoimentos, ver (Novaes, 2012).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Nascimento, A. R. A., Veloso, F. G. C., Almeida, A. C. C., Miranda, C. C. L. A., Fernandes, J. & Nunes, K. C. (2011). Virilidade e competição: masculinidades em perfis de lutadores das Revistas Tatame e Gracie. Memorandum, 21, 195-207.
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Novaes, J.V.(2010) Com que corpo eu vou? Sociabilidade e usos do corpo nas mulheres das camadas altas e populares. Eds.  PUC/ Pallas.
NOVAES, J.V. (2011) Beleza e feiúra.sociabilidade e usos do corpo em mulheres das camadas altas e populares da zona sul carioca. In: Del Priore (org.) A história do Corpo no brasil. Ed. Unesp. Pp 477-506
Novaes, J.V.(2012) Corpo arma, corpo ferramenta ou corpo capital? Escutando lutadores de MMA. In: Vilhena & Novaes (orgs) Corpo para que te quero? Usos abusos e desusos.Rio de Janeiro. Eds. Appris/PUC.
RODRIGUES, J.C. (1986) O corpo liberado. In: Strozemberg, I. (org.) De Corpo e Alma. Rio de Janeiro, Ed. Contemporânea, p. 90-100
Vilhena, J (2002). A Arquitetura da violência. Reflexões acerca da violência e do poder na cultura. In: Cadernos de Psicanálise. Rio de Janeiro, SPCRJ. Vol.18. N.21. pp 181-200
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White, P. G., Young, K & Mcteer, W. G. (1995). Sport, masculinity, and the injured body. Em D. Sabo & D. F. Gordon (Orgs.). Men’s health and illness: gender, power, and the body (pp. 158-204). London: Sage.

Recebido: 15/06/2012

Aceito: 01/07/2012

 

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