Lipis

CRACOLÂNDIA: HIPER-REALIDADE SOCIAL, DROGA E IGUALDADE

HENRIQUE FIGUEIREDO CARNEIRO é Professor Titular da Universidade de Fortaleza. Doutorado em Psicologia - Fundamentos y Desarrollos Psicoanalíticos - pela Universidad Pontificia Comillas Madrid.Estágio Sênior (pos-doc) no CNRS - CERMES3/ CESAMES - Université Paris V - Sorbonne. Vice-presidente da Associação Brasileira de Psicologia da Saúde. Pesquisador da ANPEPP - GT Psicopatologia e Psicanálise. Membro fundador da AUPPF. Coordenador do LABIO.Pesquisador CNPq. Professor Titular da Universidade de Fortaleza. Doutorado em Psicologia - Fundamentos y Desarrollos Psicoanalíticos - pela Universidad Pontificia Comillas Madrid (1997). Estágio Sênior (pos-doc) no CNRS - CERMES3/ CESAMES - Université Paris V - Sorbonne (2010-2011). Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Intervenção Terapêutica, atuando principalmente nos seguintes temas: psicanálise, dietética, subjetividade, mal-estar, laço social, saúde, violência e sujeito. Vice-presidente da Associação Brasileira de Psicologia da Saúde. Pesquisador da ANPEPP - GT Psicopatologia e Psicanálise. Membro fundador da AUPPF. Coordenador do LABIO e colaborador do LIPIS. Pesquisador CNPq. PQ2. Lider do Grupo de Pesquisa CNPq. Editor da Revista Mal-estar e Subjetividade. Autor dos livros: AIDS A nova desrazão da humanidade (Ed. Escuta, 2000), Que Narciso é esse? (Livro eletrônico CNPq, 2007- http://www.cnpq.br/cnpq/livro_eletronico/index.htm), A Soberania da clínica na psicopatologia do coitidiano - Org. - (Ed. Garamond, 2009) e O Erotismo e o Paraíso (Ed. As Musas, 2010).Editor da Revista Mal-estar e Subjetividade. Autor dos livros: AIDS A nova desrazão da humanidade (Ed. Escuta, 2000), Que Narciso é esse? (Livro eletrônico CNPq, 2007) http://www.cnpq.br/cnpq/livro_eletronico/index.htm), A Soberania da clínica na psicopatologia do coitidiano - Org. - (Ed. Garamond, 2009) e O Erotismo e o Paraíso (Ed. As Musas, 2010).Pesquisador Associado do LIPIS. E-mail: henrique@unifor.br.


Resumo: A partir do conceito de hiper-realismo os espaços conhecidos como Cracolândia são analisados à luz dos efeitos do discurso do consumo e da lógica capitalista de unificação de gozo do sujeito. Os elementos utilizados pela lógica do hiper-realismo quando aplicados aos espaços de aglomeração social no uso do Crack deixam transparecer uma promessa de igualdade de condições de acesso à droga, a subversão da lógica do mercado de consumo pelo fetiche acoplado ao ato de consumir e a instauração de um Superobjeto que captura o desejo e o metamorfoseia em necessidade. Por fim, este movimento pautado na ordem do consumo faz questionar o estatuto ético do sujeito para a psicanálise e o espaço estético da sociedade contemporânea.
Palavras-chave: Crack, hiper-realismo, laço social, sujeito, necessidade, psicanálise.

CRACKLAND: SOCIAL HIPER REALITY, DRUGS AND EQUALITY

Abstract: From the concept of hyper-realism, the spaces known as Crackland are analyzed trough the effects of the discourse of consumption and the capitalism's logic of unification of the subject's jouissance. The elements used by the hyper-realism's logic, when applied into the spaces of social agglomeration of Crack's use, shows a promise of equality of the conditions of access to the drug, the subversion of the consumption market's logic for the fetish within the consumption act and the establishment of a Superobject that holds the desire and transforms it into needs. Finally, this movement guided by the consumption's order questions the ethical state of the psychoanalysis's subject and the aesthetic space of the contemporaneous society.
Keywords: Crack, hyper-realism, Social ties, subject, need, psychoanalysis

Constatamos hoje, a partir de vários fenômenos sociais de massa, que há subjacente ao contexto dos laços sociais, uma lógica hiper-realista que salta aos olhos, mostrando os efeitos subjetivos derivados da pretensa regulação econômica pautada nos caminhos dos processos de subjetivação, promulgado pelo discurso do capitalismo. 

Entre tantos fenômenos sociais que podemos constatar - como os atos disseminados de violência(i), a discussão sobre a subsistência da culpa, a função reguladora dos discursos - um fenômeno que podemos considerar de grandes repercussões sociais, é o avanço de determinadas drogas em uso no seio da sociedade, e seus efeitos devastadores na perspectiva do movimento estético e ético que sugere.

O movimento de massa que as pessoas usuárias de drogas fazem no Brasil, em nome do consumo do Crack sugere também novos olhares sobre espaços físicos e subjetivos da cidade. Nestes espaços, o que podemos chamar de hiper-realismo social se junta à dimensão de deslocamento de massas e da desapropriação ou sentimento de não pertencimento à cidade. Ao mesmo tempo, destacam-se as formações de redes entre consumidores e passantes da droga; a estetização desesperadora da dor e, se podemos dizer, o atrofiamento do sentimento ético, no sentido do aniquilamento do desejo do sujeito e da destituição do que conhecemos da formação do laço social, na medida em que se instala o império das necessidades e a aglomeração de indivíduos podem sugerir uma convivência social.

São cenas de uma realidade extrema, em nome das quais podemos deduzir, falaciosamente, uma tremenda autenticidade - como se tratara de uma aula de sociologia a céu aberto - aquilo que conhecemos como traços sociais de identificação do mal-estar na cultura. São dados que vão se inserindo pouco a pouco numa nova forma de atualizar o que se passa com os usuários em uma aparente socialização de costumes, em função do ajuntamento de seres humanos que se cria sob os olhares atônitos do cidadão que transita por entre os principais centros urbanos do Brasil. Algo que sugere qualquer coisa, menos uma perspectiva de laço social.

O nome dado no Brasil a estes espaços de aglomeração social, no caso dos usuários do Crack, é Cracolândia. Como o próprio nome sugere, trata-se de uma cidade cheia de habitantes sem pertença, identificados sob a sigla de usuários do Crack. Nelas os usuários se aglomeram em ondas humanas de desvalidos e desassistidos, que se juntam sob uma sigla citadina forçada e cheia de discriminação: Cidade do Crack. Ao mesmo tempo, tal e qual os movimentos de rechaços promovidos em vários momentos na história da Humanidade, a sociedade se reparte na bipolaridade radical formada entre os usuários e os não usuários, congelando e preservando o que de mais antigo conhecemos na dimensão das relações entre as pessoas: o rechaço e a intolerância(ii).

Para ilustrarmos um pouco que estamos falando, podemos acompanhar no link a seguir, as fotos tomadas destes espaços em vários sítios da internet. Elas falam por si. Nada mais hiper-real que estas imagens congeladas. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/798513-obra-parada-da-nova-luz-em-sp-vira-abrigo-para-centenas-de-usuarios-de-crack.shtml

Mas, afinal, o que podemos chamar de hiper-realidade social em psicanálise? Esteticamente, podemos dizer algo que se apresenta pela via do excesso de imaginário que se cola à realidade da vida cotidiana, sem nenhuma reserva. Por esta via podemos tomar o pressuposto de que viver em laço exige necessariamente uma leitura sobre as impregnações estéticas e suas proposições radicais que se apresentam em nome do mal-estar que se constitui nas três vias que Freud (1930) nos indica. Eticamente, implica em dimensionar a forma como os discursos sociais constituídos tratam da emergência da angústia que assola ao sujeito no laço, e a construção delirante de por um fim ao resto enquanto um conceito fundamental utilizado em toda e qualquer operação subjetiva, para se pensar o projeto político de qualquer discurso.

Um texto de Artur da Távola (1993) apresenta uma discussão interessante para tomarmos uma referência a partir do conhecimento da semiótica da comunicação de massas e sua relação com o real. Nela, diz o autor       que o hiper-realismo “distorce o real sem dele se afastar”. Para a psicanálise, esta talvez seja uma feliz definição que se acopla perfeitamente o que estamos demarcando como o espaço da Cracolândia. Feliz definição porque do real - enquanto um registro fundamental para o sujeito - temos oportunidade apenas de dimensioná-lo socialmente em cenas como estas que a Cracolândia nos oferece. Cenas que de extrema realidade, duras e estranhas. Porém, capaz de incorporar a ideia de que enfim estamos diante do impossível ou até mesmo de uma realidade inapreensível.

Nada mais real, sem dúvida, do que uma cena pretensamente social como a que sugere a Cracolândia. Mas enquanto captura, ela só pode ser dita de fora, pelos transeuntes. De dentro o espaço vivido que se redobra sobre si mesmo, enseja farrapos humanos, tomados na dimensão mais real que podemos enxergar. Nesse sentido Artur da Távola nos aproxima do real na psicanálise, pelo negativo do conceito da realidade, ao se apoiar em Karin Thomas, quando se refere ao hiper-realismo como a ilusão da realidade e a realidade da ilusão. A linguagem que dela se aproxima só pode contemplar o demasiado humano pela perplexidade.

Por isso mesmo quando Artur da Távola nos diz que o hiper-realismo “opera com igualdade que subjaz nos antagonismos. Assim, por exemplo, não opõe teorias do inconsciente às do consciente; não opõe intelecto e sentimento, forma e conteúdo, eros e psiché, capital e trabalho, socialismo e capitalismo, psicanálise e marxismo, fé e ateísmo. Opera de modo integrativo, plural e não sectário, com todo o variado instrumental existente, eliminando as formas sectárias de conceber a vida, política, a ciência, a arte e a religião, põe o acento em um dos pontos deveras importante para tratarmos da proposta deste trabalho pela via do espaço que a Cracolândia enseja em nome da droga e da igualdade dos que nela coabitam.

Quando realizamos uma pesquisa com adolescentes em Maracanaú, cidade industrial situada a 18 Km de Fortaleza, pudemos recortar dimensões que saltam pela via do hiper-realismo muito próximas aos efeitos que se instauram pelo discurso do capitalismo no interstício das relações no espaço do laço social. Este detalhe ficou mais patente quando os adolescentes registraram fragmentos de discursos que nos fez pensar sobre a nova conformação social, a partir dos usuários do Crack. Com isso podemos até inferir a partir dos dados que os adolescentes apresentaram na pesquisa, uma breve análise dos fatores que subsidiam a criação de espaços como a Cracolândia.

Os discursos dos adolescentes constatam na anomia que se faz presente como um traço inquestionável da lei enlouquecida, uma sistematização da violência, uma espécie de autorização para matar que emana dos discursos políticos instaurados. Entre estes discursos, detectam que há uma ordem que circula em nome do consumo, que conseguimos resumir com a máxima germânica über alles! É esta uma forma hiper-realista que acompanha a autorização ao predatório e que segue um imperativo discursivo de um totalitarismo pós-moderno. Os efeitos subjetivos que este totalitarismo sugere como meta, vislumbra um plano de globalização do desejo para todos os sujeitos. O que vimos na esfera dos sintomas que buscam um apoio na identificação de um diagnóstico de massa como síndrome do pânico, por exemplo, sustenta uma nova forma totalitária que fracassa quando o sujeito não admite como resposta a possibilidade de uniformização de sofrimento, da dor ou do prazer. Sua dor há de ser única, porém não podemos deixar de registrar que há do lado da ciência médica a prevalência de uma necessidade de tratar a todos igualitariamente, no que concerne às formas de sofrimento psíquico.

            Este projeto político da igualdade de servir a todos de uma mesma forma - ainda que pela via da uniformização da dor - além de trazer repercussões subjetivas desastrosas responde por uma ideologia que sustenta a passagem de uma soberania do desejo para a tirania do gozo. A operação se demonstra complexa, ao tempo que dedutiva. Para acompanharmos esta passagem implica destacar a operação de elevação dos objetos – conhecidos como gadgets(iii) - à condição de Superobjeto.  O que se sobressai nesta iniciativa da sociedade de consumo é a fascinação impressa a cada objeto, a ponto de transubstanciá-lo em um SuperobjetoO que fica promulgada é a lei em que todo e qualquer objeto poderá ser elevado á condição de ser a Coisa.  Em outras palavras fica evidente que - ao tempo em que seduz - o objeto a ser consumido recebe um superdimensionamento metonímico cumulativo, o que gera um efeito ilusório da existência de um Superobjeto.

Esta supremacia hiper-realista de um objeto a ser consumido encarna para o sujeito a referência pós-moderna de totalitarismo. Pela via do sujeito, o projeto de sabotagem do desejo em nome do coroamento da necessidade tende ao fracasso. Fracasso pela impossibilidade da necessidade operar em nome do redentor do desejo, vez que esta condição implicaria na morte subjetiva do homem.  Entretanto, dado o hiper-realismo que o objeto sustenta na vertente que repousa no interstício situado entre a ilusão da realidade e a realidade da ilusão, só lhe resta à única condição de adoração, que resulta na renovação de uma posição amorosa desgraçada. Uma nova versão hiper-realista do amor cortês(iv) vivido na idade média, com a diferença de que - enquanto discurso do capitalismo - este Amo não possui um rosto, não havendo, portanto, a radicalidade que separa a Corte dos súditos. Eis assim, outro caminho para se chegar à igualdade promulgada pelo hiper-realismo.

O que se deflagra no jogo de ilusões - que a lógica hiper-realista opera na elevação de qualquer objeto à condição magistral - é a globalização de igualdade de condições que emerge como a nova forma de totalitarismo: como se todos pudessem ter franqueado o acesso à Coisa como uma forma eficaz e eficiente de se colocar no mundo. Enquanto falácia de materialização da ilusão, este é um dos aspectos que aparece nos discursos dos adolescentes quando discutem e apontam para as causas e efeitos de uma violência sistematizada. A briga pela materialização da Coisa deflagra somente a lógica de que ela nunca poderá ser encontrada. Mas pode ser vendida como objeto inserido na cadeia da necessidade. Com isso, todos sofreriam de uma mesma forma e a eliminação do mal-estar estaria enfim à venda acessível a todos.

            A partir desta lógica, aparece o índice maior de uma igualdade tramada no bojo de um hiper-realismo que subjaz na fenda dos antagonismos. Nesta condição, a metonímia montada atua sobre a mercadoria modificando a referência que se tem de mercado, classicamente entendida como um produto que se põe à venda e que alguém o adquire através de uma moeda de câmbio para atender às suas demandas. O jogo tirânico do totalitarismo do consumo impõe à mercadoria sua elevação à condição máxima de ser fetichizada(v), sem nenhuma função mais precisa na ordem objetiva. Com isso, passa a ocupar em termos subjetivos o lugar magistral de uma fascinação(vi). A consequencia de este hibridismo hiper-realista é que a mercadoria deixa de ser acessada por uma moeda de cambio e passa a ser tomada através de um ato – violento ou não. Com isso, cumpre-se para o sujeito o corolário de que a todo fetiche está reservado um investimento no nível de um ato, seja ele sexual ou não. A lógica aqui inserida é a tirania(vii) da compulsão. Assim a mercadoria rompe com o conceito clássico de Mercado e na lógica hiper-realista alcança uma vertente de igualdade do ato de consumir sem precedentes. A dimensão tirânica imprime o regime dominante no qual prevalece o gozo a todo custo. Em definitivo, a máxima dessa lógica é que o sujeito goza pelo fetiche e esquece o valor do objeto, inflacionando o ato de consumir.

            Desta forma, entra em cena um ato que ainda que responda aos apelos da fetichização, i.e., algo em nome do sexo, aponta em direção a uma passagem sem dialetização entre o desejo e à pulsão. Esta chamada à transformação do mercado é o que podemos nomear - pela via do hiper-realismo - de ruptura de barreiras entre psicanálise e marxismo, pois o sujeito aprende nesta lógica que o mais importante é o ato e não o que se consome, desorganizando as leis do mercado e tentando um desdobramento do que conhecemos sobre o sujeito do desejo.

Nos espaços hiper-realistas das Cracolândias a lógica que salta aos olhos é a de que a Coisa não se presta a esta apreensão objetiva. O que se monta nas cenas de não pertencimento ao lugar é o excesso de exibição a olho nu daquilo que para muitos servia até então de um espaço reservado à intimidade. O desdobramento da realidade que se torna hiperbólica é que o jogo de ilusão mostra friamente o que se pode viver na dimensão do real tomado pela perspectiva do sujeito. É quando o fetiche da parte pelo todo da subjetivação exibe a ascensão rápida das quinquilharias a uma posição de valor globalizante, como a que supostamente regula as relações o laço social. É o reino do ato.

Como efeito da mercadoria fetichizada em circulação forcluída do mercado econômico oficial, o Crack no espaço social da Cracolândia força a existência de objetos que passam a ganhar em si a força imaginária de regulação em um mundo globalizado paralelo. Na dimensão hiper-real da igualdade o Crack aponta a uma potencia cerca de cinco vezes mais que a cocaína, sendo mais barata e acessível que outras drogas. O Crack no Brasil ganhou a condição hiper-realista de ser o objeto fetiche globalizado, na medida em que ganhou o status de objeto nominativo que faculta o acesso à Coisa, para ricos e pobres. Uma espécie pós-moderna de inclusão que sugere nada menos o que conhecemos com Lacan(viii) a partir do conceito de foraclusão, ou seja, uma espécie de inclusão por fora da regulação discursiva oficial vigente. 

            Com este câmbio na maneira de conferir o bem, se faz presente uma nova concepção no formato de globalização do acesso a esta condição de gozo. O que se intensifica enquanto relação que simula laço social se enseja em função de uma teia de distribuição(ix) que vem na contracorrente do Mercado tradicional.  A distribuição do consumo e a forma de acesso implicam na tentativa da nova concepção de mercado em se igualar o modo de gozar de todos.

Um dos maiores efeitos tomados pela via da hiper-realidade pode ser constatado na quebra da divisão entre majestades e súditos, pois todos teriam condição de acesso ao Crack. Nesta lógica hiper-realista, independente da classe social, a sensação de um efeito de igualdade se instala pelo discurso capitalista vigente. Cria-se no hibridismo que se forma entre igualdade e acesso à distribuição o movimento que opera ao mesmo tempo nos eixos horizontal e vertical, promovendo o acesso de todos à quinquilharia como forma e garantia ao gozo de uma mesma ordem. Chegamos ao cerne da lógica distributiva de massa encampada atualmente pelo tráfico.

            O êxito do consumo está acima de tudo e de todos. A lógica do hiper-realismo nos deixa ver que o discurso capitalista - nos moldes do mercado tradicional - permitia uma dicotomia formada entre incluídos e excluídos, sugerindo um Apartheid econômico. O imperativo de consumo globalizante vigente na lógica que defende a eliminação de sectarismos trabalha na concepção do consumo über alles e ensaia l’égalité pós-moderna promulgada pela máxima da globalização do gozo e o coloca como uma única forma de congregar a vida, a política, a ciência, a arte e a religião para o sujeito, tudo através do Crack. É o que salta aos olhos do observador nas Cracolândias brasileiras.   

Com a quebra de fronteiras, a única forma de identificar a relação do sujeito com o objeto de consumo se demarca pela via do fetiche do ato de se aglomerar de forma desordenada em espaços públicos transformados em ermos das cidades brasileiras, quando todos devem consumir de forma igualitária.

Sem dúvida que nesta proposta diante da desigualdade social insiste uma contralógica política, paralela ao convencional e que encampa o propósito interativo da globalização. O mercado de forma hiper-realista subverte a diferença, ao propor uma nova forma de promoção da igualdade. Há um deslocamento da prática política tradicional - que insiste na discussão da dicotomia entre ricos e pobres - para a lógica da globalização que promove a ilusão da igualdade de gozo. Nesse plano, ricos e pobres se unem através de um valor supremo promulgado pela sedução imposta nos artifícios da fascinação que a igualdade enseja. É a própria eliminação da diferença, cujos efeitos terminam com a capacidade de subjetivar e eleva o laço social ao que conhecemos como campo de batalha a céu aberto transposto ao ato de consumir. O espaço maior para a constatação desta proposta se dá na contemplação hiper-realista do terreno estético conferido às cracolândias no país. São espaços urbanos, centrais e importantes para a vida da cidade, que agora desafiam a sociedade e clama por autoridades que ajam sem autoritarismo.

Se sabemos, a partir de Freud (1973/1924), que a posição masoquista do sujeito sugere a narcose do corpo, exatamente porque o princípio do prazer promove a inclusão da pulsão de morte, é dela mesmo que o desejo se alimenta em busca de uma nova posição que se articula com o processo criativo que não cessa de se renovar no propósito da existência do laço social. Este é, talvez, o grande movimento político que a psicanálise pode tomar como ferramenta de trabalho no campo do social.


NOTAS:

(i) Sobre esta perspectiva da violência e da hiperrealidade enviamos o leitor para o texto de María Eugenia Suárez de Garay,   “Fuego CruzadoDel hiperrealismo violento y sus excesos.Texto disponível em: http://www.insyde.org.mx/images/fuego_cruzado_intervencion_me_suarez_dg.pdf

(ii) O trabalho AIDS: a nova desrazão da humanidade apresenta um quadro sobre os discursos sociais criados em diversas épocas sobre as grandes enfermidades que assolaram o homem (Carneiro, 2000).

(iii) Lacan (1981/1972-73) destaca esta referência no capítulo Uma carta de almor publicado no Seminário XX. 

(iv) Lacan (1981/1972-73) no mesmo Seminário XX faz alusão ao amor cortês, destacando que ele segue como um enigma. Há outras entradas interessantes para situar a presença do amor cortês que Lacan (1988/1960) ressalta no Seminário da Ética em Psicanálise.  Entre elas destaca o caráter inumano e aquele amor que conduz a alguns atos muito próximos à loucura.

(v) Quando a mercadoria perde seu valor de mercado e ganha o status de fetiche encontra a fenda que se desloca livremente entre a necessidade à causa do desejo. Lacan (2006/1963) no Seminário da Angústia explora esta relação, concluindo que para o fetichista é importante que o objeto fetiche sustente o seu desejo. Assim, a lógica que se instala a partir do desejo do Outro funda no sujeito uma referência perversa, no sentido de transformação da moeda que o mercado sustenta pautado na mercadoria. O problema que advém desta lógica quando interposta no laço social, em função de um discurso, o próprio Lacan (1997/1964) explora no seminário XI, quando destaca no capítulo sobre Tyche y automaton, o reino imposto pelo discurso do capitalismo. O risco destacado recai sobre o retorno da necessidade implicando a seu turno o consumo colocado a serviço do apetite.

(vi) A fascinação também pode ser tomada na atualidade como um produto da operação discursiva em nome do consumo e como efeito da busca de nomeação que o sujeito constrói em face da demasiada inconsistência do Outro. A inconsistência do Outro quando assumida demasiadamente pela impotência de um discurso com pretensões de hegemônico, causa no sujeito a falta de identificação com um mito regulador. Esta discussão está presente na obra de Carneiro (2007).

(vii) Esta moeda no plano simbólico pode ser tomada pelas duas faces que o pai apresenta em um dispositivo de formação simbólica. As faces de um pai e sua relação com as duas faces da lei, que equivalem ao lado tirânico e o lado amoroso, são cruciais para a conformação da culpa e da responsabilidade do sujeito. Neste sentido, Gerez-Ambertin (2005; 2006; 2009) analisa estas duas importantes referências subjetivas em vários textos organizados y compilados em uma coleção de 3 volumes que levam o nome Culpa, Responsabilidade y Castigo.

(viii) O conceito de foraclusão quando utilizado por Lacan (1966-67) no Seminário XIII, O objeto da psicanálise, é feita em referência a posição que o sujeito toma em direção ao nome do Pai, no sentido daquilo que ele vivencia como uma exclusão simbólica forçada.  Esta entrada serve para a compreensão da lógica apresentada neste artigo, em função do caráter inumano e enlouquecedor promovido por esta nova versão do amor cortês. O conceito aparece também em Lacan (1992/1956) quando trata do tema da Psicose, no Seminário III.

(ix) Para acompanhar esta discussão o texto de Carneiro (2008) O sujeito nas armadilhas da tecnociência faz uma discussão sobre a lógica distributiva do Amo no discurso capitalista atual. Texto disponível em: http://www.polemica.uerj.br/7%284%29/artigos/lipis_1.pdf

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Agamben, G. (2007). Estado de excepción. Buenos Aires: Adriana Hidalgo.

Ambertín, M. G. (2005). Culpa, responsabilidad y castigo en el discurso jurídico y en el discurso psicoanalítico, Volumen II. Buenos Aires: Letra Viva.

Ambertín, M. G. (2006). Culpa, responsabilidad y castigo en el discurso jurídico y en el discurso psicoanalítico, Volumen I. Buenos Aires: Letra Viva.

Ambertín, M. G. (2009). Culpa, responsabilidad y castigo en el discurso jurídico y en el discurso psicoanalítico, Volumen III. Buenos Aires: Letra Viva.

Carneiro, H. F. (2004). Sujeito, sofrimento psíquico e contemporaneidade: uma posição. Mal-estar e subjetividade, 4(2), 277-295.

Carneiro, H. F. (2007). Que Narciso é esse?: mal-estar e resto [DVD-book]. Fortaleza. Texto disponível em: http://www.cnpq.br/cnpq/livro_eletronico/pdf/henrique_carneiro.pdf.

Carneiro, H. F. (2008). O sujeito nas armadilhas da tecnociência: desafios para o mal-estar da época. Polêmica, 7(4), 16-31.

Carneiro, H. F. (2009). "Culpa y acto en la constitución y destitución del sujeto". In: Ambertin, Marta Gerez. (Org.). Culpa,Responsabilidad y castigo en el discurso jurídico y psicoanalítico – Volumen III. Buenos Aires: Letra Viva, 3, 91-102.

Carneiro, H. F.; Ambertín, M. G.; Santos, M. B.; Cunha, T. C. M. C.; Borja, R. T. V.; Souza, C. R. B.; Rocha, L. D. L. A. ; Rocha, M.V.X. ; Maia Júnior, R. P. ;Lima, R. S. (2010).Violência, Culpa e Ato: causas e efeitos subjetivos em adolescentes. Psicologia em Revista (Impressa), 16, 417-434.

Ehrenberg, A. (2010). La société du malaise. Paris: Éditions Odile Jacob.

Freud, S. (1973). La moral sexual "cultural" y la nerviosidad moderna, Tomo II. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva. Texto original publicado em 1908.

Freud, S. (1973). Psicología de las masas y analisis del yo, Tomo III. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva. Texto original publicado em 1921.

Freud, S. (1973). El problema económico del masoquismo, Tomo III. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva. Texto original publicado em 1924.

Freud, S. (1973). ¿Por qué la guerra?, Tomo III. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva. Texto original publicado em 1933.

Freud, S. (1976). Tabú de la virginidad. Obras completas, v. XI. Buenos Aires: Amorrortu Editores. Texto original publicado em 1918.

Itaboraí, N. R. (2005). A proteção social da família brasileira contemporânea: reflexões sobre a dimensão simbólica das políticas públicas. Anais do Seminário as Famílias e as Política. Texto disponível em:http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/outros/FamPolPublicas/NathalieItaborai.pdf.

Lacan, J. (1992). El seminario. Libro 3: Las Psicoses. Buenos Aires, Paidós. Texto original publicado em  1955-56.

Lacan, J. (1988). El seminario, Libro 7: La ética en psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós. Texto original publicado em 1960.

Lacan, J. (2006). El seminario, Libro 10. La Angustia. Buenos Aires: Paidós. Texto original publicado em 1963.

Lacan, J. (1997). El seminario, Libro 11. Los cuatro conceptos fundamentales del Psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós. Texto original publicado em 1964.

Lacan, J. (1966-67) El seminario, Libro 13: El objeto del psicoanálisis. Inédito.

Lacan, J. (1993). Elseminario, Libro 17. El reverso del Psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós. Texto original publicado em 1969-70.

Lacan, J. (1981). El seminario. Libro 20 Aun. Barcelona: Paidós. Texto original publicado em 1972-73.

Lidchi, V. G. (2004). O processo de entrevistar em casos de abuso e maus-tratos. Parte II: avaliando famílias. Adolescência e Saúde, 1(4) p26-30. Texto disponível em: http://www.adolescenciaesaude.com/detalhe_artigo.asp?id=203

Roudinesco, E. (2003). La familia en desorden. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina.

Távola, A. Da (1993). A notícia como espetáculo hiper-real. Texto disponível em: http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a314.htm
Zizek, S. (2005). Violencia en acto. Conferencias en Buenos Aires. Buenos Aires: Paidós.

 

Recebido: 09/04/2012
Aceito: 09/05/2012

| ©2012 - Polêm!ca - LABORE | Contato (@) | <-- VOLTAR |