“FAMÍLIA SANTA CLARA”: UMA ANÁLISE DO SONHAR NO ACOLHIMENTO DE CRIANÇAS

Renato Luiz Fonseca Bräscher
Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). Fez formação terapêutica em Psicoterapia Existencial Humanista. Especialista em Terapia de Casal e Família na PUC-Rio. E-mail: renatobrascher@gmail.com.


Maria Helena Zamora
Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). Professora da PUC-Rio. Vice-coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (LIPIS), da PUC-Rio. Professora convidada da National/Global Advisory Board for Faith and Justice in Community and Society, com sede em Indiana, EUA, em 2011. Iniciou cooperação com o Instituto de Psicologia Cognitiva, Desenvolvimento Vocacional e Social, de Coimbra, em 2012. E-mail: zamoramh@gmail.com.


Resumo: Este trabalho faz parte da pesquisa que toma por objeto o projeto “Família Santa Clara”, uma instituição de acolhimento infantil, que estabeleceu uma forma particular de funcionamento. Para acessar o material estudado, utilizou-se o método de análise do conteúdo das entrevistas com o casal fundador do projeto, observação participante e análise de documentos sobre a iniciativa, com a análise de conteúdo proposta por Laurence Bardin. Esse artigo tem como objetivo apresentar a categoria de análise “sonho”, aqui definido como capacidade de projeções futuras, como uma forma de mudança de vida para crianças em situação de acolhimento. As bases teóricas empregadas são os estudos sobre o “sentido da vida” de Victor Frankl, o conceito de liberdade de Jean-Paul Sartre e algumas concepções de educação de Paulo Freire. Assim, veremos que a capacidade de sonhar possibilitou uma mudança significativa na vida dessas crianças.
Palavras-chave: Sonhar. Sentido. Responsabilidade. Acolhimento infantil.

"SANTA CLARA FAMILY": AN ANALYSIS OF THE DREAMS OF CHILDREN IN CARE

Abstract: This work is part of the research that has the project “Família Santa Clara”, a childcare institution that established a particular brand of work, as an object. The interviews with the couple that founded the project were analyzed, which alongside with an analysis of documents regarding the initiative and participant observation allowed us to approach the material through the content analysis as proposed by Laurence Bardin. This article aims to present the analysis of the “dream” category, here defined as the capacity to project a future as a way to change the lives of children in resident care. The theoretical bases are the studies of Victor Frankl on "the meaning of life”, Jean-Paul Sartre’s concept of freedom and some of Paulo Freire's conception of education. In this way, we are able to see that the ability to dream has brought significant changes in the lives of these children.
Keywords: Dreaming. Direction. Responsibility. Children. Residential care.

INTRODUÇÃO

Esse artigo é uma parte da pesquisa desenvolvida sobre a instituição de acolhimento infantil “Projeto Família Santa Clara”. O Santa Clara foi uma instituição de acolhimento infantil, que funcionou entre 1987 e 2010 no interior do Estado do Rio de Janeiro (Paraíba do Sul) e em Vargem Grande, na cidade do Rio de Janeiro. Teve como seus fundadores um casal, Cícero e Eliete, que junto a seus filhos biológicos, visaram ampliar sua família para crianças e adolescentes que não tinham onde e nem ninguém em quem se apoiar.

As crianças e adolescentes assistidos eram encaminhados por diferentes motivos, desde violência familiar ou pobreza extrema da família, até crianças e adolescentes em situação de abandono nas ruas. Muitos estavam afastados de sua família de origem em razão de processos jurídicos, envolvendo situações diversas de violação de direitos. Não podendo permanecer em casa, eram encaminhadas para essa instituição enquanto aguardavam sua família de origem poder recebê-los novamente ou serem encaminhados para uma possível adoção.

A razão pelo qual optou-se por utilizar o Santa Clara como base para esse artigo é que o projeto alcançou um alto índice de sucesso no acolhimento das crianças e adolescentes citados acima. Além disso, obteve reconhecimento internacional pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), em 1996, sendo escolhido como um dos seis melhores projetos sociais do mundo, além de várias outras distinções e prêmios.

A partir da pesquisa que visa analisar as relações vinculares ali estabelecidas e o conceito de família por eles utilizado, percebeu-se que o tema “sonhar” emergiu como uma nova categoria e apoiado nele foi desenvolvido o presente artigo, que traspassará sua história, forma de funcionamento e o papel do sonho (no sentido dos projetos de vida) dentro dela.

Para compreender como o sonhar se tornou fundamental no processo de desenvolvimento pessoal dessas crianças, será utilizado o método de análise de conteúdo proposto por Laurence Bardin (2006). A partir dessa base metodológica, foram entrevistados os fundadores do projeto, Cícero e Eliete e através da análise de conteúdo das entrevistas do casal e dos documentos do projeto cedido pelos mesmos, nos deparamos com temáticas e categorias que emergiram naturalmente, como o sonhar. Tendo em vista a relevância desse tema para a instituição, será estudada a importância da capacidade de sonhar como um dos caminhos para uma mudança de vida significativa das crianças e adolescentes que passaram pelo Santa Clara.

Além das entrevistas e documentos, serão utilizados os estudos de Jean-Paul Sartre e seu conceito de liberdade junto a Victor Frankl, que discorre sobre o sentido da vida. Frankl (1981), que baseou seus estudos em sua própria experiência em um campo de concentração, afirma que o sentido da vida é pessoal e se constrói em um dado momento da vida da pessoa, ou seja, sempre é possível compreender aquilo que dá sentido e direciona a vida de cada indivíduo. O autor afirma ainda que é esse sentido que nos leva a mudanças e a superação dos obstáculos em nossa vida. Esses estudos apontam para algo presente que se move a um futuro, assim como a capacidade de sonhar, que é encontrar algo que nos direcione para o futuro e consequentemente nos motive a mudanças no tempo presente. Lançaremos mão também do aporte teórico de Paulo Freire sobre educação e liberdade para entendermos o papel da educação no processo de construção da atitude de sonhar.

A partir destes apoios teóricos, perceberemos que sonhar é uma atitude escolhida e construída a partir de suportes que o meio oferece e que, no caso, o Santa Clara promovia. Foi através dessas escolhas que eles tiveram a possibilidade de planejar o futuro e com isso dar novos significados ao presente.

 

Histórias, projetos e sonhos

Para compreender o funcionamento singular desse projeto e como o sonho aparece dentro do Santa Clara, é preciso compreender um pouco da sua história. Isso significa mergulhar em uma análise sobre relacionamentos e movimentos de socializações de crianças e adolescentes que em grande parte da sua vida sofreram por diversas razões.

Como não existem muitos trabalhos que narrem a história dessa instituição, contaremos com os relatos dos próprios fundadores. O Santa Clara nasceu em 1927, em Campos do Jordão, estado de São Paulo, e na época era chamado de “Associação Santa Clara”. Na fundação tinha como finalidade receber crianças filhas de pais tuberculosos ou com risco de contrair a doença. Ele se estendeu até Paraíba do Sul (interior do Estado do Rio de Janeiro) e se alocou em Vargem Grande, onde permaneceu até o seu fechamento em 2010, mediante uma questão judicial.

Eliete Rosa e Cícero de Castro Rosa foram o casal responsável por esse projeto durante seu perfil assistencial a crianças em situação de abandono. Eliete é psicóloga e trabalhou com educação desde sua formação, e Cícero é economista por formação há 30 anos e trabalhou em vários órgãos públicos nesta função. Em entrevista eticamente aceita e onde solicitaram a identificação, o casal revela que o desejo por criar um espaço que ampliasse a sua família para outras crianças já existia. Ambos afirmaram que nunca pensaram em construir uma instituição de acolhimento infantil nos moldes daquelas então existentes, com problemas típicos das instituições totais e da impessoalidade dos cuidados, que mesmo hoje persistem (MORE, SPERANCETTA, 2010). Pensavam sim em estender sua família a outras crianças que precisavam de afeto: “O Santa Clara foi criado nesse sentido, em darmos uma família na troca de recebermos outra” – Cícero.

Frente a esses desejos, uma amiga convidou-os para liderar a Associação Santa Clara, e em 1987, o casal aceitou esse desafio. Eliete descreve a situação que se encontravam as crianças ali residentes:

Nós fomos até lá e encontramos 3 crianças em uma situação horrível, porque estavam em um quartinho de 3x3m hiper mofado, totalmente abandonados. A única pessoa que cuidava deles era o rapaz do curral que tirava leite e estas crianças comiam a comida que a mulher deste rapaz fazia. Estas coisas me chocaram e tudo me fez ver que poderia fazer muita coisa. Então, tivemos a ideia de fazer um projeto do nosso jeito. Fizemos o Projeto Santa Clara. Abrindo um parêntese, uma das coisas da nossa reflexão em começar o Santa Clara foi a certeza de que os trabalhos institucionais eram muito falhos, porque não respeitavam o que a criança precisava mais profundamente que era afeto, ouvido, carinho (MORENO, 1999, p. 27).

Após a entrada do casal, em um período de seis meses, o Santa Clara já contava com um grupo em torno de sessenta crianças, acolhidas sem distinções, nem de suas origens nem de idade. Esse último ponto é importante, pois nunca houve uma triagem das crianças, todas eram recebidas sem diferenciações.

Eliete contextualiza o panorama político e social da época. Ela conta que as escolas só formavam os alunos até a quarta série, com a justificativa de que “isso era suficiente para eles”. A forma de trabalho se enquadrava quase como um sistema escravagista, onde os grandes coronéis detinham o poder local, terras e estabelecimentos. Seus funcionários trabalhavam com salários pequenos e gastavam o seu dinheiro nas lojas dos patrões. Devido ao alto valor das mercadorias, grande parte do salário era dedicado às dívidas e o resto à formação de novas dívidas. Era comum que os filhos dos trabalhadores também trabalhassem nessas fazendas. Esse ciclo estabelece uma lógica de poder classista e discriminatório, sem muitos espaços de perspectivas de mudança para os trabalhadores e crianças locais. Praticamente não existia espaço para sonhar e planejar o futuro nesse sistema. Em resumo, o poder estava nas mãos de poucos e através desse poder construíam lógicas que defendiam seus interesses desde o ciclo de dívidas até uma formação precária das crianças locais, limitando suas possibilidades de desenvolvimento. Vale destacar que esse modelo restringe a liberdade, pois dificulta o acesso à informação e molda os cidadãos pelo medo.

Eliete conta que o Santa Clara influenciou a vida das crianças e da comunidade. Frente o sistema social estabelecido em Paraíba do Sul, o projeto começou a empregar as mulheres dos trabalhadores pagando-lhes um salário mínimo. Esse dinheiro rendia muito, pois estava livre de dívidas. Ela conta ainda que após certo período ainda conseguiram disponibilizar um caminhão que vendia mercadorias no atacado. Esse fato fazia com que um pouco do dinheiro sobrasse e pudesse ser investido em outras coisas. Esses movimentos começaram a mudar o panorama social local, pois agora as mulheres tinham algum dinheiro e a família podia comprar em outro lugar, fato este que diminuía as dívidas e aos poucos enfraquecia o ciclo vigente.

Outro acontecimento muito importante de mudança social aconteceu nas escolas: diante das limitações educacionais, Cicero e Eliete buscaram junto à Secretaria Estadual de Educação a possibilidade de assumirem uma escola, pagando todos os funcionários e reformulando o ensino fundamental. Conseguindo isso, montaram uma escola que ia até a 8ª série, com supletivo e educação para adultos. Esse foi mais um grande movimento social que modificou não só o Santa Clara como instituição, mas o contexto socioeconômico da cidade local. Moreno apresenta uma fala de Cícero sobre as mudanças sociais exercidas pelo Santa Clara:

“Tínhamos uma escola pública dentro da fazenda para a qual o Estado não nos dava professores. Então, tivemos que desembolsar um dinheiro para pagar a 19 professores, fazer uma rede curricular de 33, acordo com a estrutura da fazenda e investir muito em educação das crianças. E esta escola funcionava de 7h da manhã às 17h da tarde. Aqueles professores que eram de 1ª a 4ª série, ficavam a semana inteira, dormiam no projeto, faziam apoio escolar com as crianças. Era um negócio legal! Era uma Universidadezinha. A casa funcionava mesmo e passou a ser centro dos peões das outras fazendas, ensinando e alfabetizando. Além de alfabetizar, de ensinar, a gente discutia a constituinte porque nesta época estava saindo a Constituição. Foi uma coisa muito bonita porque teve colono que chegou no patrão e pediu seus direitos. Muitos viviam uma contradição porque as esposas trabalhavam com a gente, ganhavam um salário mínimo limpo, tinham carteira assinada e eles recebiam vales do patrão. E com as esposas trabalhando, ganhando um salário limpo, eles passaram a ter um mínimo de dignidade”. A repercussão deste trabalho ameaçou entidades ruralistas locais que culpabilizaram o esclarecimento e educação dos peões, pelas reivindicações legítimas que não estavam dispostos a atender. (MORENO, 1999, p. 30)

 

Moreno (1999) ressalta ainda que todas essas mudanças tiveram consequências: o projeto sofreu represálias do grupo dominante local. Naquela época, segundo o depoimento dos fundadores, além de ameaças, chegou-se a incendiar dois carros. Porém, o projeto continuou.

Além das questões políticas, o Santa Clara ainda precisou vencer os preconceitos sociais. As crianças que tinham atos infracionais no seu histórico eram mal vistas na cidade. Eliete cita um pequeno exemplo de atividades que visavam integrar a comunidade ao projeto e desconstruir essas imagens: “No final do dia, muitos trabalhadores iam para a fazenda jogar futebol e ali não eram mais infratores, eram jovens e homens jogando bola. Isso ajudava a desconstruir a imagem que eles carregavam”.

Ainda dentro da relação entre o projeto e a comunidade, Eliete ressalta: “Não se pode criar um filho sem ele estar em contato com a comunidade”. A partir disso, foi possível perceber o porquê da atuação comunitária da instituição estudada. Ela visava a integração das crianças e adolescentes com a comunidade e por consequência modificava a mesma, a fim de promover uma maior igualdade para as pessoas locais. O Santa Clara tornou-se um espaço cultural devido as atividades que lá eram desenvolvidas, como noites de cinema, de músicas e festas para as crianças ou eventos com temas culturais locais como a “Calangada”, festas juninas e outras.

A mudança para a cidade do Rio de Janeiro aconteceu devido a uma alteração no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), pois este afirmava que a criança deveria ser assistida na sua região de origem. Como 90% das crianças eram do Rio de Janeiro, eles retornaram à capital. Essas mudanças trouxeram as dificuldades que a violência de uma cidade grande traz em si. Para crianças e adolescentes que já haviam tido contato com o tráfico, com as drogas e outras violências, estar próximo fisicamente disso novamente era um desafio ao projeto.

Até que ponto a gente vai ficar frente à frente com os problemas anteriores deles e eles vão continuar mantendo esta nova opção de vida? Quando você está num jogo perigoso, tem de estar preparado para passar perto dele a vida inteira e não cair nele de novo. Esconder, sair fora não é a solução. A fuga soluciona por um período, mas, não para a vida toda. E eu acho que a gente tem tido sucesso nisso. (ELIETE, apud. MORENO, 1999, p. 36).

Nesse período, as crianças estudavam nas escolas públicas do bairro e o próprio Santa Clara abriu as portas mais uma vez para a comunidade local, permitindo a eles o acesso a aulas de dança, datilografia e informática. Essas medidas integrativas modificavam a relação das crianças com o “mundo real” e da comunidade com as crianças, mais uma vez ajudando na desconstrução de estereótipos pelos dois lados (MORENO, 1999, p. 34). Dimensionar o contexto real e das práticas concretas é fundamental para a construção e o planejamento de sonhos futuros, como veremos a frente.

            A cidade grande trouxe diversas dificuldades, porém proporcionou um outro aspecto: a visibilidade. Foi nesse período no Rio de Janeiro que o Projeto conquistou o reconhecimento internacional, recebendo apoio da UNESCO por ser escolhido como um dos seis melhores projetos sociais do mundo.

Como podemos ver, o resultado desse projeto foi amplamente satisfatório. Em seu site obtivemos os dados referentes a outros resultados: mais de 90% dos mais de 1.500 jovens que fizeram parte da Família Santa Clara se integraram à sociedade. Hoje, muitos estão formados e constituíram suas próprias famílias .


Disponível em:<https://familiasantaclara.wordpress.com>. Acesso em: 02/06/2016.

O Santa Clara continuou em funcionamento até o ano de 2010 e sob ordem judicial foi fechado, tendo como alegação o fato de que a instituição não atendia às definições do Estatuto da Criança e do Adolescente. Após o fechamento, as crianças foram enviadas para outras instituições de acolhimento, uma criança com deficiência foi adotada pelo próprio casal e os mais velhos deram continuidade às suas vidas fora de instituições. Até hoje, grande parte dos ex-membros do Santa Clara mantém contato entre si e com Cícero e Eliete.

Para pensar sobre a importância do sonhar para crianças e adolescentes, é preciso entender o papel da infância na formação do Sujeito. Atualmente, não é novidade que a infância ocupa um papel muito especial na formação do indivíduo, pois é nele que começamos a construir grande parte daquilo que somos e viveremos ao longo de nossas vidas. Ressaltado isso, começamos a dimensionar a importância de significados nesse período da vida. As experiências vão deixando a sua marca e vão modelando nossa identidade; o contato com as pessoas e o papel que ocupamos no meio social é fundamental para definirmos aquilo que somos ou seremos ao longo de nossa vida, pois quando nos sentimos sociais é que compreendemos nosso papel frente ao mundo que estamos inseridos.

Erthal (2004) afirma que as crianças desde muito cedo aprendem a adotar valores e atitudes que são esperadas dela para que ela obtenha o reforço necessário para o aprendizado. Dessa forma, o “eu” aparece na conduta quando o sujeito se experimenta como objeto social, ou seja, quando assume atitudes ou emprega gestos que outro indivíduo normalmente usaria, assim como responde ou tende a responder a eles (ERTHAL, 2004, p. 76).

É no período da infância à adolescência que o sujeito começa a construir seu projeto, o que Sartre (1997) chama de “projeto original”, que pode ser caracterizado como todas as experiências mais estáveis dessa etapa. Seus valores e escolhas futuras estão diretamente ligados à imagem que se criou a partir desse projeto. É importante ressaltar que este é para sempre inacabado, ou seja, estará sempre passível à mudança (SARTRE apud ERTHAL, 2004, p. 70).

A partir dessas perspectivas, pode-se afirmar que a capacidade de enxergar um futuro ao qual a criança se sinta pertencente e que faça sentido para ela (pois estaria ligado diretamente aos seus desejos e valores) parece fundamental para a construção e elaboração de uma infância e adolescência saudável.

Winnicott (1975), em seus estudos sobre a relação das crianças com seu meio, afirma que um “ambiente suficientemente bom” é caracterizado pelo fato de conseguir conter a agressividade das crianças, trazendo assim segurança e soluções criativas para esta agressividade. Ele também afirma que as crianças precisam de “estabilidade ambiental, cuidados individuais e continuidade desses cuidados”, para o seu desenvolvimento saudável. (WINNICOT, 2005[1941], p. 78). Tendo em vista que tratamos de uma instituição de acolhimento, as crianças ali presentes eram marcadas por faltas primárias de atenção e cuidado. Sobre isso, o autor afirma que “esconder-se é um prazer, mas, não ser encontrado é uma catástrofe” (WINNICOTT apud REZENDE, MORAIS, 2014, p. 5). Ele ressalta que o sofrimento de não ser encontrado, e consequentemente não percebido e compreendido, leva o sujeito a uma experiência de sofrimento intenso, que ele define como catastrófico. Essa experiência de esquecimento e descaso foi vivenciada por muitas crianças e adolescentes do Santa Clara, como apontam Vilhena, Novaes, Moreira e Zamora:

Uma das maiores perplexidades quando do início do atendimento (...) era tentar responder como essas crianças abusadas sexualmente desde os 4 anos, prostituídas desde os 8 anos, viciadas em cola, cocaína ou crack, abandonadas pelas ruas desde os 3 anos,  crianças que viram mães e pais serem degolados, queimados, irmãos mortos pelo narcotráfico ou pela polícia – ou seja, crianças que estão expostas a todo um circo de horrores que, quando tão próximos de nós, em nada se assemelha ao que tomamos conhecimento pelos jornais, tv e literatura - resistem a isso tudo? Como não são todas psicóticas? Como conseguem ter esperança? Que destino psíquico lhes está reservado?  (VILHENA; NOVAES; MOREIRA; ZAMORA, 2009, p. 2).

As perguntas levantadas pelas autoras no final da citação acima revelam a perplexidade que temos ao nos depararmos com situações de sofrimento tão intenso, e principalmente pelo fato dessas crianças e adolescentes terem entrado em contato com isso muito cedo. Porém, o principal motivo que nos levou ao estudo do Santa Clara é que as crianças e adolescentes que ali residiam conseguiram, em sua maioria, encontrar novos rumos e caminhos para as suas vidas.

 

Sonhar, um caminho de liberdade
Quando falamos em sonhar, estamos nos referindo ao ato de pensar, planejar ou imaginar algo futuro. Não nos referimos aqui ao movimento noturno de entrar em contato com pensamentos e emoções durante o sono. Compreendendo o sonho como a construção de uma perspectiva futura, podemos afirmar que ele, de alguma maneira, estará falando dos nossos desejos e vontades. Dessa forma, quando conseguimos entrar em contato com nossos sonhos, estamos nos relacionando com algo que faz ou dá sentido a nossa vida.

Frankl (1981), em seus estudos sobre a logoterapia, afirma que o indivíduo deve buscar a consciência de sua responsabilidade e que, para isso, é necessário que haja espaço para que, através de suas escolhas, ele possa optar por aquilo que faz sentido e pelo qual ele se sinta responsável. Frente a isso, nota-se a importância do respeito à perspectiva dos sujeitos e da busca incessante pelo não julgamento dos valores do outro.

Sartre (1997), filósofo e crítico francês existencialista, tinha como principal bandeira a liberdade. Assim como Frankl, ele afirma que nossa existência está pautada na liberdade que se manifesta através de nossas escolhas. Ser único implica em ser responsável e ser responsável pode significar angústia, ansiedade, medo. Quando uma pessoa toma consciência de sua vida e assume a responsabilidade sobre esta, as justificativas para as escolhas consideradas ruins cessam. Dessa maneira passa-se a observar a intencionalidade dos caminhos que devem ser tomados.

Tanto Sartre quanto Frankl vivenciaram uma experiência de prisão em campos de concentração durante a II Guerra; o primeiro em Stalag XII por um ano e o segundo em Auschwitz pelo período de três anos. Ambos trazem experiências diferentes sobre o período de privação, violência e convivência comunitária. Em Stalag, ele conheceu várias pessoas e construiu um coletivo, que se uniu para não se dobrar e recusar qualquer concessão:

Os antifascistas do Stalag formavam uma espécie de fraternidade, aliás muito reduzida, cujos membros, se achavam ligados por um juramento implícito: não se dobrar, recusar qualquer concessão. Separado dos outros, cada qual jurara manter essa determinação em toda a sua rigidez(MACIEL, 1986, p. 96).

A partir dessa experiência comunitária, Sartre descobre a solidariedade e a possibilidade de ação comum. O filósofo começa a reformular sua teoria e o primeiro fato a ser modificado é a liberdade absoluta. Ele enxerga agora que o homem é livre dentro das possibilidades de sua vida e esta é influenciada pelo meio ao qual está inserido. Junto a essa mudança, a ótica sobre os relacionamentos muda também. A experiência comunitária em Stalag o fez perceber que é possível que duas liberdades andem juntas. É uma questão de consciência.

Após os três anos em Auschwitz, Frankl relata casos de pessoas que conseguiram sobreviver, como ele mesmo, e outras que sucumbiram frente ao sofrimento. O autor afirma que o principal motivo pelo qual ele e alguns outros sobreviveram era que sua vida estava pautada em algo que dava sentido, mesmo em um lugar onde existe uma intensa força contrária ao sentido de vida. Frankl (1981) ressalta que o sentido da vida é diferente para cada pessoa, de um momento para o outro, e é ele que motiva o indivíduo a transpassar dificuldade e problemas:

Não devemos esquecer nunca que também podemos encontrar sentido na vida quando nos confrontamos com uma situação sem esperança, quando enfrentamos uma fatalidade que não pode ser mudada. Porque o que importa, então, é dar testemunho do potencial especificamente humano no que ele tem de mais elevado e que consiste em transformar uma tragédia pessoal num triunfo, em converter nosso sofrimento numa conquista humana. Quando já não somos capazes de mudar uma situação – podemos pensar numa doença incurável, como um câncer que não se pode mais operar -, somos desafiados a mudar a nós próprios (FRANKL, 1981, p. 137).

Ambos foram privados da liberdade física, porém não perderam a liberdade interna, pois esta se manifesta através de suas decisões, que podem ser exercidas mesmo dentro de ambientes amplamente hostis. A principal escolha libertária ao qual falamos é a do sentido da vida, que de certa forma se associa a possibilidade de sonhar. Dessa maneira, podemos afirmar que sonhar é uma atitude, consequência de uma decisão livre e consciente. Porém, como sabemos, toda a liberdade é situada e, por vezes, necessitamos de um contexto que favoreça essa escolha.

Frankl (1981) diferencia a liberdade “de” e a liberdade “para”. A liberdade “DE” nem sempre nos está acessível devido a questões biológicas, sociais ou psicológicas. Em alguns casos não temos a liberdade de fazer o que gostaríamos, da forma que gostaríamos e quando gostaríamos. A liberdade “DE” será sempre transpassada pelos nossos limites biológicos, sociais e psicológicos. Já a liberdade “PARA” está ligada a forma como vamos nos colocar frente às situações da vida. Frankl (1981), nos relatos de sua própria história, testemunha do genocídio cometido em Auschwitz, pondera que mesmo quando um prisioneiro ia em direção a câmara de gás, ele podia exercer sua liberdade (“para”), que nesse caso seria escolher como se portaria frente a uma condição de sua vida. Ele poderia ir humilhado ou de cabeça erguida e firme. Essa liberdade “PARA” é independente de qualquer contexto, pois ela está sempre associada ao sentido que a pessoa dará as experiências que ela vive ou viverá.

Nessa perspectiva, não escolhemos quem será a nossa família biológica ou questões de saúde hereditárias, nem mesmo estamos isentos dos condicionamentos que vivenciamos em nossas existências e sofrimentos da vida. Porém, somos livres para fazer escolhas e tomar atitudes frente a essas situações, repensando assim nossos impulsos. Marina Freitas (2015), baseada em Frankl, afirma “[...] diante dos impulsos: ou a submissão cega ou o direcionamento responsável; e, diante das dificuldades: ou a reclamação e a desistência, ou o afrontamento corajoso, confiante e transformador” (p. 62).

A lógica de funcionamento das relações dentro do Santa Clara proporcionava aos seus membros o contato com a prática da liberdade “PARA”, tal movimento consolida assim, um espaço concreto de escolhas de vida futura. Independentemente de quem eram as crianças ou adolescentes, e quais foram as suas histórias de vida, todos podiam sonhar e encontrar sentido através de suas liberdades situadas.

 

Educação, cultura e respeito: um caminho de sentido

O contexto para o sonhar se construiu no Santa Clara através, principalmente, da educação, da cultura e do respeito. Na sua história, pode-se notar que esses três valores formavam eixos importantes na formação do processo de ressignificação das crianças. Eliete exalta a pedagogia como um caminho, um plano de vida:

 

O mais importante é a pedagogia, e o que é pedagogia? É ter um conceito de educação e um conceito de vida: para que você quer trabalhar com essa criança? Para que você quer estar com ela? Não é nunca para ser o que você quer, que aliás é o grande erro dos pais e dos educadores. É a criança que tem que descobrir dentro dela o que ela quer, porque senão, não dá certo. (ELIETE).

Diante desse trecho da fala de Eliete, podemos perceber que a organização da instituição, baseada na criança e no adolescente antes de tudo, parece ser um fator que corrobora para a construção dos sonhos e perspectivas futuras dos mesmos. Essa centralização favorece o respeito à singularidade. Dentro do Santa Clara, a filosofia pedagógica sempre funcionou de forma livre e democrática, ou seja, todos tinham espaço para se expressar e destacar seus pontos de vista. Esse movimento dá “voz” às crianças, que vinham de silenciamentos causados pela violência.

A educação e a imersão cultural permitiam aos meninos e meninas mergulharem em um espaço de conhecimento e expressão através da arte, esporte e etc. Paulo Freire (1989), afirma que o homem é um ser histórico, constituído socialmente, que se constrói e aprende através de interações com o meio ao qual está inserido, ou seja, indivíduos pertencentes ao mesmo local e tempo. Criar um ambiente acolhedor não só de corpos, mas de histórias e de vida, e proporcionar a possibilidade de novos caminhos futuros parece ser um dos principais fatores que contribuíram para o sucesso do projeto. Dessa forma, de acordo com Freire (1989), é preciso ter em mente que a educação é fundamental para uma vivência livre do indivíduo. Ele fala que a “leitura de mundo precede a leitura da palavra” (FREIRE, 1989, p. 9).

Assim, nota-se que cada criança já tinha uma vida antes da instituição e que tais vivências precisam ser respeitadas e valorizadas. Uma das práticas que ilustram o respeito a singularidade era o fato de que ao receberem crianças novas, nunca lhes era perguntado nada sobre o passado. Cícero afirma: “Eu não pergunto as minhas crianças o porquê elas estão ali, se estão é porque precisam”.Era como se as crianças nascessem naquele momento dentro daquela família. O respeito era um pilar dentro da instituição, pois para inserir educação e cultura era preciso antes de tudo respeitar as singularidades, pois uns iriam para o esporte, outros para a música, lutas, arte e etc. Outra frase de Cícero que revela a importância do respeito: “Não existe forma elaborada, tem que haver respeito. Basta ter carinho. A questão fundamental é o respeito. Cada um respeitar o outro da maneira que ele é.”.

Respeitar a individualidade é o primeiro caminho para a liberdade e construção da escolha de sonhar. Perdigão (1995) diz que quando o sujeito tem consciência de que é livre e que todo ser é livre para ser aquilo que deseja dentro de suas possiblidades, ele consegue ver o outro além de uma barreira bloqueadora da sua liberdade e passa a respeitá-lo como responsável por sua vida. Entender que a sua liberdade se estende às suas possibilidades significa saber que não se pode passar por cima da liberdade do outro. Ou seja, é dessa maneira que o outro passa a ser um delimitador do “EU” e não limitador.

Diante da maneira com a qual o Santa Clara se organizava, podemos dizer que ele trazia em si uma característica muito particular de funcionamento que é a autoanálise e a autogestão, termos utilizados por Baremblitt (1992). Para este autor, a autoanálise é o movimento reflexivo do coletivo a fim de compreender suas dificuldades e potencialidades. Autogestão é a administração desse coletivo pelos seus participantes, em um regime democrático onde todos participam das decisões administrativas em igualdade de condições. A autogestão e autoanálise fundam-se na liberdade, pois significa que essa instituição permitia que seus membros a afetem e sejam afetados por ela, ao ponto de encontrar novas saídas para questões pertinentes a relações comunitárias institucionais.

Erthal (2004) também fala desse processo de autoanálise dando um enfoque no indivíduo, a que chama de autoconsciência, “[...] expressão própria do indivíduo como ser-no-mundo, é o que lhe confere identidade” (ERTHAL, 2004, p. 64). Ela atrela a autoconsciência a liberdade, pois quanto maior o conhecimento de si, maior é a chance de uma escolha livre e coerente para o que é o melhor para o indivíduo ou grupo: “Quanto mais o indivíduo tiver consciência dessas condições, mais ele é livre, pois é através da autoconsciência que ele aumenta sua liberdade de escolha” (ERTHAL, 2004, p. 65).

Os processos de autoanálise, autoconsciência e autogestão surgem mediante uma atitude reflexiva que pode acontecer a partir de vários processos. Porém, baseados em Freire (1999), salientamos que a educação é um potencializador reflexivo. Segundo este autor, uma pedagogia deve ser exercida na esperança e se afirmar na autonomia, raiz fundadora dessa práxis (educação), que levaria a humanidade aos caminhos da liberdade: “a educação deve estimular a opção [...] deve ser desinibidora e não restritiva”(FREIRE, 1999, p. 28). Para Freire (1999), o homem e a mulher são os únicos seres capazes de aprender com alegria e esperança, na convicção de que a mudança é possível. Aprender é uma descoberta criadora, com abertura ao risco e à aventura do ser, pois ensinando se aprende e aprendendo se ensina:

Entrou aqui, a criança teria muito mais esperança para viver, outras expectativas, dávamos um choque de realidade, confiança, respeito, boa vontade. É tão fácil você transformar esse pais, só força e boa vontade, eu aprendi isso com eles, essa linha de dar e receber. Acho que o clique é esse. Dormíamos na mesma casa e convivíamos, uma relação mutua de respeito, não tinha arma, cassetete, nem nada disso. (CÍCERO).

Nessa fala acima, bem como nas muitas horas de conversas e entrevistas formais com o casal, Cícero mostra a importância de confiar. Tal confiança era fundamental para o acolhimento e a experiência de pertencimento dentro do Santa Clara, dado que muitas crianças já haviam passado por rotinas de criminalidade e outras formas de violência. A boa vontade se manifestava através da paciência de ser provado a todo momento pelos meninos e meninas, até eles terem a certeza de que aquelas pessoas que os acolhiam não iriam abandoná-los novamente.

Todos os elementos que influenciam a capacidade de sonhar dentro do Santa Clara interagem em rede, de alguma maneira vinculados. Para a implementação de uma educação e cultura baseada na proposta de Paulo Freire, que visa trazer autonomia, pensamento crítico e esperança, se faz amplamente necessário o respeito pela história de cada criança e a desconstrução do estereótipo do medo e violência.

Como afirma Zamora (2004), a prática comunitária visava integrar a autonomia dos sujeitos, incorporando as singularidades através das vivências coletivas. Eliete conta um pouco desse processo de singularidade, incorporada ao coletivo favorecendo o ato de sonhar:

O que a gente sempre colocou como base, e também tem a ver com a liberdade, é a questão do sonho, abrir espaço para a criança pensar alguma coisa. O menor sonho possível. A gente começou a trabalhar o sonho, praticando um Natal inusitado para eles, que era a escolha de um presente. No começo muito simples, mas nos últimos anos era sonho mesmo, se eles pedissem uma bicicleta eles ganhavam. (ELIETE).

Com o auxílio de pessoas amigas próximas e “padrinhos”, o Santa Clara promovia o chamado “Natal inusitado”, que funcionava como exercício de sonhar para crianças que nunca tiveram a oportunidade de vivenciar essa experiência, pois o presente era demasiadamente pesado. Eliete relata que dificilmente havia alguma briga ou inveja dos presentes dos irmãos, pelo fato de a escolha ser individual, logo cada um era responsável pelo que ia ganhar. Notamos como a escolha consciente equilibra as relações, a responsabilidade de decidir o que ganhar evitava qualquer tipo de briga ou de sensação de diferenciação. De uma maneira lúdica, eles conseguiam sonhar, escolher, se responsabilizar e se alegrar com o fruto de suas escolhas e mesmo das escolhas alheias.

Frankl (1981) destaca esse movimento como um processo rumo ao descobrimento de uma essência existencial. O autor salienta que para chegar a uma consciência plena se faz necessário a experiência da responsabilidade, por isso, é preciso deixar que a pessoa opte pelo que ou perante quem ele se julga responsável.

As experiências vividas no Santa Clara permitiam a construção de crianças e adolescentes mais livres e capazes de se construir de forma mais coerente e responsável. É importante ressaltar que todo o movimento de educação, respeito, cultura e responsabilidade favorecem a uma reconstrução da autoimagem e autoestima. Pode-se imaginar o tamanho do desvalor que sentiam as crianças que lá chegavam, o quanto já se relacionavam com a imagem de abandono, sobrevivência, medo e agressividade.

Acolher e respeitar as histórias foi o primeiro passo; educar o segundo, onde abriam-se as possibilidades para uma autorreflexão mais profunda e uma nova visão de mundo. Pensar no futuro foi fundamental para a construção de sentido de vida e, por consequência, de todo esse caminho, as crianças que por lá passaram, em sua maioria, tiveram uma reestruturação no campo da autoimagem e autoestima.

Erthal (2004) afirma que é somente pela experiência de um novo aspecto de si, negado ou não percebido, em um ambiente livre de pressão e com autoaceitação, que se pode adotar tal vivência como sendo uma parte de si. A autora ressalta ainda que para isso acontecer, às vezes, o sujeito precisa da ajuda de outras pessoas (especiais para ele), para acessar expressões de seus valores originariamente positivos, que tem a ver com suas reais necessidades. Todo esse movimento chama-se autoconhecimento (ERTHAL, 2014, p. 84). Em outras palavras, o Santa Clara conseguia, ou procurava conseguir, através da sua forma de acolhimento, criar um espaço de autoconhecimento através dos caminhos citados acima, viabilizando a todos os seus membros a possibilidade de sonhar e se movimentar em direção a esses objetivos.

 

Considerações Finais

Você tendo oportunidade de voar, não voar no sentido de fazer o que quer, de sonhar, de apostar no seu sonho. Não existe prisão pra quem tem um sonho (CÍCERO).

Frente a todas as discussões apresentadas, pode-se perceber que mesmo em meio a uma experiência profunda de sofrimento, abandono e violência, existe a possibilidade de melhora e ressignificação das histórias de vida. O Santa Clara procurou mostrar que, independente das dores físicas e psíquicas que as crianças vivenciaram tão cedo, sempre existe a possibilidade de novos caminhos quando se é possível sonhar. Como afirma Cícero, “não existem prisões para quem tem um sonho!”. Parafraseando Frankl (1981), quando encontramos sentidos para a nossa existência, em muitos casos nem mesmo um campo de concentração, uma prisão ou o abandono é capaz de nos privar de nossa liberdade interna! E é essa experiência de liberdade, expressa de maneira consciente e refletida, que permitia as crianças e adolescentes sonhar com novos futuros.

Esse processo se construiu a partir da inserção ao meio social e valorização da educação, cultura e respeito, sempre empregada de forma a reconhecer a importância de cada criança. Para concluir esse trabalho destacarei um conceito sempre presente na fala de Cícero e Eliete: o amor.

O amor é a única maneira de captar outro ser humano no íntimo da sua personalidade. Ninguém consegue ter consciência plena da essência última de outro ser humano sem amá-la. Por seu amor, a pessoa se torna capaz de ver os traços característicos e as feições essenciais do seu amado; ela vê o que está potencialmente contida nele, aquilo que ainda não está, mas deveria ser realizado (FRANKL, 1981, p. 136).

Podemos afirmar que a capacidade de amar aqueles que por lá passaram era o grande diferencial da iniciativa, pois através desse investimento afetivo eles conseguiam encontrar potencialidades adormecidas, gerando como fruto principal dos sonhos, a esperança, dando assim, novos contornos à experiência de acolhimento infantil. Se formalmente o Santa Clara era uma instituição, na prática, era o oposto dos internatos e reformatórios do tipo FEBEM; o oposto da impessoalidade e abandono dos orfanatos e mesmo de muitos abrigos. Com isso terminamos com a seguinte questão: Por que não sonhar com uma nova modalidade de acolhimento pautado na liberdade, educação e amor?

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Recebido: 24/05/2017
Aceito: 30/07/2017
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