TRAJETÓRIAS JUVENIS: O MAL-ESTAR DOS MAL FORMADOS

Viviane Giroto Guedes
Pós-doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Co-coordenadora do Núcleo de Meditação do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social – LIPIS, da PUC-Rio. E-mail: vivianegirotoguedes@gmail.com.
AUTOR 2

Junia de Vilhena
Psicanalista. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social – LIPIS da PUC-Rio. Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Membro Associado da Euroscience Organization. Investigadora-Colaboradora do Instituto de Psicologia Cognitiva da Universidade de Coimbra. Pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine, CRPM-Pandora. Université Denis-Diderot Paris VII. E-mail: vilhena@puc-rio.br.


Resumo: No Brasil, cerca de 50% da população entre 15 e 17 anos de idade está fora do ambiente escolar. O desafio de conciliar estudo e alguma forma de geração de renda responde, em grande parte, pela evasão escolar no ensino médio. Outro aspecto destacado é a inadequação da escola frente a esta realidade e a precarização material e pedagógica do ensino público nos últimos trinta anos. O presente artigo realiza uma reflexão sobre as dificuldades enfrentadas por adolescentes pobres na escola, analisando os aspectos culturais, familiares e psicossociais envolvidos nesta trajetória. O grave quadro global de desemprego, aliado à baixa qualificação, tornam o horizonte profissional deste grupo social extremamente comprometido e conduz a pensar modelos de inserção profissional que contemplem a realidade da juventude pobre brasileira.
Palavras-chave: Adolescência e juventude. Desigualdade social. Escola. Trabalho.

YOUTH TRAJECTORIES: THE MALAISE OF THE EDUCATIONALLY DEPRIVED

Abstract: In Brazil, approximately 50% of the 15 to 17 aged population is out of the schooling environment. The challenge of conciliating education and some sort of income generation is the major reason for high school evasiveness. Another point to be highlighted is the inadequacy of the school facing this reality and the material and pedagogical loss of the public education in the last thirty years. This present work brings to a light the reflection about the difficulties faced by poor adolescents at school, analyzing cultural, familiar and psychosocial aspects involved throughout this trajectory. The severe global picture of unemployment, connected to lack in qualification, turns the professional horizon of this group in a compromised one and brings us to thinking about models of professional insertion that contemplates the reality of the poor Brazilian youth.
Keywords: Adolescence and youth. Social inequality. School. Work.

INTRODUÇÃO

Com o processo de democratização do ensino, muitas pessoas que antes estavam excluídas do sistema educacional, tanto por uma condição social insatisfatória, quanto pela dificuldade de encontrar um estabelecimento de ensino próximo – população rural, por exemplo –, passam a ter um acesso progressivamente facilitado à escola. Para os adolescentes e jovens pobres , contudo, a permanência longa na escola é dificultada em razão do lugar desvalorizado que eles ocupam dentro do sistema social, desvalorização esta reproduzida no sistema educacional e manifestada através da baixa qualidade de ensino.

A pobreza aqui refere-se  aos aspectos econômicos e multidimensionais, através dos quais indivíduos e grupos são excluídos das trocas e integração sociais, promovendo instabilidade em todas as suas relações coletivas. (GIROTO-GUEDES, 2003).

A queda significativa de oportunidades de inserção profissional entre jovens com baixa qualificação é agravada pelo cenário atual do desemprego e pelas transformações sociais das três últimas décadas, especialmente. Tal realidade traz como consequência a inevitável descrença, de uma parcela significativa de jovens e adolescentes, quanto às possibilidades de conquistarem espaços profissionais valorizados.

A desigualdade social amplia enormemente esse quadro e delimita o contexto dos jovens aqui retratados. Os efeitos destrutivos da condição de pobreza perpassam o universo escolar, comprometem as oportunidades no campo laboral e afetam as suas identidades, desencadeando instabilidades em todos os seus campos relacionais.

O presente artigo realiza uma leitura sobre a trajetória dos adolescentes brasileiros com baixa qualificação escolar. A análise social traz os aspectos fundamentais da crise do emprego no contemporâneo, a qual afeta, especialmente, a população jovem. Na realidade brasileira, esta crise é ampliada em função do número expressivo de adolescentes e jovens que possuem baixa qualificação e abandonam a escola.

Outro aspecto abordado neste texto é a demanda precoce de trabalho entre os adolescentes pobres brasileiros. Tal demanda os coloca em extrema desvantagem de conhecimento e de desempenho escolar, em relação aos alunos que não precisam se preocupar com isto. Ao assumirem responsabilidades de geração de renda, esses adolescentes desinvestem nos estudos e perdem potência para realizar a transição da escola para o mundo do trabalho de forma satisfatória.

Assim, lançados a própria sorte, acumulam desafios e não dispõem de suportes de apoio, nem da família, que também sofre com a vulnerabilidade social; nem do Estado, que não contempla a participação ativa destes grupos para pensar soluções para os seus conflitos; nem da escola, que direciona seus conteúdos ao aluno que se dedica exclusivamente aos estudos.

Este artigo está estruturado da seguinte forma: primeiramente, procurou-se realizar uma reflexão sobre as dificuldades e as necessidades de trabalho e inserção profissional entre adolescentes, no contexto da desigualdade social brasileira. Para tanto, se discorre sobre a escola e a sua incapacidade de exercer o seu papel social inclusivo no contemporâneo. Aborda-se, também, algumas especificidades das famílias pobres em relação ao estudo e ao trabalho dos filhos, e sobre os fatores psicossociais que interferem na inequidade de oportunidades laborais entre eles. Finalmente, apresenta-se as proposições de alguns autores frente ao dilema contemporâneo da falta de trabalho entre jovens com baixa qualificação.

 

Aspectos familiares

Dentre os inúmeros problemas enfrentados pelas famílias pobres, pode-se destacar a escassez de trabalho e a instabilidade de renda. No contexto brasileiro, a dificuldade de participação no mercado de trabalho, para estas famílias, refere-se, fundamentalmente, à baixa qualificação dos pais, normalmente sem escolarização. Os pais de classe popular costumam incentivar o estudo dos filhos e alimentar a expectativa de que a educação escolar pode encaminhá-los para a ascensão e a inclusão social.

Entretanto, a expectativa de ampliar a inserção pela via escolar sustenta antigas barreiras sociais e novas formas de exclusão. No caso dos adolescentes pobres brasileiros, as antigas barreiras referem-se, especialmente, ao fato de que eles precisam gerar renda para se autossustentar e complementar a renda de suas famílias de origem. Tal demanda de trabalho precoce comporta traços culturais cultivados dentro da própria família, a qual atribui valor positivo à participação dos filhos na composição da renda familiar e nas raízes sócio-históricas brasileiras, que naturalizam o trabalho infantil desde o período colonial e que permitem a sua permanência nos dias atuais, a despeito do aparato jurídico de proteção à infância e à adolescência (SARTI, 2007; CARRETEIRO, 2011).

Conciliar a escola com algum tipo de geração de renda compromete a formação educacional e aumenta as chances de abandono escolar para grande parte de adolescentes brasileiros. Segundo Frigoto (2006), esses adolescentes possuem uma formação escolar deficitária e, por esta razão, são encaminhados para um tipo específico de trabalho, temporário e precário.

Assim, a marca da desqualificação social dos pais é reimpressa nesta nova geração jovem, acrescida de novos desafios de inserção profissional, como cumprir as exigências de hiperqualificação impostas pelo mercado de trabalho atual. Para Paugam (2001), a desqualificação social se caracteriza pelo movimento de expulsão gradativa, de camadas cada vez mais numerosas da população, para fora do mercado de trabalho e para a relação de assistência.

Se por um lado, o Brasil apresenta avanços, a partir dos anos 90, no que se refere ao acesso facilitado à escola, por outro lado, o número de jovens que não chega a concluir o ensino médio mantém-se elevado. O Gráfico 1 ilustra a taxa de abandono escolar do ensino médio na população com idades de 15 a 17 anos de idade:

 

Gráfico – 1

Fonte: POCHMAN, FERREIRA, 2016, p. 1257.

 

Observa-se neste gráfico a diminuição na taxa de abandono do ensino na faixa etária de 15 a 17 anos de idade nos últimos anos. O que interessa saber, a partir daqui, é a repercussão destes índices na vida dos adolescentes que precisam conciliar estudo e trabalho, e que enfrentam esta dupla jornada. Estariam eles mais preparados para a inserção profissional com a conquista do diploma de ensino médio?

Segundo Bourdieu (1997), o diploma desvalorizado funciona como o novo divisor de águas entre a escolaridade feita para os ricos e a feita para os pobres. A transposição de tal afirmação para a realidade brasileira poderia ser pensada a partir da observação das diferenças existentes entre o conteúdo programático adotado pelas escolas privadas e pelas escolas públicas de ensino médio. No sistema privado, constata-se todo um aparato curricular que visa criar diferenciais de inserção para seus alunos, especialmente garantindo-lhes a continuação dos estudos de nível superior em uma boa universidade. Já o adolescente que frequenta a escola pública, dispõe de um diploma pouco valorizado ao final de um longo percurso escolar, enfrenta demandas de trabalho, durante ou logo após a conclusão do ensino médio, e dificilmente atinge a inserção na etapa seguinte, no ensino superior (GIROTO-GUEDES, 2015).

Segundo Frigotto e Civiatta (2016), a partir das últimas décadas do século XX, a educação básica de nível médio brasileira vem sofrendo precarização material e pedagógica e deixando de fora do sistema educacional cerca de 50% de adolescentes e jovens. Tal precarização do ensino público nacional conta, ainda, com a atual ameaça da chamada “reforma do ensino médio”, que, como aponta Frigoto (2016), é “uma agressão frontal à constituição de 1988” porque:

[...] liquida a dura conquista do ensino médio como educação básica universal para grande maioria de jovens e adultos, cerca de 85% dos que frequentam a escola pública. (FRIGOTTO, 2016, p. 1).

Para o autor, tal reforma entende como excesso as disciplinas de filosofia e sociologia, diminui a carga horária de história e geografia, sob o argumento de que o aluno digital não precisa de uma escola conteudista. Contudo, para os alunos de ensino médio da rede pública faltam, desde uma sala de aula equipada com o mínimo necessário até laboratórios, espaços de lazer, ou seja, faltam condições dignas para estudar. Tais condições mínimas de estudo foram pleiteadas por alunos de ensino médio em um movimento iniciado em 2016, denominado “Ocupa Escola”. A lista de prioridade desses alunos não se referia a aparelhos digitais, os quais cada um tem em seu dia a dia. Para Frigotto (2016), trata-se de “uma reforma que legaliza a existência de uma escola diferente para cada classe social”. 

A desigualdade de acesso ao conhecimento que opera no interior das diferentes instituições de ensino e a defasagem de oportunidades dela decorrentes, são assim compreendidas por Bourdieu e Champagne (1997):

[..] os alunos oriundos de boas famílias receberam o senso do investimento, assim como os exemplos e os conselhos capazes de sustentá-lo em caso de incerteza, e estão assim em condições de investir na hora certa e no lugar certo [...]; enquanto os oriundos de famílias pobres, e especialmente os filhos de imigrantes, na maioria dos casos abandonados a si mesmos já desde o primário, e obrigados a entregar suas escolhas à instituição escolar, ou ao acaso, para encontrar seu caminho, num universo cada vez mais complexo, e por isso votados a errar a hora e o lugar no investimento do seu reduzido capital cultural. (BOURDIEU, CHAMPAGNE, 1997, p. 485).

Segundo esses autores, a escola exclui como sempre, porém, atualmente, essa realidade ocorre de forma continuada e em todos os níveis educacionais. Para os autores, o impasse sobre o jogo de ilusões da escola é perturbador porque, ao mesmo tempo que cria a expectativa de preparar para a inserção profissional, comporta exclusões implícitas. A chance de estudar amplia a ilusão escolar e torna o fracasso ainda mais estigmatizante do que no passado porque, ao ter facilitado o acesso à escola, acredita-se que o adolescente também terá acesso facilitado à inserção profissional. Mas, os adolescentes com baixa qualificação não conseguem as vagas de trabalho estáveis, formais e com proteção social, via de regra, seus vínculos laborais são temporários e muito precários, fixando-os na posição de subempregados, desempregados permanentes, ou como descreve Castel (2003), de “normais inúteis” ou de “extranuméricos”, pertencentes a uma nova era de exclusão, formada por indivíduos diplomados e desempregados.

Segundo Castel (1994), a exclusão contemporânea refere-se, a partir de 1974, à chamada “nova pobreza”, onde estão inseridos todos aqueles que estão à margem da sociedade, sofrendo degradações das posições sociais que ocuparam anteriormente, como por exemplo, aqueles que exercem o trabalho precário ou aqueles que perderam o potencial de se autossustentar. A “nova pobreza”, portanto, não estabelece uma fronteira precisa entre os que vivem na periferia da sociedade (sem trabalho e sem sistemas de proteção) e aqueles que vivenciam um processo de precarização das relações de trabalho (passam de um estado de integração para uma situação de vulnerabilidade).

Todo o esforço que o adolescente pobre brasileiro realiza para manter-se escolarizado vem acompanhado de aspectos subjetivos da sua condição social desfavorável, como os sofrimentos incorporados por ele durante toda a sua trajetória de exclusão. Tais sofrimentos, segundo Dolto (1988), formam o “conjunto de reações de angústias secundárias ao fracasso social”, que é reforçado na escola, pela sua incapacidade de “valorizar os mais deserdados”. Para Bourdieu (1997), a soma de dificuldades encontradas pelo adolescente pobre no sistema escolar é reproduzida no campo laboral e forma o “resultado de seu capital simbólico negativo”, cujas marcas estão muito presentes, revelando “sinais exteriores” de fragilidade social.

Os sinais exteriores da pobreza são facilmente percebidos e mal apreciados no campo laboral, como demonstram adolescentes pobres pesquisados:

[...] dá pra saber que a pessoa é pobre pelo jeito que se veste, pela maneira de falar, de andar, de comunicar, e quando o gerente da loja vê um pobre, ele logo pensa que não tem condições de trabalhar. (GIROTO-GUEDES, 2007, p. 122).

Este “olhar” e “ver” a pobreza como sendo um sinal de invalidação das capacidades humanas, penaliza duplamente e intensifica o conflito entre a necessidade e dificuldade de inserção. A transição da escola para o trabalho é muito perturbadora para os adolescentes pobres porque eles não sabem como enfrentar as suas próprias insuficiências. O sentimento de vergonha costuma surgir com frequência e eles tendem a se comportar de forma apática e muito submetida. Segundo Gaulejac (2005), o sentimento de vergonha demonstra uma má apreciação de si próprio e, também, do ambiente que a originou.

A produção da realidade humana na vida social se dá na convergência entre a existência e seus significados, entre a realidade e os sentidos correspondentes que os sujeitos lhe atribuem. Segundo Costa (1984), a imagem construída pelo seu meio social, nas relações com seus próximos, com a cultura na qual o sujeito se insere são fatores privilegiados da constituição do sujeito. São imagens sobre as quais cada um buscará se identificar como forma de construção de afetos, de contato e troca. São modos de olhar a si mesmo que permitirão construir caminhos subjetivos em meio ao cotidiano (VILHENA, 2017).

Para os adolescentes pobres, seus traços exteriores comportam elementos de suas próprias constituições familiares e dos valores por elas cultuados. Romper com este conjunto de regras significa desconstruir o aprendizado de toda uma existência e forçar uma adaptação em um mundo social que estabelece regras muito distintas e que despreza os traços de pobreza.

Segundo Eisenstadt (1976), as sociedades modernas são o tipo mais puro de sociedade sem parentesco, havendo uma segregação da vida familiar em relação às outras esferas institucionais. Os papéis de pais e filhos, típicos da vida familiar, se tornam separados dos demais papéis representados nas principais esferas da vida adulta e a escola ocupa um lugar de destaque nesta transição.

Preparar os alunos para a grande especialização econômica e profissional é o objetivo final da escola. Contudo, as barreiras sociais existentes nesta transição impedem a inclusão dos jovens com baixa qualificação, desencadeando processos de desqualificação social.

É comum encontrar entre estes jovens o sentimento de rejeição, de sentir-se relegados à condição de invisíveis sociais. Aprisionados nas identidades massivas, “unificadas”, onde todo mundo é igual e igualmente ruim, é bem comum que apareçam sentimentos de “dúvida e de ódio contra si mesmos, a dissimulação de suas origens (…), a desvalorização perniciosa dos seus e até uma identificação fantasiosa com o grupo dominante” (WACQUANT, 2008, p. 89).

 

Fatores psicossociais

O que se aprende na escola, tanto do ponto de vista pedagógico, que persegue a meta educacional voltada ao desenvolvimento profissional futuro, quanto do ponto de vista social, que adota os princípios universalistas de competências, não contempla satisfatoriamente os adolescentes e jovens brasileiros. Segundo Sarti (2007), o ensino nacional é direcionado ao “aluno ideal”, aquele que pode se dedicar somente aos estudos durante o período preparatório escolar. Além disso, os conteúdos programáticos não compreendem os diferentes níveis de vulnerabilidade social dos alunos e, neste sentido, podemos afirmar que a escola pública brasileira falha no seu papel inclusivo.

Se o adolescente pobre brasileiro não tem condições de corresponder à expectativa escolar de desempenho, como se dará a sua inclusão profissional?

Esta reflexão se inicia a partir de alguns dados. Estudos recentes apontam que 17,5 milhões de jovens brasileiros entre 16 e 24 anos não frequentam a escola, o que representa cerca da metade da população jovem. Dentre eles, 16 milhões não haviam concluído o ensino médio em 2013 (POCHMAN, FERREIRA, 2016, p. 1257).

É preciso contextualizar, também, que o ensino médio na rede pública brasileira é realizado, predominantemente, no período noturno, para que o adolescente possa desempenhar funções laborais durante o dia. Outra característica importante e muito utilizada no Brasil é o formato de curso supletivo, que visa encurtar o caminho da preparação escolar para os jovens que estão em atraso.

Estes dados, mais do que retratar a realidade brasileira, apontam para a profunda desigualdade social existente entre jovens de classes sociais distintas. Os fatores sócio-históricos da nossa realidade reforçam a dificuldade e a frustração dos adolescentes pobres frente à impossibilidade de conciliar estudo e trabalho, como descrito por Cordeiro e Costa, 2006:

A participação histórica e precoce de jovens pobres trabalhadores é revelador não apenas de como a sociedade brasileira vem se configurando ao longo de sua trajetória, mas do agravamento que potencializa nas famílias pobres a entrada cada vez mais recorrente de seus filhos no trabalho precário, marginal e até em atividades do trafico de drogas para compor a renda familiar. Mesmo em atividades onde predomina um mínimo de escolarização e de conhecimento, tem-se uma relação de incompatibilidade entre trabalho e escola [...]. (CORDEIRO, COSTA, 2006, p. 123-124).

A necessidade de trabalhar reflete negativamente no desempenho escolar do aluno e contribui para a elevação dos índices de evasão escolar neste período da vida.

Frigotto (2006) elenca alguns dos principais aspectos que respondem pela inadequação da escola pública no Brasil:

O primeiro aspecto diz respeito ao dualismo explicito formalmente ou pelo tipo de escola que se oferece e que se perpetua ao longo de nossa história: uma escola de acordo com a classe social [...]. O segundo aspecto refere-se ao desmonte da escola básica, tratando-a não como direito, mas como filantropia e mediante campanhas de ‘amigos e padrinhos da escola’ ou ‘adoção e voluntariado’. O ensino médio e publico é dominantemente noturno ou supletivo. (FRIGOTTO, 2006, p. 191-192).

O autor acrescenta nesta abordagem que, nos anos 90, se efetivava a desqualificação da escola básica pública brasileira pela adoção imposta do “ideário da pedagogia do mercado”. Esta pedagogia das competências, visando o emprego, é responsável, segundo Frigotto (2006), por “uma falsificação perversa”, porque os jovens com baixa qualificação dificilmente conseguem se inserir formalmente no campo laboral.

Segundo Frigotto e Ciavatta (2016), este quadro não se resume ao Brasil, a América Latina está longe de oferecer condições educativas adequadas para a maioria de suas crianças e jovens. Isto ocorre, em grande parte, pela herança histórica dos países latino-americanos, que passaram por um longo período de colonização e escravidão e acumulam, no presente, os déficits estruturais de uma sociedade desigual. Desde o inicio deste século, a educação de ensino médio brasileira deixa de fora da escola em torno de 50% de adolescentes com mais de 15 anos. Ao se inserirem de forma precoce e precária no universo do trabalho, esses adolescentes compõem a estatística de aumento da pobreza, ocupando funções residuais, desregulamentadas e precarizadas, no sentido de que seus postos são cada vez mais subordinados e inferiorizados.

Em 1900, Durkheim, “secularizou o termo teológico anomia a fim de estigmatizar o individualismo contemporâneo no sentido pernicioso daquela expressão: um autocentrismo que impedia as sociedades ocidentais de criar os vigorosos laços coletivos característicos das comunidades intactas” (Gay, 2002, p. 154). Em um contexto atual, quando as políticas de diminuição do Estado social entraram em vigor em boa parte do mundo, causando incerteza, desmoralização, dissolução de vínculos, os mais afetados foram os países pobres e dentro deles as pessoas mais desamparadas e mais dependentes de programas de emprego e renda, produzindo um contingente humano que pouco pode produzir ou consumir e, portanto, que é de pouca importância em um sistema consumista e utilitarista (BAUMAN, 2004; FORRESTER, 1997).

A crise do trabalho no contemporâneo afeta em cheio e mais profundamente a nova geração de jovens e adolescentes desqualificados. A falta de perspectiva de inserção para jovens com pouca qualificação é considerada uma questão crucial no cenário mundial contemporâneo. Intelectuais nos diferentes campos das ciências humanas e sociais se dedicam a refletir sobre esta temática, como será apresentado a seguir. 

 

Desigualdade de conhecimento x defasagem de oportunidades

Na perspectiva de Castel (2003), que analisa as causas do desemprego no contemporâneo, mesmo admitindo que as profundas transformações societais se produzam por meio da crise, o fato é que os efeitos positivos para a crise do trabalho não mostram sinais de visibilidade hoje. Ele defende que, mais importante do que se avolumar propostas e projetos que buscam conter os efeitos dessa crise, seria manter uma visão crítica e aprofundada sobre as suas causas. O autor critica as soluções imediatistas e reparadoras porque elas não contemplam a complexidade do nosso tempo, como os efeitos das novas transformações tecnológicas na atual conjuntura do emprego.

A perspectiva psicossociológica de Gaulejac (2005), aponta para promoção da individualidade positiva. Essa concepção parte da ideia de um tipo de gestão capaz de preservar os aspectos mais humanizados da relação empregado e empregador. O autor destaca o enfraquecimento do modelo integrador e a predominância do modelo instrumental das relações de trabalho na atualidade e aponta para a necessidade de se criar modelos de gestão que compreendam a função integradora destas relações.

O sociólogo Sennett (2005), considera que a narrativa é uma forma de “reconhecer e sondar a realidade”, uma espécie de esforço reflexivo e partilhado entre pessoas com problemas afins. Favorecer a criação destes espaços de discussão promove, segundo Sennett, a análise sobre os diferentes pontos de vista e ajuda a formular hipóteses para traçar estratégias de enfrentamento, tanto para superar o fracasso presente, quanto para evitar um fracasso futuro, como a permanência no desemprego, por exemplo. Ao se conquistar este espaço compartilhado de troca, onde o pronome “nós” pode ser empregado com propriedade, os processos de transformação já estarão atuando pois, para o autor, a mudança se dá “entre as pessoas que falam por necessidades interiores, mais do que por levantes de massa” (SENNETT, 2005, p. 176). Neste sentido, Sennett lança a sua crítica aos programas políticos, entendendo que seus fracassos e inadequações resultam da não consideração destas “necessidades interiores”.

Kaufmann (2004) entende o trabalho como um dos elementos fundamentais do “reconhecimento recíproco dos seres humanos e da estima de si”, e reconhece que as condições atuais não são boas para o desenvolvimento destas funções. Ele encaminha, então, algumas proposições: a) subtrair o modo flexível de trabalho de forma a “manter uma estabilidade ótima”; b) reconhecer que o modelo atual de trabalho tecnológico dificulta ou impede o “reconhecimento e a estima de si”. Para o autor, o modelo vigente de trabalho precisa passar por profundas reformas, especialmente no tocante à implantação da “democracia na empresa”, como por exemplo, reduzir o tempo de trabalho (sem perda de salário) para que os indivíduos possam encontrar em outras atividades a “autoestima e o reconhecimento mútuo”.

A visão sociológica de Antunes (2004) entende que “uma nova era de lutas sociais mundializadas já se mostra como um traço característico desse novo século”. Os atores principais destas lutas são os menos qualificados, aqueles que por ter a condição de “despossuídos”, tornam-se mais capazes para assumir ações mais ousadas, estando, portanto, mais propensos à “rebeldia”. A crença no potencial revolucionário da classe trabalhadora, apresentada por Antunes, parte da premissa que, ao participar da criação de valores e de trocas que gerem a mais valia, a classe trabalhadora estaria, objetiva ou subjetivamente, apta a se constituir como classe revolucionária.

As contribuições do prêmio Nobel de economia Amartya Sen, para enfrentar a desigualdade e pobreza, se encaminham para a formação de espaços alternativos, que possam oferecer suportes de apoios aos mais carentes e destituídos e possam, também, recuperar suas capacidades de “voltar a desejar”. Estes espaços, segundo Sen, precisam se ocupar de reestabelecer a autonomia desses indivíduos, para que eles possam assumir responsabilidades e levar adiante os seus planos de vida. O autor entende, também, que este tipo de iniciativa não deve ficar atrelada às políticas públicas e nem se paralisar diante de suas complexidades (KERSTENETZKY, 2000).

A perspectiva psicanalítica sobre os sofrimentos gerados pela exclusão social apresentada por Carreteiro (2003), traz a noção de estruturas mediadoras, que compreendem a criação de mecanismos capazes de superar “a falha na confiança”. Para tanto, a autora apresenta o conceito de “espaços intermediários”, lugares onde se pode articular as diferenças e permitir que o trabalho psíquico “restaure o sentimento de confiança”. Para a autora, a criação destes espaços intermediários possibilita que os mais afetados socialmente, como os adolescentes pobres aqui retratados, possam se agrupar, não apenas como uma “massa de desqualificados”, mas, sobretudo, como sujeitos acolhidos em suas singularidades, com possibilidade de desenvolver suas habilidades e de criar ou transformar estruturas sociais.

 

Considerações finais

O que parece comum e predominante na visão desses autores é a participação ativa e crítica da população afetada pela crise do trabalho. Tal participação compreende reflexões e ações sobre caminhos possíveis de emancipação e possibilidades de ressignificação, capazes de criar formas de enfrentamento para a inclusão social contemporânea.

A literatura científica pesquisada se encaminha, de forma geral, em direção ao fortalecimento dos laços de solidariedade entre as pessoas que vivem condições degradantes ou degradadas na sociedade. Acredita-se, assim, que o ato reflexivo e compartilhado pode ampliar as possibilidades de se alcançar significados e soluções nunca antes pensadas e potencialmente transformadoras.

O destaque dado ao trabalho nestas análises, refere-se ao fato de que ele representa uma via privilegiada de reconhecimento social e de autoestima. Assim, o não trabalho, a sua degradação e a impossibilidade de estar inserido neste universo, configura-se em uma preocupação alarmante, tanto pela gravidade do quadro atual de desemprego, quanto pela tendência de ampliação deste quadro. Por esta razão, a questão do trabalho deve ser considerada de forma integrada a todas as demais formas objetivas a ele atribuídas, pois a instabilidade proposta pelo atual modelo não favorece, nem mesmo, os mais qualificados, o que implica em um risco permanente para a classe trabalhadora ampla.


Classe trabalhadora, como descrita por Antunes (2004), ou seja, aquele grupo de pessoas que vivem do trabalho, incluindo aquelas pessoas que vendem a sua força de trabalho em troca de salário, como os terceirizados, precarizados, temporários, o proletariado rural e os desempregados, e excluindo-se os gestores do capital.

O efeito do declínio das medidas de redução do estado social, de uma estabilidade mínima, que garanta o que poderíamos entender como pacto social – ou pelo menos direito à vida – foi avassalador para os mais pobres. Entendemos que tal situação de vulnerabilidade psíquica e social pode provocar nos mais jovens a perda de referentes simbólicos de sua história e cultura, ocasionando estados de grande padecimento psíquico. Acreditamos que nestas circunstâncias, o aparato social não cumpre sua função de continente para favorecer condições ao desenvolvimento pessoal e grupal, nem tampouco o mundo se apresenta como referência provocadora para estimular a curiosidade desejante. Seguindo Freud, todo sujeito necessita de amparo e atenção para se humanizar. Todos precisam ser acolhidos não apenas entre aqueles que vão cuidá-los, a família; mas também pela pólis. A cultura, de forma ampla, é a moldura da referência social para o processo de humanização. Cultura, neste sentido, não pode ser um privilégio para poucos (VILHENA, 2012).

____________________________________________________________________

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, R. O desenho multifacetado do trabalho hoje e sua nova morfologia. Serviço Social e Sociedade, n. 78, p. 107-120, 2004.

BAUMAN, Z. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

BOURDIEU, P. Ah! Os belos dias’. In: ______ (Org.). A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 487-504.

BOURDIEU, P.; CHAMPAGNE, P. Os excluídos do interior. In: ______ (Org.). A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 481-486.

CARRETEIRO, T. C. Adolecencias, exclusión y vulnerabilidades. Revista Interferencia Derechos y Seguridad Humana, v. 1, p. 63-74, 2011.

______. Sofrimentos sociais em debate. Psicologia, v. 14, n. 3, p. 57-72, 2003.

CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 2003.

______. Da indigência à exclusão, a desfiliação: precariedade do trabalho e vulnerabilidade relacional. In: LANCETTI, A. (Org.). Saúde Loucura 4. São Paulo: Hucitec, 1994. p. 21-48.
CORDEIRO, D.; COSTA, E. A. P. Jovens pobres e a educação profissional no contexto histórico brasileiro. Trabalho Necessário, 4(4), p. 112-125, 2006.
COSTA, J. F. Violência e psicanálise. Biblioteca de Psicanálise e Sociedade. v. 3. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
DOLTO, F. A dificuldade de viver: psicanálise e prevenção das neuroses. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.

EISENSTADT, S. N.  De geração a geração. São Paulo: Perspectiva, 1976.

FORRESTER, V. O Horror Econômico. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997.

FRIGOTTO, G. Reforma de ensino médio do (des) governo de turno: decreta-se uma escola para os ricos e outra para os pobres. ANPED na Rede, set. 2016. Disponível em: <http://www.anped.org.br/news/reforma-de-ensino-medio-do-des-governo-de-turno-decreta-se-uma-escola-para-os-ricos-e-outra>. Acesso em: 03 out. 2017.

______. Juventude, trabalho e educação no Brasil: perplexidades desafios e perspectivas. In: NOVAES, Regina; VANNUCHI, Paulo (Org.). Juventude e sociedade: trabalho, educação, cultura e participação. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006. p. 180-216.

FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M. Perspectivas sociais e políticas da formação de Nível Médio: avanços e entraves nas suas modalidades. Edu. Soc., v. 32, n. 116, p. 619-638, 2016.

GAULEJAC, V.  La société malade de la gestion. Paris: Du Seuil, 2005.

GAY, P. O século de Schnitzler: a formação da cultura da classe média: 1815-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

GIROTO-GUEDES, V. Há diferenças entre ser jovem e adolescente no contexto da desigualdade social no Brasil? Uma perspectiva psicossociológica e laboral. In: ARAÚJO, J.N.G., FERREIRA, M.C., ALMEIDA, C.P. (Orgs). Trabalho e Saúde: cenários e impasses no contexto brasileiro. São Paulo: Opção, 2015. p. 207-228.

GIROTO-GUEDES, V. Trajetórias Juvenis: o trabalho como valor, o valor do trabalho. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007.

GIROTO-GUEDES, V. Jovens Pobres e as vicissitudes da esperança. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.

KAUFMANN, J. N. Turbulências no mundo do trabalho: quais perspectivas? Serviço Social e Sociedade, n. 78, p. 30-51, 2004.

KERSTENETZKY, C. L. Desigualdade e pobreza: Lições de Sen. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 15, n. 42, p. 113-121, 2000.

PAUGAM, S. O enfraquecimento e a ruptura dos vínculos sociais – uma dimensão essencial do processo de desqualificação social. In: Sawaia, Bader (Org.). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. 3a ed. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 67-86.

POCHMANN, M. Juventude em busca de novos caminhos no Brasil.  In: NOVAES, Regina; VANNUCHI, Paulo (Org.). Juventude e sociedade: trabalho, educação, cultura e participação. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006. p. 217-241.

POCHMANN, M.; FERREIRA, E. B. Escolarização de Jovens e Igualdade no Exercício do Direito à Educação: Embates do início do século XXI. Ed. e Soc., v. 37, n. 137, p. 124-126, 2016.

SARTI, C. A. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. São Paulo: Cortez, 2007.

SENNETT, R. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2005.

VILHENA, J., Cidades para quem? Espaço, confinamento e processos de subjetivação. In: Santos, E.; Ferreira, J. A.; Aires, V. M. (Orgs.) Novas subjetividades: retratos de objetos emergentes. Viseu: Psicosoma, 2017. p. 285-298.

VILHENA, J.; ROSA, C. Na trama da cultura. A psicanálise para além das quatro paredes. In: RUDGER, A. M.; BESSET, V. L. (Orgs). Psicanálise e outros saberes. Rio de Janeiro: Cia. de Freud / FAPERJ, 2012. p. 109-132.

WACQUANT, L. As duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo, 2008.

____________________________________________________________________

Recebido: 24/05/2012
Aceito: 30/07/2012
____________________________________________________________________

| ©2017 - Polêm!ca - LABORE | Contato (@) | <-- VOLTAR |