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IMAGEM-OBJETO: DO REGIME ÓTICO IMERSIVO AO REGIME TÁTIL-ÓTICO-INTERATIVO

ALITA SÁ REGO é Professora Adjunto da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense / UERJ; Coordenadora do Laborav, laboratório de audiovisual. UERJ/FEBF. alitasa.rego@gmail.com


Resumo: neste trabalho, vamos fazer uma genealogia das imagens digitais interativas ou “imagens-objetos”, fazendo uma passagem entre a visão  tátil-ótica da antiga Grécia e a visão tátil-ótica das imagens digitais  contemporâneas. Imagens que vem satisfazer uma subjetividade  produzida pelo acoplamento das próteses ao corpo humano e que demandam um investimento corporal para sua visualização.   As novas imagens ultrapassam o regime da representação e passam para o da simulação.  Para estudar essas imagens usaremos alguns conceitos de Gilles Deleuze sobre as imagens, além da bibliografia técnica da área.
Palavras chaves: imagens,  fotografia, cinema, tecnologia digital.

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento da tecnologia digital modificou as propriedades do olho humano ao longo do tempo. Na atualidade, a criação de imagens visuais não remete mais à figura de um indivíduo situado no mundo real, que percebe um referencial e vai reproduzi-lo a partir das leis da ótica. As imagens estão ligadas aos bits infoeletrônicos, aos códigos digitais, às telas de computadores e a softwares sofisticados, capazes de simular e não mais de representar um referente material. Elas circulam em nível interplanetário e podem ser visualizadas por fora, em sua forma e manipuladas, investigadas e transformadas por dentro, a partir de suas estruturas numéricas. Imagens digitais são objetos manipuláveis que circulam e são trocados em escala mundial através de diferentes plataformas. Somadas a elementos semiológicos e semióticos, significantes e assignificantes, instituições sociais, econômicas, produtos culturais e outras tecnologias vão produzir as formas de pensar, agir e sentir da contemporaneidade.

As imagens-objetos vêm satisfazer as necessidades de uma subjetividade produzida pelo acoplamento de diversas próteses ao corpo humano, que hoje tem o dom da ubiquidade, é capaz de habitar diversos ambientes sem sair do lugar e vivenciar diversos tempos no mesmo momento. Um corpo que está ali/agoraeaqui/outrora ou daqui a pouco, capaz de visualizar o cosmos e o mundo quântico, as imagens-matéria mais gasosas, mais líquidas, mais sólidas do regime semiótico e as imagens-linguagem do regime semiológico. Um corpo sensível capaz de ver o não visível, até então apenas sensível: forças que vão além da realidade material na qual o senso comum acredita. Forças que operam na profundidade dos corpos.

Como gesto interfaciado por dispositivos técnicos, o corpo manipula imagens que ultrapassam o regime da representação e passam para o da simulação. Deixam ser signos divinos, representações de ausências, índices de uma presença. Com as imagens digitais, o corpo táctil predomina sobre a visão; e as sensações sobre o intelecto. O novo corpo vê com as mãos e vive em uma nova dimensão do real.  Essa forma de pensar, agir e sentir demanda uma nova forma audiovisual. Imagens interativas ou imagens-objetos que remetem ao corpo demandam novas habilidades perceptivas, que, por sua vez, impõem novas formas narrativas. E assim como é importante para a formação humana desenvolver a habilidade de ler e escrever letras e algarismos, é preciso compreender as imagens que exigem novas habilidades cognitivas e perceptivas. Neste trabalho, vamos fazer uma genealogia das imagens digitais interativas ou “imagens-objetos”, fazendo uma passagem entre a visão  tátil-ótica da antiga Grécia e a visão tátil-ótica das imagens contemporâneas.

A imagem analógica

O panorama do final do século XVIII foi o primeiro dispositivo imagético que permitiu uma imersão total da plateia. Situado no espaço monumental de uma rotunda, com uma altura de cerca de dois ou três andares de um prédio contemporâneo, era uma pintura mural circular que  reproduzia cenas históricas ou paisagens naturais. O observador ficava numa plataforma central de onde, fazendo um movimento circular com o corpo, podia explorar visualmente os 360o graus da imagem, sentindo-se no centro da ação. O panorama teve diferentes versões. Nos Estados Unidos, entre 1823 e 1850, era conhecido como moving panorama, praticamente um precursor do cinema. O espaço simulava as laterais de um barco ou um trem. A imagem, pintada em telas, passava diante do espectador. Logo depois as telas foram substituídas pelas imagens cinematográficas.

Em 1900, na exposição Universal de Paris, foi apresentado um Mareorama, uma plataforma com um sistema de suspensão que simulava o movimento de um navio com capacidade para 700 pessoas. Em sua “viagem” de Marselha, na França, a Yokohama, na China os passageiros viam paisagens pintadas de algumas cidades que se moviam no exterior. Enquanto atores exerciam as atividades da tripulação, um sistema de ventilação propagava os cheiros do mar e a iluminação simulava  a passagem do tempo. Uma experiência teatral, onde os espectadores se inseriam no próprio cenário. Essas possibilidades imersivas do panoramas tiravam o espectador de sua postura passiva e contemplativa, onde o corpo fica imóvel e o olhar é descompromissado, visando apenas à fruição do belo. O observador de um panorama começou a modificar suas relações com as imagens e as obras de arte, como bem destaca Benjamin (1992), ao anunciar o fim da aura com o surgimento da reprodução técnica, no final do século XIX. Esse novo personagem gosta de ficar na fila para entrar na morgue de Paris, para ver os corpos assassinados que ficavam expostos. Para ele, a emoção da foto no jornal (geralmente mal impressa e com pouca definição) não era suficiente para despertar a sensação da “verdade” do acontecimento. Ele não desejava uma imagem analógica do corpo, por mais semelhante que fosse, tal como a fotografia oferecia.  Queria ver o próprio corpo morto, com sua presença material em tempo real.

Um dos conceitos fundamentais para os processos perceptivos das imagens é o de analogia. Imagens fotográficas e cinematográficas são consideradas analógicas por excelência, já que são capazes de reproduzir um acontecimento com seu tempo e seu movimento.Tanto que André Bazin (1991) afirmou que fotos e imagens cinematográficas garantem a existência verídica do objeto representado. Por ser uma imagem capturada por dispositivos técnicos no momento exato do acontecimento ou da presença, sem a interferência do “artista”, a imagem fotográfica ou a cinematográfica possui sempre um grão de realidade, o traço que o referente deixa em uma superfície fotossensível. É sempre bom lembrar que o dispositivo técnico de captura de imagens age sempre de forma analógica. Isto é, ele captura a luz que o referente emite e será impressa na superfície fotossensível, de acordo com suas intensidades ou frequência através de um processo automático e instantâneo, sem mediação subjetiva. Isto é: o dispositivo técnico de captura de imagens não depende da memória, nem da interferência da mão do artista para reproduzir o referente de forma analógica. En effet, le réel devient un immédiate qui n’est plus uniquemente acessible pour l’experience sensible, mais par un dispositif technique externe au sujet humain (BARBOSA, 1996, p.12)(1).

Imagens fotográficas ou cinematográficas representam o real de forma analógica. Deleuze (2002) chama atenção para a tendência do senso comum de definir analogia como similitude ou semelhança figurativa. É ela quem vai garantir a existência de um referencial material em uma representação. Para o filósofo, esta é uma visão simplista, já que a própria ideia de semelhança está relacionada aos códigos visuais de uma determinada época ou cultura. Nesse caso, a analogia da imagem fotossensível tem como base os princípios óticos baseados na codificação da perspectiva combinada com as leis da ótica. Isso a aproxima da imagem digital, que também opera por código, convenção e combinação de unidades convencionais. Os códigos permitem que elementos abstratos heterogêneos possam se combinar. Por exemplo: quando combinados, os elementos dos códigos linguísticos (fonemas) podem dar origem a “mensagens”, ou histórias, que possuem uma relação de semelhança com um conjunto de referências.  Por exemplo: a palavra cadeira em nada é semelhante ao objeto cadeira. A enunciação de um grito não tem nenhuma relação à sua reprodução escrita. Uma imagem digital produzida pelo computador é o resultado analógico de um conjunto de comandos produzidos por zeros e uns como uma estenografia de dados figurativos. (Deleuze, 1981, p. 60). É como se a imagem fosse escrita por regras combinatórias e convenções, encontrando assim sua similitude ou analogia produzida.

Pode-se reconhecer que palavras e coisas já estão submetidas a um código que vai permitir que um grito, um sopro, ou um conjunto de fonemas se torne uma palavra ou ganhe  um sentido; ou que um plano cinematográfico, com movimento automático, seja análogo ao movimento real. Para se compreender a semelhança analógica é preciso aprendizado. Apenas depois que os códigos análogos a ela referentes forem desvendados e interiorizados é que ela pode ser identificada(2).

Levando-se isso em consideração, pode-se imaginar dois tipos de analogias figurativas: a produtora e a produzida. A produtora se dá por relação direta, que passa as qualidades e intensidades de uma coisa a outra. Dessa forma, a segunda é uma evidência da primeira, como uma fotografia ou uma imagem cinematográfica são a evidência de uma referência material. Os códigos produtores que determinam a analogia da imagem cinematográfica estão ligados à idéia de que as zonas mais escuras do filme positivo correspondem às que têm menos luminosidade no universo material – e vice-versa. O mesmo acontece com as imagens eletrônicas: as partes mais densas correspondem a sinais eletrônicos de menos intensidade, as mais luminosas a um sinal de mais intensidade. (BERNARD, 2000, p. XII). A imagem pode ser mais ou menos semelhante, mas isso não importa. Já a analogia produzida está ligada aos códigos dessemelhantes, como no caso da imagem digital, em que números produzem imagens.

Códigos da semelhança produtora: o espaço imersivo

O princípio da semelhança produtora pelo código da perspectiva está baseado nas leis da ótica, que têm como ponto de partida um ponto de vista único, o chamado ‘centro de projeção’. Esse lugar é o mesmo, tanto para o criador/produtor da imagem, quanto para o espectador ao visualizá-la. Ou seja, há uma equivalência entre o olhar do produtor e do observador. A imagem em perspectiva determina onde o observador deve se postar, porque codificado na imagem está o ponto único no espaço físico do qual a imagem se origina e do qual se espera que seja recebida. (WERTHEIN, 2001, p.82). Esse recurso permite que o observador ganhe um espaço na própria imagem, embora exterior a ela.

A técnica da perspectiva utilizada para a construção de imagens dá a ilusão de visão do mundo através de uma janela aberta. É calculada a partir de um raio projetor traçado de cada ponto da cena até o centro organizador. A imagem em perspectiva surge da interseção de todos os raios projetores individuais com a tela. A imagem é, na verdade, uma projeção matemática da cena tridimensional sobre uma superfície plana bidimensional (Ibid., p.80). Os pintores italianos do período chamam essa técnica de construzione legittima, acreditando na correspondência entre as imagens e a realidade, porque o rigoroso método geométrico de construção imitava diretamente o campo visual humano (Ibid., p.80).

À medida em que a codificação geométrica e a matematização espacial foram incorporadas às práticas dos pintores, elas foram se libertando da ideia do centro organizador da imagem semelhante ao de uma pessoa olhando por uma janela. Surgem novos pontos de vista, como a visão do teto, do alto para baixo (plongée), de baixo para cima (contre-plongée) etc. Com a perspectiva, a matemática codifica o olhar e passa a naturalizar a visão do mundo, revolução não só no campo das imagens, como também em todo o modo de estar no mundo. Uma revolução ética e estética. A tecnologia aperfeiçoa a analogia por semelhança produzida como referente, pois é capaz de re-apresentar a terceira dimensão. A nova técnica dá origem a um novo “realismo”: agora, além da altura e da largura, as imagens ganham uma profundidade matemática que se naturaliza como visão de mundo e que perdura até hoje.

Os códigos perspectivos analógicos capazes de produzir as três dimensões estão ligados à estereoscopia: processo cognitivo que faz a síntese da imagem vista por cada um dos olhos, criando a  sensação de profundidade, sem a qual o mundo seria plano como um desenho no papel. As coisas seriam apenas uma superfície, como descreve Arnhein (2004). Em uma concepção espacial, a primeira dimensão se limita a uma linha sem corpo, só podendo ser concebida em termos de distâncias e velocidades relativas, bem como de diferenças de direção, como um ponto de luz ou um facho na escuridão. A concepção de um espaço bidimensional já proporciona a noção de extensão no espaço. É possível fazer a relação entre duas coisas, ver pequenas e grandes, redondas e angulares; já existe em cima e embaixo e já é possível perceber o movimento com sua direção, mas não com sua modulação. Com o espaço em três dimensões é possível fazer arranjos ilimitados de objetos com total mobilidade. Daí a sensação de imersão: o espaço tridimensional inclui o observador a partir do momento em que ele se torna o centro organizador da imagem, tal como acontece com a perspectiva. Esta também dá a idéia de hierarquia espacial ao colocar alguma coisa mais ao fundo ou mais à frente. No entanto, hierarquia espacial que nem sempre corresponde às dimensões materiais dos objetos. Muitas vezes, um objeto maior, colocado ‘mais ao fundo’, parece menor do que um objeto menor colocado mais ‘à frente’. Dizer que alguma coisa está mais ao fundo ou mais à frente em uma foto bidimensional não passa de codificação. Se fossem vistas na Idade Média, as figuras mais à frente e maiores seriam vistas como as mais importantes. Com a perspectiva, o tamanho dos objetos depende da proximidade do ponto de observação ou do centro organizador do espaço. A iluminação e oclusão de objetos colocados uns após os outros são efeitos que também contribuem para a idéia de realismo tridimensional na imagem virtual. São recursos que descolam uma imagem da outra e evitam que círculos e quadrados colocados lado a lado pareçam colados. Os efeitos de oclusão em profundidade são criados pelas sombras entre os objetos, que também ajudam a dar a idéia da existência de um plano de apoio para os objetos, funcionando como um efeito de estereoscopia. Os gradientes de textura também contribuem para a ilusão de profundidade. No século XX, o artista plástico Vasarely baseou suas obras nas texturas em perspectiva.

A imagem cinematográfica possui uma semelhança analógica mais próxima do Real, porque, além de incorporar todos os elementos codificados da perspectiva e dos recursos de luz e sombra da pintura, além do som, também apresenta a modulação do movimento com toda sua variação. A modulação é uma operação do Real, enquanto constitui e não para de reconstituir a identidade da imagem e do objeto (DELEUZE, 1990, p.40). Daí a noção de realidade das imagens cinematográficas como modulação em si. O resultado desta analogia por semelhança produtora que inclui também o tempo e o movimento provoca a sensação de imersão do espectador, que se deixa levar pelo movimento das imagens, num processo de atenção distraída. Ele se deixa levar pelo fluxo das imagens (processo de imersão), sem se prender a nenhuma delas, num presente constante, já que uma imagem em si é apenas uma modulação do movimento, sem passado ou futuro. Por isso, o sentido do filme se dará apenas ao final, já que uma imagem depende da que a antecede e da que a sucede para formar uma narrativa que vai se apoiar na memória do observador.

Códigos da semelhança produzida: o espaço interativo

Para Deleuze (2002), a similitude analógica produzida depende de um tratamento prévio do referente por termos não semelhantes a ele. Ou seja, pela transdução de todos os tipos de referentes com seus respectivos códigos analógicos em um mesmo código uniformizador. Mas, nesse caso, os códigos não são mais sensíveis, mas sim inteligíveis, são pura linguagem. Enquanto imagens digitais, os códigos são matemáticos, formados por unidades convencionais: os dígitos 0 e 1. Sim e não. Aberto ou fechado. A analogia isomórfica produzida pelo código digital pode ser manipulada de duas maneiras: através da combinação intrínseca de elementos abstratos, que gera uma forma abstrata convencional (imagem de síntese); uma codificação de elementos exteriores que serão homogeneizados pela codificação (imagem digital).

Imagens digitais vão além do figurativo. Podem ser vistas por dentro e por fora, a partir de um comando do mouse. Podem ser transformadas infinitas vezes durante o processo de modelização através dos códigos digitais. Depois de materializadas, podem agir e serem agidas no espaço tátil-óptico do universo virtual apresentado nos monitores dos computadores. Produzida por códigos digitais, deixa de ser figura para se transformar em objeto. Deixa de ser passiva para se tornar interativa. Sai do regime puramente visual para entrar no óptico-tátil. Deleuze (2002) remete o regime ótico-tátil à arte grega do período clássico, quando a pintura é utilizada na arquitetura, em ânforas, vasos e objetos domésticos. Os objetos-suportes das imagens determinam a visão da figura, que pode ser manipulada, torcida, virada, movimentada. É uma visão focada próxima, nunca frontal e distanciada como no cinema, onde o foco do olhar do espectador deve estar sempre um pouco antes da tela, que deve ser vista como um todo. Daí a necessidade dos closes e detalhes quando se quer direcionar o olhar do espectador.

No espaço tátil-ótico do monitor dos computadores, a imagem é um objeto técnico interativo, sensível e inteligível ao mesmo tempo. Nesse caso, o universo digital é um espaço virtual tátil-ótico, onde habitam imagens-objetos.

Natkin (2004) explica que o sentido infográfico de um objeto virtual é ser uma imagem capaz de sofrer ou exercer uma ação modificadora de seu meio. No caso de um videogame, um objeto é aquele capaz de interferir no desenrolar do jogo. Uma porta que pode ser aberta ao comando do mouse é um objeto. Ela é diferente de um elemento de decoração. Uma porta que é apenas um elemento do cenário é apenas uma espécie de trompe l’oeil pintado sobre uma parede. Em seu sentido infográfico, é uma textura”(NATKIN, 2004, p. 30).

Imagens digitais que podem ser manipuladas, ou imagens-objetos, são entidades híbridas, situadas entre o que é real (segundo o modo do objeto) e o que não é (segundo o modo da representação (WEISSBERG, 1993, p.117). Imagens-objetos não existem apenas para serem vistas, mas demandam um investimento sensório-motor em sua fruição. Através do processo interativo, são imagens que agem e são agidas e que fazem parte do universo tátil-ótico virtual, já que as mãos agem como olhos. Interfaciada pelo mouse, é a mão que a explora para descobrir suas potências. Ela encadeia visão e ação e carrega o observador para dentro de si, incorporando-o ao cenário através das interfaces de entrada de informação como o mouse, joystick e, hoje em dia, o próprio movimento do corpo. Elas surgem em uma época em que os indivíduos não querem mais ser apenas observadores das cenas, mas querem ser atores de cenas criadas por eles mesmos. Diferentemente do cinema, em que o observador apenas podia “se identificar” com o personagem, a imagem-objeto permite que ele “seja” o próprio personagem, a partir de seu avatar, imagem-corpo do observador, que se transforma em um usuário capaz de interagir com as imagens de acordo com o seu desejo. Por isso as imagens-objetos são interativas.

Tecnologia da Imagem-objeto

A computação gráfica é a tecnologia contemporânea de simulação digital incorporada ao cinema. De acordo com a International Standards Organization (ISO), computação gráfica é o conjunto de métodos e técnicas de converter dados para um dispositivo gráfico, via computador(3). Ou seja, a função da computação gráfica é transformar dados em imagens. A função da computação gráfica é representar objetos de qualquer tipo e prover uma maneira de os manipular” (JÚNIOR, 2001, p.215) O sistema foi desenvolvido para criar imagens voltadas para uso militar, mas encantou o público com o visual futurista das imagens espaciais apresentadas nas feiras científicas. O marco no desenvolvimento do equipamento de computação gráfica foi o sistema de desenho Sketchpad, de Ivan Sutherland, apresentado no Massachusets Institute of Technology (MIT), em 1963. O sistema é o primeiro a apresentar uma estrutura de dados (organização da informação de modo que sejam interpretadas e submetidas a uma execução específica) e estabelece as bases teóricas do software para computação gráfica (Id., 2002, p.212). O sketchpad apresenta um menu com imagens interativas, comunicando-se de forma naturalizada com o seres humanos. Essa foi a primeira vez que se reconheceu a importância da imagem na evolução da tecnologia digital, facilitando a comunicação homem-máquina. O sketchpad permite produzir gráficos em tempo real. Foi o primeiro passo rumo  à interface amigável interativa.

Sutherland também cria a noção de objeto modelável: objeto composto por partes que podem ser manipuladas de forma independente. Um modelo original que pode ser alterado a partir da transformação das relações entre os elementos de sua estrutura, toda ela transformada em dados. Utiliza-se a palavra dado para caracterizar a informação (sua representação) fornecida para determinado problema” (JÚNIOR, 2002, p.224). Os dados de uma informação podem ser armazenados em diferentes suportes: uma foto, um vídeo ou filme. Todas as informações armazenadas nesses suportes diferenciados são transformadas em dados por um programa cuja essência é formada por um algoritmo, um conjunto de procedimentos com sintaxe própria adequada a instruir os computadores em suas tarefas. (Ibid., p.225).

Figura 1 (4) Algoritmo para desenhar uma cena, segundo Kerlow&Rosebush, 1994 (apud JÚNIOR, 2002, p.225)

Na computação gráfica, o espaço pode ser concebido em duas ou três dimensões, mas de preferência, para se criar uma imagem-objeto manipulável, é preciso utilizar o software  que crie o ambiente em três dimensões a partir das coordenadas espaciais cartesianas que definem a posição de uma figura em relação a sua altura, largura e profundidade espacial. A descrição da imagem é totalmente abstrata, baseada na linguagem matemática. A abstração da linguagem numérica é que permite a maleabilidade, já que não existe um suporte ou referente material com sua solidez.  Na computação gráfica, os algoritmos permitem mover, girar, ampliar, esticar, cortar, modificar as cores e realizar todas as atividades necessárias para criar, transformar e manipular as imagens, criando uma nova dimensão do real: a realidade virtual, caracterizada pelos conceitos de imersão, interatividade e feedback.  

Algumas considerações

As tecnologias digitais transformam as relações do observador com as imagens. Desde o Renascimento, o sentido visual predominava sobre o tátil. A fruição das imagens era vista como uma atividade natural e descompromissada da visão. Era o olho do espírito preponderando sobre o olho do corpo. Com as tecnologias digitais, a situação se inverte: o corpo predomina sobre a visão. A sensação sobre o intelecto. O indivíduo que vai fruir uma imagem passa da figura de espectador ou observador para a de manipulador.

Contemporaneamente, a tecnologia digital permite a produção de imagens em 3D, ambientes virtuais que dão a possibilidade de simular o invisível, ou imaginário. Ela  permite ainda a criação de imagens manipuláveis, objetos virtuais que pertencem ao regime da visualidade tátil-óptica. Com o gesto manual interfaciado por dispositivos tecnológicos, é possível interagir com imagens-objetos no mundo virtual, uma outra dimensão do real.

O uso do modelo matemático da perspectiva pelos pintores no Renascimento corresponderia ao uso das ferramentas digitais usadas pelos webdesigners hoje em dia. Somando o conhecimento científico a um certo grau de percepção estética, é possível simular um mundo virtual visual e sensorialmente crível. Afinal, ciência, arte e tecnologia sempre caminharam juntas.


NOTAS:

(1)Nesse caso, o real se torna um imediato que deixa de ser acessível apenas pela experiência sensível, e passa a ser acessível através de um dispositivo técnico externo ao sujeito humano. Tradução do autor.

(2)O formalista Rudolf Arnhein (ARNHEIN, 1984, p.146) afirma que imagens analógicas são interpretações visuais que dependem dos objetivos da imagem. A ilustração médica distingue as texturas, o tamanho e a posição dos órgãos, a rede de vasos sanguíneos. A ilustração técnica dá proporções e ângulos. Esquemas de instalações elétricas ou de sistemas nervosos são ilustrações tão analógicas quanto uma fotografia ou uma ilustração medieval.

(3) Disponível em: http://www-di.inf.puc-rio.br/~celes/monograph. (Acesso em: 11/11/05).

 

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Recebido: 04/2012
Aceito: 04/2012

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