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O TEMPO DO MEIO – DANÇA CONTEMPORÂNEA

MAURO SÁ REGO COSTA é Professor Adjunto da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense / UERJ; Procientista; Coordenador do Laboratório de Rádio e do Estúdio de Som e Música da UERJ/Baixada. Professor do Mestrado em Educação, Cultura e Comunicação / FEBF/UERJ - maurosarego@gmail.com

ESTHER WEITZMANN é graduada pela Faculdade de Dança Angel Vianna; especialista em Arte e Filosofia (PUC/RJ, 2006). Professora do Curso de Teatro da UniverCidade (RJ) e Dança Contemporânea na PUC/RJ. Dirige a Esther Weitzman Companhia de Dança e o Stúdio Casa de Pedra – Centro de Educação e Arte do Movimento - weitzmandanca@gmail.com

MONNICA EMILIO é bailarina, atriz, e preparadora corporal.  Bacharel em Teatro pelo Centro Universitário da Cidade do Rio de janeiro. Especialista em Docência Superior/ UniverCidade. Professora  do Curso de Licenciatura em Dança e do Curso de Teatro da UniverCidade (RJ) - monnicaemilio@gmail.com

PETER MARK é bailarino; faz graduação em Teatro na UniverCidade e tem grande experiência anterior como ator, desde criança, em séries para a TV nos EUA, e, recentemente, em novela da TV Globo.


Resumo: O texto, buscando-se como análogo de um processo de criação coreográfica,  é construído com  comentários, entrevista e depoimentos de um espectador/crítico, coreógrafa e bailarinos de uma peça de Dança Contemporânea carioca.
Palavras-chave: Dança Contemporânea; processo de criação; a construção do espectador; arte é sempre sério?

Fui ver O Tempo do Meio(1), coreografia de Esther Weitzman, cujo trabalho acompanho há muitos anos. Foi uma experiência singular. Conversando com Esther e com alguns bailarinos do grupo – Frederico Paredes, Alexandre Bhering (também excelentes coreógrafos) e Vandré Vitorino (seu segundo trabalho que assisto) – tenho vontade de escrever sobre a peça, mas não na forma de uma “crítica de dança”. Imagino fazer alguns comentários sobre a minha experiência de espectador, disse a eles. E misturá-los com uma entrevista com Esther e depoimentos dos bailarinos sobre “a sua” experiência. Minha ideia é que esta forma deve repetir  um pouco a experiência deles ao criar o trabalho.

Escrevi meus comentários e um esboço de entrevista e mandei isso para elas/eles. Finalmente só Esther e Monnica e Peter (o mais jovem dos bailarinos) me responderam. Gostei muito das respostas de Esther, e dos depoimentos de Monnica e Peter. E assim considero que o resultado – coletivo – nessa forma, é um bom caminho(2).

1. uns comentários

Disparada de disparates. Sequencias de disparadas de disparates. O mundo é feito de direções e dimensões... Mas você pode disparar e congelar e criar direções disparates... E então os movimentos d@s cinco bailarin@s disparam a minha cabeça. E é engraçado. É pra rir. Mas todo mundo está sério. Eles também estavam se divertindo. (Fred e Vandré me confessaram sem problema.)

Em vários momentos me batia como eixo que el@s estavam criando o espaço e ao mesmo tempo medindo o espaço, os movimentos faziam isso... criar o espaço e medir ou criar medindo o espaço... Me lembra o rizoma de Deleuze e Guattari ”Qual é o Corpo sem Órgãos de um livro?”  [ou de uma dança, digo eu] “Há vários, segundo a natureza das linhas consideradas, segundo seu teor ou sua densidade própria, segundo sua possibilidade de convergência(...) [ou divergências] “Aí, como em qualquer lugar, o essencial são as unidades de medida:’quantificar a escrita’” (grifo dos autores)(3). Quantificar a escrita, quantificar a dança, ou o espaço dançado construído. Isso é um disparate. E quando isso é feito exatamente com disparates, sua matemática é impecável... precisa, rigorosa, anexata (acontece em certas matemáticas criadoras, como a de Lewis Carroll).

Falei de como me deu prazer O Tempo do Meio (o Meio do Tempo) como me deixou alegre, porque saltava o tempo todo (mesmo com os lentos movimentos d@s bailarin@s deitados no chão). Mesmo com os lentos movimentos do Alexandre Bhering, que se levanta do meio da plateia e flutua, implacavelmente lento pelo meio exato da cena. “O campo de imanência é feito de velocidades infinitas --- de velocidades e lentidões” (Deleuze & Guattari). Tanto as velocidades quanto as lentidões são disparadas. Disparam alguma coisa dentro da tua cabeça (espectador, ou dançarino (eu imagino)).

Só eu estava rindo, no entanto (entre os espectadores).   Comentei com Fred Paredes [também um mestre em desfazer isso]... como as formas da obra de arte, ler um livro, ver um quadro, assistir uma peça de teatro, um concerto, uma coreografia, desde o inicio do século XIX, criaram um sujeito retraído, silencioso e só. Essa é a forma, o ritual do “espectador”. Não importa que estejam muitos sentados ali vendo o espetáculo.  Cada um está retraído, silencioso e só. Por isso ninguém ri. A obra de arte é uma coisa séria.(4)  Isso atrapalha o criador, e atrapalha muito mais as possibilidades do espectador.

2.  entrevista com Esther

Mauro -  Como foi o processo de criação do Tempo do Meio? Você já tinha uma ideia-matriz, um diagrama na cabeça, quando resolveu juntar este grupo para a coreografia? Como foi trabalhar com ela/eles, (e) por que ela/eles? O que você propunha para começar, para  dar um start  (ou não era nada disso? …. como é que você faz?)

Esther:

primeiro momento do trabalho : comecei com perguntas e frases  que li e me interessaram – essas frases lidas e sopradas para reverberar no corpo a sonoridade delas: @s bailarin@s criavam...

O tempo não pode fazer nada contra você além de envelhecê-lo.
A verdadeira realidade é o tempo, a única referência absoluta.
O tempo  está escorrendo.
O círculo não é redondo, o tempo nunca passa.  
É melhor ficar no meio.  
É  melhor correr de costas.
É melhor ficar de costas para o destino.
É melhor você estar onde você Não é.
Se o tempo passa, passa por onde?  
O tempo passado e o tempo futuro apontam sempre para o mesmo instante que é o presente.
O  presente não para de passar. (Deleuze)  
O passado não para de ser. (Deleuze)
O tempo não passa fora de nós nem mesmo em nós. O que passa são as coisas.
Estamos condenados a sempre estar á frente de nós mesmos, mirando o futuro, uma vez que o próprio presente não passa de um instante fugidio? (...acho que é do Bergson...)

segundo capítulo:

Comecei a trabalhar com todos aqueles verbos, associados à questão do tempo e fomos lapidando e os transformando em células de movimentos...

terceiro capítulo:

Logo no inicio do trabalho eles formam círculos e mandalas com 20 ações (gestos que falassem sobre o meio) - fiquei encrencada com o perigo do título do trabalho e comecei a investigar a palavra Meio!!!

Exemplo: Esther tem 4 gestos: Egípcia, não estou nem aí, Sovaco, trançada; Fred: distância; Vandré: imitando o gesto do bailarino Leão, pião; Peter: luvas, fontes, mata- mosquito, pinóquio; Vandré: lâmpada, Hitchcock (cineasta), alvo, perspectiva; Monnica: Baco, neném, indiano, tô aqui.

Enfim, gestos que representassem o meio e colocamos nomes malucos neles.
E lemos alguns poemas: Oração ao Tempo - Caetano Veloso; fragmento 350 – Fernando Pessoa, Livro do Desassossego.
Ainda não sei exatamente sobre o que é o trabalho, ele tem muitas imagens e muitas sensações de passagem do tempo, mas... Não sei me explicar...

Ahhhh e como inspiração sempre o rio (o barulho gostoso dele) e a imagem das montanhas de Saint Victoire de Auguste Cezanne, ele pintou inúmeras telas. Escolhi a palheta dessas pinturas, para o figurino, a luz do Zé e cenografia do Leo.

O que será o cenário?  Tenho a ideia de cobrir tudo com fitas, daí os bailarinos entram e saem por vários lugares diferentes, tentando dar a ideia do desaparecer!!!

O elenco?  Escolho pelo tesão de trabalhar com eles. Escolho o sujeito dançante pela  sua dança e vibração . Preciso ter afeto com quem trabalho e muito diálogo. Esse meu elenco foi um Luxo de generosidade, inteligência e talento criativo.
3. Depoimento de Monnica Emilio:

Também confesso que me divirto muito neste trabalho! Sinto um grande prazer em percorrer em cena os caminhos traçados durante o processo, caminhos que possibilitam a redescoberta de cada gesto, em cada gesto, na relação com o tempo, com o outro e com o espaço.

A direção da Esther permitiu a cada um de nós, dançarinos, contribuir com a nossa experiência pessoal, com a nossa bagagem, obviamente trabalhando na desconstrução e na investigação de si mesmo e levando em conta a individualidade no processo de criação.

Na maior parte do tempo  fomos improvisando e criando frases de movimento com base em textos, frases, verbos, imagens e memórias que depois uniam-se às ideias cênicas  da diretora.

Também tivemos o momento totalmente coreografado por ela.
Penso que a relação de confiança estabelecida entre diretora e elenco foi de grande importância  para a harmonia do grupo e para o processo criativo.
Destaco o improviso com o tempo e com o espaço que, muito além de um mero procedimento de construção coreográfica, tem lugar no próprio espetáculo. Sendo assim, percebo que estar em cena neste trabalho, após toda pesquisa que fizemos, com uma determinada liberdade de improviso, permite a percepção de diferentes possibilidades de vivência do movimento com o tempo e com o espaço que favorece a descoberta de sutilezas e torna a experiência bastante enriquecedora.

Acredito que outro ponto importante durante o processo é a proposta do “jogo”. Penso que a Esther reflete, entre outras coisas, sobre o papel do jogo na dança. O jogo pressupõe relação. O jogo coloca o indivíduo na ação, mais consciente dela (talvez), na vivência do exato momento presente.

O meio, o entre, a duração, o percurso, a presença, o instante são algumas palavras que serviram de inspiração para as nossas discussões nas aulas de filosofia do Alexandre Behring e nos improvisos com a Esther que, para mim, ecoam fortemente no trabalho.

Tenho muito prazer e fico muito feliz em estar em cena com O Tempo do meio. Que bom que você sentiu vontade de rir...! Para mim isso faz todo sentido...

4. Depoimento de Peter Mark:

Com 20 anos, apenas começando a minha estrada na dança (graças a generosidade da Esther em me chamar, e no elenco todo que são os meus primeiros professores/ ‘família de dança’), vejo que o processo de criação muitas vezes resulta numa obra que vai muito além do que você criou conscientemente.

Vários dos movimentos, descobri num "momento de inspiração"- (que parece mais um "susto".) Me perguntei, "De onde vem esse movimento/gesto/ação? Essa respiração? Esse olhar? Esse sentimento?" Não sei. Como um sonho. Penso  nós cinco como sonhos se encontrando no palco - revelando, medindo, vivenciando, e até brincando (ai vem os risos!) com a matéria do interior, com o tempo. (Há tempo fora de nós?) E a matéria do inconsciente em movimento. É essa matéria, sem necessidade/intenção de uma "dramaturgia", que, eu acho, fascina as pessoas ao ver o espetáculo.

Penso que a plateia vira "intérprete" desses sonhos dançantes - e cada um elabora uma realidade que faz sentido/ou não pra ele. Algumas pessoas veem montanhas, outros veem deuses como as pinturas nos vasos gregos - há uma proliferação de sentidos. Talvez justamente porque não focamos em gerar um sentido definido. Falamos sobre o Tempo de cada um, e sobre cada um no Tempo; em resumo: dança, movimento, momentum. O espiral, que infinitamente caminha em direção ao "Meio" e o próprio tempo presente. Estamos todos nele.

Agora, a pergunta que eu gostaria de fazer, a mim e a vocês, é "Como é que você vai dançar nesse meio?".


NOTAS:


(1) O Tempo do Meio. Coreografia de Esther Weitzman, com Alexandre Bhering, Frederico Paredes, Mônnica Emilio, Peter Mark e Vandré Vitorino. Colaboração Dramatúrgica: Alexandre Bhering;  Luz: José Geraldo Furtado; Projeto Gráfico: Flavio Pereira;  Figurino: Ticiana Passos; Cenografia: Leo Bungarten. Apresentado  no Espaço SESC – Mezanino de 10 de maio a 3 de junho/2012

(2) Método é uma palavra que provém do termo grego methodos (“caminho” ou “via”).

(3) DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil Platôs, Capitalismo e Esquizofrenia.  vol.1, 1995, 12

(4) Ver LADDAGA, Reinaldo, Estética de la emergencia, Buenos Aires, Adriana Hidalgo, 2006.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil Platôs, Capitalismo e Esquizofrenia.  vol.1. Tradução Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa, Rio de Janeiro, Editora 34, 1995.

LADDAGA, Reinaldo, Estética de la emergencia, Buenos Aires, Adriana Hidalgo Editora, 2006.

PESSOA, Fernando. (GUEDES, Vicente; SOARES, Bernardo) O Livro do Desassossego.  Vol.1. Lisboa, Editorial Presença, 1990.

 

Recebido: 04/2012
Aceito: 04/2012

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