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A MEDICALIZAÇÃO E A REDUÇÃO BIOLÓGICA NO DISCURSO PSIQUIÁTRICO

DEBORAH UHR é Psicóloga e psicanalista, mestre em Saúde Coletiva (IMS/UERJ), doutoranda em Psicologia Clínica (Puc-Rio), supervisora clínico-institucional da rede de saúde mental da Prefeitura do Rio de Janeiro, professora do Instituto Brasileiro de Medicina e Reabilitação. E-mail: deborahuhr@terra.com.br


Resumo: Este artigo apresenta as idéias de quatro autores contemporâneos sobre a medicalização e a sociedade contemporânea: Conrad (1992), Rose (2003), Ehrenberg (2004) e Rosenberg (2006). Os autores realizam uma análise crítica da abordagem biomédica do processo saúde e doença. No campo da saúde mental, essa abordagem tem buscado a unificação da psiquiatria com a neurologia e a redução dos transtornos mentais a fenômenos cerebrais. As noções de sujeito cerebral e individualidade somática emergem como categorias centrais para compreensão dos efeitos subjetivos e sociais do fisicalismo reducionista.
Palavras-chave: medicalização, reducionismo biológico, psiquiatria, saúde mental, depressão.

MEDICALIZATION AND BIOLOGICAL REDUCTION IN PSYCHIATRIC DISCOURSE

Abstract: This article presents the ideas of four contemporary authors on medicalization in contemporary society: Conrad (1992), Rose (2003), Ehrenberg (2004) e Rosenberg (2006). It showcases the authors' critical analysis of the biomedical approach to health and illness. In the mental health field, this approach has sought to unify neurology and psychiatry, and to reduce mental phenomena to brain mechanisms. In their analysis, notions of somatic individuality and cerebral subject emerge as central to the understanding of the social and subjective effects of reductionist physicalism.
Keywords: medicalization, biological reductionism, psychiatry, mental health, depression.

INTRODUÇÃO

Nos anos 1970, Illich argumentou que a ‘colonização médica’ era uma ameaça à capacidade das diferentes culturas de dar respostas técnicas, sociais e simbólicas à dor, à doença e à morte. A postulação hegemônica de que ‘o bem-estar exige a eliminação da dor, a correção de todas as anomalias, o desaparecimento das doenças e a luta contra a morte’ (Illich, 1975: 123) forçaria os indivíduos a buscar incessantemente a instituição médica e a prestação profissional de serviços, num movimento que reduziria sua capacidade de fazer frente ao meio e transformá-lo.

O autor alertava que a sociedade atual retiraria o significado íntimo e pessoal do sofrimento, tratando a dor como um problema técnico. Essa redução situa a dor como um fato clínico objetivo e leva os indivíduos a procurarem tratamentos indutores de anestesia, abulia, apatia, inconsciência. Seus efeitos seriam a redução do limiar suportável da dor, o abafamento das interrogações que ela contém e a atrofia da capacidade para enfrentá-la.

A medicalização é um fator central na dificuldade dos indivíduos para lidar com o sofrimento. Mas que outros fatores podem concorrer para isso? Eles se localizam exclusivamente no campo científico ou podem ser encontrados também no modo de organização social? E os indivíduos, em que medida suas escolhas se coadunam à oferta medicalizante? Será que a resposta à dor é necessariamente a anestesia? Quais as estratégias individuais e coletivas para fazer frente ao imperativo de saúde e felicidade? O recurso a um especialista deve significar a supressão imediata do mal-estar?

Medicalização e processos sociais

Respondendo a algumas destas interrogações, Conrad (1992) considera que a medicalização não constitui um empreendimento exclusivamente médico, mas um processo sócio-cultural, que pode ser resultado da expansão intencional da profissão médica ou não envolvê-la. Chama a atenção para a dimensão interativa da medicalização pela interferência de atores diversos como organizações leigas, associações de pacientes, indústria farmacêutica. Os dois primeiros grupos podem atuar decididamente no sentido do reconhecimento de seu problema como uma patologia, em geral com o fito de obter cobertura previdenciária e assistencial. Já o lobby da indústria farmacêutica visa ampliar o espectro de patologias e usuários para aumentar as vendas.

Conrad compreende a medicalização como um “processo pelo qual problemas não-médicos são definidos e tratados como médicos, usualmente em termos de doenças e transtornos” (Conrad, 1992: 209). Isso ocorre tanto em relação a comportamentos ou eventos considerados desviantes, a exemplo da loucura, alcoolismo, homossexualidade, infertilidade, quanto em processos ‘naturais’ como nascimento, desenvolvimento infantil, menopausa, morte.

Segundo Conrad a medicalização se processa em três níveis:

  1. conceitual: utilização de vocabulário ou modelo médico para regular ou definir problemas. Poucos médicos estão envolvidos nesse processo, que nem sempre exige o uso de terapêutica;
  2. institucional: adoção de enfoque médico para lidar com um problema no qual a organização se especializa. A rotina cotidiana de trabalho adota os critérios médicos, mas não é desempenhada por esses profissionais;
  3. interacional: medicalização é efeito direto da interação médico-paciente, tanto no diagnóstico de uma queixa ou sintoma como uma doença / transtorno quanto na lida com uma questão social com uma forma médica de tratamento.

Para Conrad, a chave do controle social da medicina estaria no nível conceitual, pois é dali que advém a autoridade para definir comportamentos, pessoas ou coisas como fatos médicos. A ampliação do status e monopólio da medicina também contribui para que a profissão legisle sobre virtualmente qualquer coisa que possa ser classificada como saúde ou doença.

Nesse esteio algumas categorias são objetos de especial medicalização e expansão, incorporando questões que excedem a alçada médica. Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, depressão, alcoolismo são alguns dos exemplos que denunciam a descontextualização de problemas sociais e sua localização na figura do doente – num movimento de tecnificação médica e de gestão dos riscos, como afirmou Castel (1987).

A reflexão de Rosenberg (2006) contesta as análises que conferem ao processo de medicalização um caráter monolítico e linear. Para ele, essa posição obscurece a natureza complexa, contingente e passível de disputa. A outorga de dimensões da dor e da incapacidade humana para o domínio médico reflete os esforços de construção de legitimidade e competência da profissão e, ao mesmo tempo, uma demanda da sociedade de manejo técnico de dilemas sociais e emocionais. Nesse processo, contudo, nem sempre há confluência de interesses e a negociação é recorrente, fazendo variar as fronteiras da doença e do diagnóstico.

Para o autor, o fato mais relevante em termos de medicalização diz respeito à tendência a explicar sentimentos, comportamentos, males físicos em termos reducionistas, somáticos e de especificidade da doença. O privilegiamento da dimensão biológica ignora os demais determinantes do processo saúde-doença e a marca histórico-cultural dos significados sobre adoecimento e normalidade.

A medicalização está em consonância com o avanço da biomedicina como racionalidade hegemônica na sociedade contemporânea. Em 1990, Le Breton já chamara atenção para esse fato ao afirmar que a biomedicina procura autonomizar corpo e indivíduo, colocando o homem em posição de exterioridade diante de seu próprio corpo, doravante objeto médico. 

Sujeito cerebral, individualidade somática, depressão

A objetivação dos indivíduos mostra-se especialmente inquietante diante do mal-estar cuja expressão é emocional. A adoção do modelo somático é acompanhada da atribuição da causalidade orgânica à doença e da desqualificação dos impasses afetivos e sociais. Embora a doença seja individualizada no corpo e, mais especificamente, no cérebro daquele que apresenta o sintoma, ela não é singularizada. Pelo contrário, assume um caráter genérico, sendo categorizada como entidade externa às manifestações subjetivas particulares.

A medicalização tem oferecido à psiquiatra novos argumentos para a administração profissional do desvio, da idiossincrasia, do sofrimento. Nessa empreitada, as mudanças do humor e a tristeza mostram-se significativamente suscetíveis de serem tomadas como depressão pela psiquiatria. Esse projeto ignora a inexistência de medidas claras que estabeleçam as diferenças entre as variações normais da condição humana e a depressão como adoecimento. A depressão constituiria uma variação quantitativa ou qualitativa em relação à tristeza? Ela seria um ente, na perspectiva ontológica da doença? O hipotético substrato bioquímico da depressão seria causa, efeito ou contingência? O nexo bioquímico colocaria em segundo plano as respostas do sujeito às mudanças e dificuldades impostas pela vida? A tendência à determinação cerebral da depressão não obscureceria os recursos e as sutilezas do psiquismo?

Estas interrogações reportam-se à tensão fundante do campo psiquiátrico, referida ao dualismo corpo e mente e à determinação dos transtornos mentais. A psiquiatria é fruto das transformações da ciência que culminaram no nascimento da medicina moderna, que toma o homem e sua fisiologia como locus de investigação e intervenção. Ela também é oriunda de um movimento de transformação da cultura e da sociedade que permitiu a criação do ‘indivíduo psicológico’, portador de uma intimidade produzida pela investigação de si. Foi na interseção desses dois modos de apreensão do indivíduo – corpo e mente – que a psiquiatria se desenvolveu e buscou a produção de verdades (Birman, 1978). 

A coexistência entre uma orientação somática e outra psicológica produziu oscilações na explicação acerca da doença mental desde sua fundação até a atualidade, tendo sido responsável pela impossibilidade de integração absoluta da psiquiatria ao modelo biomédico e, portanto, de adoção de um modelo exclusivamente fisicalista ou somático. Essa dualidade tem sido veementemente atacada desde as últimas décadas do século XX pelo projeto de redução do mental ao cerebral pela psiquiatria, redefinindo etiologia e tratamento dos transtornos mentais.

Andreasen (1997), por exemplo, afirma que a doença mental é um transtorno da mente originado no cérebro. Essa definição constitui o cerne da psiquiatria biológica, desenvolvida para fazer frente, nomeadamente, à influência da psicanálise e adequar-se ao modelo médico. A sustentação dessa acepção tem sido buscada nos estudos da neurociência cognitiva, que pretende explicar as disfunções psiquiátricas exclusivamente a partir do conhecimento do funcionamento cerebral normal.

A análise crítica do modelo do sujeito cerebral constitui o núcleo da reflexão de Ehrenberg (2004), que localiza nas neurociências o principal motor do projeto de construção da ‘biologia do indivíduo’, onde o conhecimento do homem deve corresponder ao conhecimento da estrutura e função cerebrais. Nessa perspectiva, a dimensão social, simbólica do homem é suprimida e o cérebro torna-se a sede da personalidade, fonte e razão dos afetos e comportamentos. A experiência subjetiva e os fenômenos psicopatológicos, portanto, são concebidos como questões de ordem física, material.

A consequência clínica dessa proposição é a unificação entre psiquiatria e neurologia e o tratamento dos transtornos mentais como se fossem fenômenos neurológicos. O sujeito da linguagem da psicopatologia (e da psicanálise) cede lugar ao sujeito cerebral da neurologia; o entendimento do sintoma como algo singular, imanente ao indivíduo, é substituído pela noção de que o sintoma o transcende, sendo uma doença do sistema nervoso, autonomizado do restante do corpo e das escolhas e responsabilidades individuais. A essa subjetividade mínima, privada de conflitos, divisões, dilemas, corresponderiam intervenções prioritariamente farmacológicas que devem incidir sobre a fisiologia cerebral.

O fisicalismo reducionista, portanto, pretenderia colocar o indivíduo em posição de exterioridade em relação aos seus processos mentais, bem como desconsiderar a incidência da cultura, da linguagem sobre a constituição psíquica. Além disso, ao desvalorizar o papel que sociedade desempenha na indução, manutenção ou solução do mal-estar, outorga à biomedicina o manejo de seus dilemas.

Segundo Ehrenberg (2004), o sucesso das neurociências não deve ser localizado prioritariamente nos seus resultados práticos, mas na possibilidade de ‘consolar’ aqueles que não conseguem responder às exigências de autonomia e iniciativa da sociedade contemporânea e na promessa de aprimorar as capacidades cognitivas em direção a um nível ótimo de desempenho. A medicalização psiquiátrica aparece, ao mesmo tempo, como efeito e ‘engrenagem’ do modo de organização social contemporânea.

Rose (2003) nomeia sociedades psicofarmacológicas as sociedades desenvolvidas, onde as individualidades são rotineiramente remodeladas pelo uso de drogas psiquiátricas e pela recodificação de condutas e afetos em termos neuroquímicos. Nelas o autor localiza, mais do que o recurso ao medicamento para lidar com problemas psiquiátricos, a mudança no modo como os indivíduos se percebem. Essa mudança está vinculada ao deslocamento da individualidade psicológica para a somática.

Na individualidade somática o corpo assume lugar central: sede dos sentimentos e ações e, portanto, local de intervenção médica quando algo ‘não funciona bem’. O crescimento exponencial de pessoas diagnosticadas como ansiosas, deprimidas, hiperativas e da prescrição de psicofármacos parece confirmar essa tese, reforçando a crença de que o cérebro seria a sede da desordem e o alvo do tratamento.

Ainda assim, cabe questionar se a individualidade psicológica está mesmo fadada ao desaparecimento ou se sua sustentação não constitui ao menos uma alternativa ao monismo fisicalista. A verdade do sujeito não é igual à verdade da ciência e a explicação generalizante não contempla a particularidade subjetiva.

Importante destacar que os autores trabalhados no artigo analisam a relação entre medicalização, reducionismo biológico e psiquiatria utilizando diferentes categorias de análise (indivíduo, ator social, sujeito cerebral, individualidade somática) a despeito de convergirem para uma mesma questão: a captura do ‘desvio’ como objeto de administração médica. A fim de preservar a argumentação, mantive as categorias usadas originalmente pelos autores.

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDREASEN, N. C. Linking Mind and Brain in the Study of Mental Illness: a project for a scientific psychopatology. In Science, 275: 1586-1593, 1997.

CONRAD, P. Medicalization and Social Control. In Annual Review of Sociology, 18: 209-32, 1992.

EHRENBERG, A. Le Sujet Cérébral. In Esprit, 309: 130-155, 2004.

BIRMAN, J. A Psiquiatria como Discurso da Moralidade. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

ILLICH, I. A Expropriação da Saúde: nêmesis da medicina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976 [1975].

LE BRETON, D. Antropologia do Corpo e Modernidade. Petrópolis: Vozes, 2011 [1990].

ROSE, N. Neurochemical Selves. In Society, 41 (1): 46-59, 2003.

ROSENBERG. B. Healing Minds, Treating Brain: psychiatry between biology and subjetivity. In Perspectives in Biology and Medicine, vol. 49, no.3: 407-424, 2006.

 

Recebido: 09/04/2012
Aceito: 09/05/2012

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