Contribuição do Leitor

O MUNDO COMO REGIÃO ONTOLÓGICA DO HOMEM NA FENOMENOLOGIA HEIDEGGERIANA

BERNARD TEIXEIRA é Graduando em Geografia (Licenciatura Plena) pela Faculdade de Formação de Professores na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente é bolsista da UERJ na modalidade Iniciação à Docência, vinculado ao projeto de pesquisa "As Transformações no Mapa do Oriente Médio" e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Território da UERJ. Dedica-se aos estudos de Geografia Humanista e de Geografia Política, com ênfase nos seguintes eixos temáticos: fenomenologia, ontologia, epistemologia e relações interestatais de poder na América Latina


Resumo: Temos como intento desenvolver uma reflexão respaldada no fluxo contínuo de questões que desejam buscar o entendimento do homem-no-mundo. Pretendemos pensar o homem como elemento fundamental para a existência do espaço geográfico, resgatando a fenomenologia heideggeriana e tornando-a, deste modo, ponto de partida para perscrutarmos os poros abertos pelo impasse aristotélico-kantiano, conforme denominou Armando Corrêa da Silva.
Palavras-chave: mundo, fenomenologia, ser-no-mundo

THE WORLD LIKE MAN'S ONTOLOGICAL SPACE IN HEIDEGGER'S PHENOMENOLOGY

Abstract: We attempt to develop a reflection on supported streaming issues who wish to seek the understanding of man-in-world. We intend to consider man as an essential element for the existence of geographical space, rescuing Heidegger´s phenomenology, and making it thus a starting point for investigate pores opened by the Aristotelian-Kantian hindrance, as called Armando Corrêa da Silva.
Keywords: world, phenomenology, being in the world

INTRODUÇÃO

 A Geografia vem intensificando um debate que pretende fazer do chamado impasse aristotélico-kantiano uma cicatriz profunda já sanada pela superação das dicotomias inauguradas ainda na modernidade. Tomaremos como ponto de partida a questão que Ruy Moreira desenvolve no início de O mal-estar espacial no fim do século XX, a saber: “sendo uma forma de olhar o homem no mundo pela via do espaço, como olhar o mundo como mundo-do-homem se o espaço é dele um dado organicamente apartado?” (2010, p. 133).

 O nosso objetivo é buscar o sentido ontológico-existencial de mundo, na obra Ser e Tempo de Martin Heidegger, partindo do pressuposto de que se trata de um projeto ontológico capaz de devolver à Filosofia o seu principal estatuto, o de preocupar-se com o estudo da ontologia e não com a epistemologia, como vinha sendo apreendido pela Filosofia, outrora considerada como a “ciência das ciências”. E por qual razão é importante resgatar Heidegger em nossos estudos geográficos? Ora, sabemos que a Geografia, na passagem do século XVIII para o XIX, iniciou o seu processo de estruturação científica. E, nesse contexto, ela foi galgando os mesmos caminhos da metafísica ocidental, isto é, negligenciou o esforço promovido pelos pensadores anteriores a Sócrates, os ditos “pré-socráticos”, de entender o homem como ser-no-mundo, um ser-aí que não está apartado de seu próprio ser e do seu próprio espaço.

As formulações iniciais da Geografia foram bastante influenciadas por uma ideia de espaço matematicamente mensurável, numa concepção de geometrização de mundo por onde Newton encontrou base para o desenvolvimento de seu pensamento dicotômico ao distinguir dois espaços (absoluto e relativo) e dois entes corpóreos também distintos – o com vida, o homem; e o sem vida, os físicos.

 Na concepção newtoniana, o espaço está apartado do homem e de sua consciência. Assim como o tempo, o espaço é, em primeiro lugar, um elemento estritamente objetivo. Então enquanto uma categoria absoluta, o espaço não se relaciona com os movimentos mecânicos e com as suas relações. Existe uma independência desses movimentos que os tornam desvinculados do espaço e também do tempo. Deste modo, o espaço torna-se uma arena homogênea e isotrópica, isto é, um esteio ilimitado que abriga em seu interior, as propriedades geométricas que fazem parte de sua constituição, numa distribuição homogênea por todos os pontos. Newton sofre bastante influência da Geometria Euclidiana para formatar as suas concepções sobre a mecânica, o que mais tarde acabou influenciando toda a física clássica que, por sua vez, influenciou determinadas matrizes do pensamento geográfico da época moderna.

Milton Santos, em Novos Rumos para a Geografia Brasileira, afirmou que “em cada grande oportunidade, duas grandes tendências se opõem” (1988, p. 210). Isso quer dizer que em cada crise novas teorias são criadas para superar a insuficiência da anterior, tornada obsoleta com as mudanças paradigmáticas. A Geografia ao se constituir como uma ciência, no século XIX, apresentou dois projetos: uma geografia enquanto ciência do homem e outra enquanto ciência dos lugares.  Neste sentido, a Geografia, agora institucionalizada, tornou-se a ciência dos lugares, num exercício epistêmico de pensar o mundo como localização e não como pré-condição de existência do homem, sob o esteio metodológico advindo dos estudos corográficos (estudos das partes da superfície terrestre) e corológicos (os estudos entendidos como um projeto metodológico, que ganharam fôlego com os geógrafos Alfred Hettner e Richard Hartshorne).

  A história do pensamento geográfico confunde-se com as intenções de alguns geógrafos clássicos ligados aos anseios de se encontrar e formatar o objeto de estudo da Geografia, sistematizada numa estrutura científica. Foi um processo de grande efervescência nas pesquisas sobre a superfície terrestre, as paisagens, as regiões e o espaço geográfico em diferentes abordagens, sob diferentes olhares. Alguns estudos foram fundamentais para a criação de métodos pautados numa epistemologia genuinamente geográfica.

Foi possível verificar somente no século XX um movimento promovido por alguns geógrafos objetivando romper com a clivagem na relação do homem-no-mundo com o seu lugar. Um processo que pretendeu (des)alienar o homem de si mesmo, na medida em que tornariao espaço uma pré-condição de sua existência (MOREIRA, 2010). E este movimento, por uma nova apreensão do espaço, tornou-se possível a partir do diálogo de uma das correntes geográficas com a fenomenologia heideggeriana, portanto, com a própria Filosofia. Fala-se, aqui, da Geografia Humanista.

Criou-se uma corrente em busca da consolidação de um debate profundo e importante da Geografia com a Filosofia. A partir disso, a Geografia passou a conhecer o pensamento de Martin Heidegger para refletir não mais sobre um espaço metrificado, mas sobre o espaço-morada do homem (CORREA, 1988). Eis o objetivo deste artigo: entender o mundo como o mundo do homem, na concepção fenomenológica de Martin Heidegger.

SER-NO-MUNDO: O HOMEM E O MUNDO COMO UNIDADE  

A filosofia é uma ontologia fenomenológica e universal que parte da hermenêutica da presença, a qual, enquanto analítica da existência, amarra o fio de todo questionamento filosófico no lugar de onde ele brota e para onde retorna (HEIDEGGER, 2009, p. 78).  

   Na formulação de sua ontologia fundamental, Martin Heidegger pensa o espaço como um fenômeno dinâmico e, deste modo, como contraponto à concepção tradicional que o pensava como um conceito que, em sua totalidade, concede abrigo ao mundo. Nesta concepção, o mundo “é tido como matéria e como algo que pode ser dimensionado matematicamente; nesse caso, mundo é espaço, sendo este concebido como pura extensão” (CANÁRIO, 2005, p. 14).

 Heidegger argumenta que o espaço não abriga o mundo, pois este não está contido no espaço. O espaço está, num primeiro momento, distante do homem. E este, em seu estado de interpelação, atenta para o sentido do ser, fazendo-o compreender e perceber a sua pres-ença. Este exercício ontológico torna o homem um ente de possibilidades que, indubitavelmente, se estabelece como um ser-no-mundo.

 Ser-no-mundo não é um termo que se calca na explicação do homem posto no mundo. Pelo contrário, o homem inaugura a sua existência no mundo a partir de um questionamento sobre o seu ser. Se o ser do ente é o perguntado, o próprio ente é o interrogado. Torna-se este um ente exemplar, Dasein, aquele que junto com o seu ser e o sentido do ser constituem a estrutura da questão do ser. É nesse sentido que o filósofo alemão vai afirmar que o ser-no-mundo é a estrutura em totalidade do homem, posto em existência através do espaço, do mundo e do próprio ente, em sua preocupação em “cuidar das coisas” e em “cuidar dos outros”.

 Diferentemente do postulado cartesiano, que entendia o espaço como substrato físico, mensurável e capaz de apreender todos os fenômenos do mundo, a analítica heideggeriana vai discorrer sobre a estrutura do ser-no-mundo e destacar que o ser-aí (Dasein) é o único ente apto para despertar a espacialidade do mundo, num manejo angariado pela pres-ença. O Dasein é, nesse sentido, “um ente que funda todos os seus comportamentos em relação aos entes em geral em um comportamento originário em relação ao mundo” (CASANOVA, 2009, p. 92).

A pres-ença é essencialmente espacial e tende a destruir o pensamento dualista de sujeito/objeto ou, ainda, homem/mundo difundido pela tradição filosófica. É o nome dado por Heidegger ao ente ser-no-mundo, que se dá num constitutivo, num processo essencial, e não por uma simples relação entre partes. Existe uma pré-condição para que o ente se torne mundano, e é a partir de sua busca pelo sentido do ser que a pres-ença coloca o homem em existência no mundo.

O poder-ser, como condição do homem no mundo, não se projeta por uma consciência, por uma subjetividade, do modo como estabelecia a analítica existencial de Kant dentro da esfera do pensamento lógico. Este filósofo, aliás, participou de um movimento (junto com outros filósofos, como Berkeley e Leibniz) contrário a Newton, no que diz respeito aos confrontos entre o objetivismo e o subjetivismo. De modo geral, a essência dessas discordâncias está no fato de Kant reconhecer o espaço como um conhecimento sensitivo e a priori. Temos em Kant um espaço concebido, antes de tudo, por uma concepção subjetiva que torna espacial as representações externas. Tudo isso atrelado aos fenômenos, capazes de pôr em curso o espaço e também o tempo, dentro da subjetividade (OLIVEIRA, 1988). Kant, aliás, foi o grande arcabouço (juntamente com Ritter) das formulações de Alfred Hettner em seus estudos corológicos, especialmente, os desenvolvidos em 1927, na obra intitulada A Geografia, sua História, Essência e Método.

Poder-seré uma possibilidade que surge num campo repleto de outras possibilidades, e não num esforço de se fazer pensar que o homem é posto no mundo por algum manejo específico estimulado por forças de natureza espacial, fazendo crer que o homem já tenha atingido a sua existência no mundo e que, desde já, tenha consciência disso. Se o ser-no-mundo é a unidade do homem, ser e ente não podem ser pensados separadamente, caminhando para o profundo esquecimento do ser. Este comportamento é, conforme as argumentações de Heidegger, o desejo de se estabelecer um impasse ontológico na Filosofia, na medida em que se projeta o ser num rumo indesejado ao esquecimento.

A Filosofia Ocidental deixou o debate sobre o ser de lado e passou a refletir sobre o ente, a partir das primeiras formulações de Platão. Não só abandonou o ser, como também repudiou todo o pensamento ontológico dos chamados “pré-socráticos”, que pensavam o homem e o seu ser como coisas indissociáveis. De Platão à Nietzsche, o esquecimento do ser seguiu-se até o pensamento hegeliano, que tratou de considerar o ser como lógica, deturpando o seu sentido e reduzindo-o. Para superar a crise da Filosofia, Heidegger apresenta como proposta a análise do ente privilegiado, isto é, o ser-aí (Dasein). O ser-aí já é no mundo por uma razão: ele consegue visualizar o seu cotidiano através de questionamentos sobre o seu próprio ser. Portanto, ele existe por exigir de si uma explicação para as coisas.

 O ser-aí, portanto, existe a partir de sua pre-sença. Ele é, existe e habita. O homem, neste processo, se torna mundano. Isto é, o homem passa a vivenciar o seu espaço e a entender que existe um sentido, um caminho por onde a existência se projeta. O homem passa a ser capaz de mensurar o mundo, daí Heidegger afirmar ser o ser-aí um ente privilegiado. Existe, no entanto, outro elemento importante na analítica fenomenológica que serve de suporte para o estudo da vivência deste homem no mundo. O homem não vive apenas na apreensão do mundo a partir dos sentidos, da contemplação do lugar onde vive. Ele precisa constantemente travar relações com outros entes em seu cotidiano, configurando-se como um ser-com-outro.

Existe, no entanto, outro elemento importante na analítica fenomenológica que serve de suporte para o estudo da vivência deste homem no mundo. O homem não vive apenas na apreensão do mundo a partir dos sentidos, da contemplação do lugar onde vive. Ele precisa constantemente travar relações com outros entes em seu cotidiano, configurando-se como um ser-com-outro.

 O pensamento heideggeriano julga ser fundamental a compreensão das relações que se dão na existência do ser-aí no mundo. O homem, dessa forma, se ocupa no mundo ao relacionar-se com outros entes, de acordo com o seu modo de ser. Estes entes podem ocupar o ser-no-mundo de duas formas: como utensílios ou, nos termos de Heidegger, instrumentos (que têm determinado valor e serventia) ou, dito de outro modo, como entes intramundanos; e como outros Daseins. É o ser-com (mitsein) que procura os intramundanos que não têm o seu mesmo modo de ser, portanto, é a busca do homem em conviver com as possibilidades de outras pre-senças; e estar-aí-com (mitdasein), assumindo, finalmente, a sua preocupação com o outro.

Heidegger deixa claro que o homem no mundo inaugura uma rede de relações que se travam ao longo de uma região ontológica, amparada por suas possibilidades mundanas. Existe uma pré-ocupação do homem no mundo, pois este está habitando um lugar de acordo com os modos de seu ser, de sua ocupação. A existência é uma condição do ser-no-mundo, daí haver uma preocupação do mesmo com as suas ligações dentro do mundo.

O ser-aí é constituído tanto pelas preocupações que condicionam o uso que faz dos objetos como utensílios, como pela solicitude que sente pelas pessoas que compartilham a existência com ele. A existência humana é ‘ser-com’, tanto com as pessoas como com as coisas. O outro é essencialmente o homem companheiro essencial e não apenas acidental. O ser-com pertence a própria natureza do ser-aí e é constitutivo da essência da existência (GILES, 1975, p. 228).

 O homem então habita o mundo pela simples apreensão do real? Há na realidade um discurso de que tudo o que é, existe, sustentado pelo objetivismo cartesiano. A fenomenologia heideggeriana acentua que o real é aquilo que espacializa, que já está dado. O homem não existe pelo fato de ser real, por estar presente no mundo. O ser-aí é um ser formador de mundo, ele deixa acontecer o mundo pela razão de ser um ente de possibilidades. Portanto, o homem transcende a sua condição de presença e habita o mundo em sua pre-sença, isto é, ele transcende e entende o mundo como o seu horizonte existencial.

As múltiplas maneiras do homem de se tornar mundano traz ao debate o que Heidegger convencionou chamar de modos de ocupação. Eles dão ao homem condições espaciais de ser do e no mundo, pois fornecem boas maneiras de se relacionar com outros entes. Isso acontece a partir de sua ocupação, quando passa a estar junto, num movimento de reconhecimento de outros homens e entes. Deste modo, existe uma busca do ser-aí (que vê, na prática da ocupação, uma necessidade de estabelecer um diálogo com outros entes) em despertar formas de reconhecer o mundo ou, como quer Heidegger, a mundanidade do mundo. O que é, afinal, a mundanidade do mundo? É, grosso modo, a referencialidade ontológica do homem, o seu ponto de referência no mundo e o seu ponto de encontro com os outros intramundanos. Conforme Kahlmeyer-Mertens (2008):

O que Heidegger chama aqui de modos de ocupação, refere-se à maneira com que os seres-no-mundo já sempre se inserem em seu contexto mundano. Esse, em seu exercício de existir, se encontra desde uma ocupação. Os modos de ocupação são, pois, maneiras de ser, desde as quais o ser-no-mundo cumpre a tarefa de existir em relação com entes no mundo (p. 175).

Esta ação ontológica do ser-no-mundo se dá numa totalidade: no mundo circundante. Também concebido como circumundanidade, o mundo circundante abarca toda a esfera cotidiana da pres-ença, levando o ser-no-mundo ao encontro dos instrumentos revelados e às suas capacidades específicas, mediante a chamada manualidade. Em suma, o ser-no-mundo vai ao encontro do ser do ente na ocupação através de sua circunvisão (o modo como o homem identifica o todo instrumental).

Neste momento, é importante reforçar uma ideia de Heidegger que foi levantada logo no início do texto. O espaço não é um arcabouço que projeta o mundo em seu interior. Na verdade, conforme ressalta o filósofo (2009), “o espaço nem está no sujeito nem o mundo está no espaço. Ao contrário, o espaço está no mundo à medida que o ser-no-mundo constitutivo da presença já sempre descobriu um espaço” (p. 166). Então, o homem possui uma condição espacial originária que lhe garante uma compreensão de mundo. Em pre-sença, o homem, em seu mundo circundante (visto aqui como região), encontra o espaço. O espaço, portanto, “não é compreensível a não ser a partir da mundaneidade porque o espaço é no mundo e não o mundo no espaço” (FRANCK, 1986, p. 51).

Este mundo circundante do homem o permite ir ao encontro dos entes intramundanos, pois conserva em sua existência a capacidade de mover-se dentro de uma totalidade instrumental. Isso quer dizer que o homem, através de sua circunvisão, consegue conhecer a sua localização, o seu lugar. Esta localização é a orientação do homem dentro de uma possibilidade fornecida por sua região, que também constitui o seu lugar pela direção e pela distância – também pela proximidade que, segundo Heidegger, “é apenas um modo de distância” (2009, p. 156). Nas palavras do filósofo, “esta orientação regional da multiplicidade de lugares do que está à mão constitui o circundante, isto é, o estar em torno de nós dos entes que de imediato vêm ao encontro no mundo circundante” (HEIDEGGER, 2009, p. 156).

O conhecimento de mundo do homem (sua referencialidade) confunde-se com o seu próprio conhecimento. A região que o cerca o possibilita viver numa orientação que suporta todo o esteio geográfico de seu lugar. O seu destino de ocupação é, então, esta mesma região aqui colocada. Daí Heidegger destacar o caráter da familiaridade, como “um ponto de referência para o Dasein, ao passo em que o mundo é ‘ao nosso redor’ (Umwelt)” (LEAL, 2010, p. 94).

É interessante perceber como o lugar para o homem se torna um constitutivo, um vínculo que, em essência, torna este mesmo lugar uma configuração de si mesmo. O lugar não está dado no espaço e nem vazio a espera da espacialização do homem. Pelo contrário, o homem se espacializa em meio à sua própria existência.

 Destacamos a referencialidade do homem no mundo por uma razão: este ponto de referência do homem no mundo (ou de localização) enfraquece o discurso cartesiano de materialidade, isto é, as orientações do mundo para o homem não se constituem por coordenadas frias e neutras, conforme apontou Michael Inwood (2004). O que o homem passa a vivenciar, num grau de compreensão das coisas que o circunda num determinado espaço, é o que Heidegger preserva como elemento fundamental em sua fenomenologia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 Propusemos, aqui, desenvolver uma discussão que ainda é cara à Geografia: trata-se do estudo da ontologia do espaço amparado pela fenomenologia de Martin Heidegger. Os pressupostos teórico-metodológicos da ciência geográfica ainda não reconhecem suficientemente o alto teor metodológico que a fenomenologia heideggeriana oferece.

 Os conceitos heideggerianos tornaram-se conhecidos pelos geógrafos, longos anos após suas formulações, somente na segunda metade do século XX. A literatura francesa recolheu-se e tomou como respaldo outros métodos que não o proposto por Martin  Heidegger. Eric Dardel, no entanto, excluiu-se deste movimento contrário que a Geografia Francesa se encontrava e partiu para uma investigação do espaço que, naquele momento, era inédita e ainda negligenciada. 

Dardel, em 1952, escreveu seu famoso livro L’Homme et la Terre - nature de la réalité géographique e desafiou, de certo modo, a(s) geografia(s) que eram legitimadas naquela década e em anos anteriores. A sua preocupação em clarificar a geograficidade do homem-no-mundo o fez construir uma geografia profundamente inovadora, por duas razões: primeiro, por sua proposta ser uma novidade no meio geográfico, discorrendo-a em tom crítico e, ao mesmo tempo, claro e bastante refinado; segundo, por arriscar um diálogo importante com a Filosofia, quando conhece e compreende o trabalho que  Heidegger elabora na primeira metade do século XX.

 O reconhecimento do trabalho de Eric Dardel só veio na década 1970, conforme nos lembra Paul Claval (2003). Felizmente, essa busca dos geógrafos em entender o espaço do homem a partir da fenomenologia ganha, na geografia brasileira, impulso e fôlego. Ainda que recente, alguns geógrafos brasileiros vêm trabalhando com esta temática a ponto de elevá-la ao título de método capaz de explicar o mundo do homem.

Entretanto, não podemos descartar a ideia de que ainda há a emergência pela formatação metodológica desta corrente na Geografia. É nesse sentido que procuramos, a partir desta breve explanação, contribuir com este debate tão rico para o pensamento geográfico.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CANÁRIO, L. P. O Lugar do Espaço em Ser e Tempo, 115 p. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, 2005.

CASANOVA, M. A. Compreender Heidegger. 3ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2009, 244 p.

CORREA, R. L. O espaço geográfico: algumas considerações. In: SANTOS, Milton. Novos rumos da Geografia Brasileira. São Paulo: Hucitec, 1988, p. 25-65.

FRANCK, D. Heidegger e o problema do espaço. 1ª ed. Lisboa: Instituto Piaget, 1986. 163 p.

GILES, T. R. História do existencialismo e da fenomenologia. 1ª ed. São Paulo: EPU, 1989, 315 p.

HEIDEGGER, M. Conferências e Escritos Filosóficos. 1ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979, 302 p. 

______________. Ser e Tempo. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 2009, 598 p.

INWOOD, M. Heidegger. 1ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004. (Coleção Mestres do Pensar). 176 p.

KAHLMEYER-MERTENS, R. S. Como Heidegger interpreta o começo da metafísica em Ser e Tempo?. Ítaca (UFRJ), v. 9, 2008, p. 174-181.

LEAL, F. M. Coordenadas geográficas: ser-no-mundo, 140 p. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2010.

MOREIRA, R. O mal-estar espacial no fim do século XX. In: MOREIRA, R. Pensar e Ser em Geografia. São Paulo: Contexto, 2010, p. 133-141.

OLIVEIRA, A. U. Espaço e Tempo: Compreensão materialista dialética. In: SANTOS, Milton Almeida dos. Novos rumos da Geografia Brasileira. São Paulo: Hucitec, 1988, p. 66-110. 

SANTOS, M. Novos rumos para a geografia brasileira. In: SANTOS, Milton. Novos rumos para a Geografia Brasileira. São Paulo: Hucitec, 1988, p. 209-219.

 

Recebido: 09/04/2012
Aceito: 15/06/2012

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