MACABÉA: A HORA DA ESTRELA
Clarice veio de um mistério.
partiu para outro.
Ficamos sem saber a
essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.
Carlos Drummond de Andrade
Clarice Lispector, nascida Haia Pinkhasovna Lispector, em Tchetchelnik, na Ucrânia, parte da URSS, em 10 de dezembro de 1920, morreu no Rio de Janeiro, em 9 de dezembro de 1977, judia, escritora, jornalista, poetisa.
Terceira filha de Pinkouss e de Mania Lispector ―a família enfrentou pogroms, por isso, veio para o Brasil; Clarice chegou a Maceió (Alagoas) com apenas dois meses de idade, em fevereiro de 1921, com seus pais e suas duas irmãs, Elisa e Tânia. Sempre se declarou brasileira (por adoção), sem nenhuma lembrança do torrão natal: “Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada de colo”. Clarice Lispector envia uma carta de 3 de junho de 1942, a Getúlio Vargas, solicitando-lhe o pedido de naturalização:
Quem lhe escreve é [...] uma russa de 21 anos de idade e que está no Brasil há 21 anos [...]. Que não conhece uma só palavra de russo, mas que pensa, fala, escreve e age em português, fazendo disso sua profissão e nisso pousando todos os projetos do seu futuro, próximo ou longínquo. Que não tem pai nem mãe [...] e que por isso não se sente de modo algum presa ao país de onde veio, nem sequer por ouvir relatos sobre ele. Que deseja casar-se com brasileiro e ter filhos brasileiros. Que, se fosse obrigada a voltar à Rússia, lá se sentiria irremediavelmente estrangeira, sem amigos, sem profissão, sem esperanças. (1)
Pinkouss resolveu que todos deviam mudar de nome: ele, pai, passou a Pedro; Mania, Marieta; Leia, sua irmã, Elisa; Haia, Clarice; só quem permaneceu com o nome original foi Tânia.
Mostrando, na prática da vida, toda sua brasileirice, Clarice, em sua primeira viagem como esposa de diplomata, morou na Itália e tornou-se voluntária junto ao corpo de enfermagem da Força Expedicionária Brasileira (FEB) ― uma de suas tarefas, era escrever cartas para os familiares dos feridos de guerra.
Tem no romance, A hora da estrela (2) , um divisor de águas, profundas e opacas de um lado — o social —, do outro, profundas, porém, cristalinas — pessoais — a proletária Macabéa, que é protagonista do relato, datilógrafa, alagoana, que migrou para o Rio de Janeiro.
Publicou esse livro em outubro de 1977, com cinquenta anos e seis anos, poucos meses antes de falecer, — Clarice inicia uma nova fase de sua carreira. Nascia uma nova e vigorosa escritora do povo, da realidade brasileira do fim do século XX, foi escrito, quando a escritora lutava pela vida, batalhando contra um câncer de ovário ― perdeu, morreu dois meses após a publicação do escrito. Foi sepultada no Cemitério Israelita do Caju. A dedicação à literatura espelha-se no fato de que até o seu último suspiro, na manhã de seu falecimento, sedada, ditava frases para a inseparável Olga Borelli. Tanto ela quanto Guimarães Rosa morreram no ato de escrever, de criar. Os temas sobre a vida e a morte iluminam o fim do demiurgo e o da protagonista.
Sua literatura é marcada por duas fases. A primeira (iniciada com Perto do coração selvagem), a das dores existenciais banais do pequeno-burguês, do não-sei-o-que-vou-fazer-da-minha-vida. Uma alegoria da solidão, um leitmotiv, que rescalda, isolamento de pessoas que têm um ego interior, denso, estranho, que vivenciam uma existência interior deformada, de fuga à realidade.
A segunda (apenas A hora da estrela), a solidão dos proletários, aguçada pelo morar mal, comer mal, vestir mal, ganhar mal, uma miséria concreta, real e objetiva, resultante de uma exploração consciente e organizada pela burguesia e pelo latifúndio. Pessoas que reagem tipicamente diante dos acontecimentos do dia a dia de nossa sociedade, indivíduos comuns que vivem situações comuns.
O insulamento, em A hora da estrela, avulta ainda mais pela dificuldade de comunicação: "Ela falava, sim, mas era extremamente muda" (AHE, 36). Esse paradoxo, fala/mudez, é um contraditório irônico e cômico que dói no leitor, como uma bofetada.
Clarice captou, com rara acuidade, o isolamento, a alienação da protagonista, num emaranhado que evita sua integração na sociedade:
Pois que a vida é assim: aperta-se o botão e a vida acende. Só que ela não sabia qual era o botão de acender. Nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável (AHE, 36).
O problema da comunicação torna-se mais chocante quando se encontram pessoas-ilhas dentro desse universo alienado: Macabéa e o doutor. Um diálogo de surdos. A ternura e a cupidez. O médico, "desatento", "que achava a pobreza uma coisa feia", detestava os pacientes, "desatualizado na medicina e nas novidades clínicas mas para o pobre servia", queria "ter dinheiro para fazer exatamente o que queria: nada" (AHE, 77).
– Você está com começo de tuberculose pulmonar.
Ela não sabia se isso era coisa boa ou coisa ruim. Bem, como era uma pessoa muito educada, disse:
– Muito obrigada, sim? (AHE, 82).
A emoção é o condicionamento de toda a obra. A progressão do demiurgo, na direção da escritura do povão, era como a roda da história, não voltaria jamais. Teríamos, como disse Engels a respeito de Balzac, mais uma vitória do realismo na literatura brasileira.
O título era Humilhados e ofendido. Ficou pensativa. Talvez tivesse, pela primeira vez, se definido numa classe social. Pensou, pensou e pensou! Chegou à conclusão que, na verdade, ninguém jamais a ofendera, tudo o que acontecia era porque as coisas são assim mesmo e não havia luta possível, para que lutar? (AHE, 50).
Na nova temática, Clarice foi buscar, no macrocosmo brasileiro, ― mundo empírico ―, um semovente para o seu microcosmo, ― mundo do imaginário ―, a representante da miséria toda: uma proletária nordestina, uma indesejada da sorte, pária dessa sociedade capitalista selvagem, injusta e desumana, onde o pauperismo é dividido autocraticamente — a maioria tem-no em doses maciças: “Volto à moça: o luxo que se dava era tomar um gole frio de café antes de dormir. Pagava o luxo tendo azia ao acordar (AHE, 41).
O drama de Macabéa é o da grande maioria da nossa população. Um padrão que interessa, na medida em que é universal, espraiando-se por toda nossa realidade, um universal concreto e vívido, acontecendo no agora de todos os deserdados.
Macabéa, personagem quase caricata, tipo servente da classe média, da burguesia e do latifúndio, moradora dos barracos das favelas, dos cubículos partilhados por vários viventes, um gueto apertado e sufocante, os sem-teto-lar-dinheiro-justiça, sem-nada, nas ruas hostis de nossas cidades ocidentais-cristãs. Bernard Shaw, socialista e sarcasta, concluiu que, no capitalismo, o pobre tem um direito inalienável: só ele pode dormir debaixo da ponte...!
Depois [de Maceió] ― ignora-se por que ― tinham vindo [ela e a tia] para o Rio de Janeiro, o inacreditável Rio de Janeiro, a tia lhe arranjara emprego, finalmente morrera e ela, agora sozinha, morava numa vaga de quarto compartilhado com mais quatro moças balconistas das Lojas Americanas [...] num velho sobrado colonial da áspera rua do Acre [...] (AHE, p. 37).
Clarice, através de um estilo personalíssimo, vai-nos trazendo informações acerca da protagonista. Verdadeiros achados. Tesouros de naturalidade. Arte maior. Didaticamente forma-se o quadro: "[Olímpico] – Você, Macabéa. é um cabelo na sopa. Não dá vontade de comer" (AHE, 73); “Eu gosto tanto de parafuso e prego e o senhor?” (AHE, p. 54); “– Você sabe se a gente pode comprar um buraco?” (AHE, p. 60);
Uma das marcas da mestria clariceana é a fixação de Maca pela cultura (quase sempre inútil) da Rádio Relógio Federal — uma das facetas mais tocantes do romance:
Foi assim que aprendeu que o Imperador Carlos Magno era na terra dele chamado Carolus Verdade que nunca achara modo de aplicar essa informação (AHE, 46).
– Você sabia que na Rádio Relógio disseram que um homem escreveu um livro chamado Alice no país das maravilhas e que era também um matemático? Falaram também em “élgebra”. O que é que quer dizer “élgebra?" (AHE, p. 6l).
Entre um diálogo e outro, didaticamente vai-se formando o quadro: "Macabéa fingia enorme curiosidade escondendo dele [Olímpico] que ela nunca entendia tudo muito bem e que isso era assim mesmo"(AHE, p. 55).
Para acentuar a desatenção de Macabéa para as coisas mais corriqueiras da vida, numa conversa com Olímpio, ela diz-lhe que ouvira uma música linda. Ele pergunta-lhe se era samba: "– Acho que era. E cantada por um homem chamado Caruso que se diz que já morreu. A voz era tão macia que até doía ouvir. A música chamava-se ‘Una furtiva lacrima’. Não sei por que eles não disseram lágrima"(AHE, p. 62).
Os proletários de A hora da estrelasão sós, não são solidários nem têm solidariedade de ninguém, não há a justaposição dialética indivíduo-sociedade, ego-coletividade, indivíduo-classe social. Solitários, não podem lutar contra as regras injustas de um jogo que têm de sofrer ― o campo da justa e as regras da burguesia.
Os despossuídos, em A hora da estrela, ou aceitam passivamente tudo que lhes é imposto, ou passam a agir como o autêntico "picareta", o pícaro, o sobrevivente, como Olímpico. Karl Marx cognominou essa escória de lumpenproletariado,
termo que traduz o alemão lumpenproletariat, como "o lixo de todas as classes", "uma massa desintegrada", que reunia "indivíduos arruinados e aventureiros egressos da burguesia, vagabundos, soldados desmobilizados, malfeitores recém-saídos da cadeia [....] batedores de carteira, rufiões, mendigos", etc. (3)
No mundo capitalista, sendo os valores morais degradados, deteriorados, os lumpenproletários medram nesse caldo de cultura. Os olímpicos e suas peripécias, os pícaros, os anti-heróis, manhosos, cínicos, inescrupulosos, mas determinados a sobreviver e a tirar todas as vantagens possíveis de tudo e de todos: “Olímpico pelo menos roubava sempre que podia e até do vigia das obras onde era sua dormida” (AHE, p. 70).
Procuram realizar-se, desejam sair da condição de servos, querem ser patrões, proprietários, querem tornar-se o açoite dos seus iguais. Como, numa premonição, afirma Olímpico: "Sou muito inteligente, ainda vou ser deputado".
E não é que ele dava para fazer discurso? Tinha o tom cantado e o palavreado seboso, próprio para quem abre a boca e fala pedindo e ordenando os direitos do homem. No futuro, que eu não digo nesta história não é que ele terminou mesmo deputado? E obrigando os outros a chamarem-no de doutor (AHE. 57).
O pícaro tem um projeto pessoal, quer ultrapassar metas, um ideal individual e não de classe. Os olímpicos, concretizando seus planos, não afetarão o conjunto da sociedade, e a justiça continuará legal, mas amoral, injusta, a alienação perpetuada: “Não se arrependeu um só instante de ter rompido com Macabéa, pois seu destino era o de subir para um dia entrar no mundo dos outros. Ele tinha fome de ser outro” (AHE, 79).
Quando analisamos o circo político brasileiro, não concordo com os cientistas que afirmam que, após a próxima hecatombe nuclear, próxima e última, só sobreviverão os ratos e as baratas. Discordo, pois acrescentaria muitas das figuras sórdidas que campeiam na nossa burguesia — os de dentro e os de fora do aparelho do estado, mas todos participando da mesma maracutaia.
Essa crítica política de Clarice Lispector não nos lembra Graciliano Ramos em seus melhores momentos? Essa a Clarice que morrendo, e sabendo que morria, deixa-nos esse testamento literário, entristecendo-nos mais ainda, por perdermos uma escritora que era, sem sombra de dúvida, um dos grandes demiurgos do Brasil no século XX.
Rua do Acre. Mas que lugar. Os gordos ratos da rua do Acre. Lá é que não piso pois tenho terror sem nenhuma vergonha do pardo pedaço de vida imunda (AHE, 38).
Observemos o "calembour", o jogo de palavras, que Clarice arma, quando fala dos "gordos ratos da Rua do Acre": os ratos representam-se a si mesmos, bichanos nojentos, mas, também, metaforicamente. Clarice denuncia a burguesia mercantil, que domina as trocas comerciais de todo o Estado do Rio de Janeiro.
Os personagens vivem uma existência medíocre, encarcerados dentro de si mesmos, aprisionados pela estagnação social, com horizontes curtos e paupérrimos, reforçando a alegoria da solidão, da alienação e da marginalização: “– Você sabe se a gente pode comprar um buraco?” (AHE, p. 60).
A hora da estrela tem uma atmosfera quase irrespirável de miserabilidade trágica, de fatalismo irreparável — a realidade econômica, o elemento gerador de todos os conflitos. No seu caudal, envolve-se tudo, o interior e o exterior dos personagens, a sociedade burguesa determinando, impondo seu ideário, e o proletariado não tendo como enfrentá-la, a não ser que se mudem as regras do jogo. Um lado, com a clara percepção da defesa intransigente de seus privilégios; o outro, sofrendo a dura discriminação social que o levará, um dia, a explodir na revolucionária determinação reivindicatória.
O gênio de Clarice traz-nos um fragmento de tempo, em um ambiente acanhado, com personagens mesquinhos, descerrando o painel de toda a realidade de nosso Brasil, vê-se claramente a conexão da obra com o seu tempo, as condições históricas de sua concretização.
Sergei Mikhailovich Eisenstein (1898-1948) dizia que, quando se assiste a um filme, vê-se, na tela, a forma, e, ao mesmo tempo, fazemos, inconscientemente, sem nenhum comando intelectual, uma confrontação com a contra-forma, que é a situação política, social, econômica, financeira, religiosa etc. que cerca aquela obra artística ― um trabalho teórico do diretor soviético que teria o título de Cinematismo (4) ―, podemos declarar o mesmo de qualquer texto de ficção. Quem ler esse romance terá uma visão da realidade do migrante nordestino, uma visão que é uma relação entre o mundo empírico e o mundo imaginário, relação mediatizada pela mundividência e pela mundivivência de Clarice: "Madama Carlota havia acertado tudo, Macabéa estava espantada. Só então vira que sua vida era uma miséria" (AHE, 94).
Comove-nos a visão humanista da escritora, grito de desespero contra a solidão e a alienação mutiladoras do indivíduo, a luta pelo homem integral, pela felicidade dos despossuídos.
Em A hora da estrela, a criadora, defendendo a humanidade, coloca-se à frente, na vanguarda do proletariado. A sua ótica, a do grupo social amesquinhado, uma visão crítica da sociedade burguesa.
O epílogo de A hora da estrelaaproxima-se do de Quincas Borba. Doisgrandes ficcionistas, dois grandes demiurgos, dois grandes romances.
Poucos dias depois morreu... Não morreu de súbdito nem vencido. Antes de principiar a agonia, que foi curta, pôs a coroa na cabeça, ― um coroa que não era, ao menos um chapéu velho ou uma bacia, onde os espectadores palpassem a ilusão. Não, senhor; ele pegou em nada, levantou nada e cingiu nada; só ele via a insígnia imperial, pesada de ouro, rútila de brilhantes e outras pedras preciosas. O esforço que fizera para erguer meio corpo não durou muito; o corpo caiu outra vez; o rosto conservou porventura uma expressão gloriosa.
– Guardem a minha coroa, murmurou. Ao vencedor...
A cara ficou séria, porque a morte é séria; dous minutos de agonia, um trejeito horrível, e estava assinada a abdicação. (5)
Em A hora da estrela, no final, Macabéa vai à cartomante. Esta dá-lhe prognósticos felizes. Ela sai, é atropelada e morta por um Mercedes Benz: "Vencera o Príncipe das Trevas. Enfim a coroação" (AHE, 102).
Macabéa, após uma vida sem perspectivas, de sacrifícios, encontra o "seu maravilhoso destino", augurado pela cartomante, madama Carlota. Morre certa da felicidade alcançada. Tanto ela quanto Rubião expiram na glória imaginada, para eles, realizada.
E enorme como um transatlântico o Mercedes amarelo pegou-a [...].
Macabéa ao cair ainda teve tempo de ver, antes que o carro fugisse, que já começavam a ser cumpridas as predições de madama Carlota, pois o carro era de alto luxo (AHE, p. 96).
Nas palavras de Machado e de Clarice, impressionam-nos o humor negro e a ironia, pois Rubião e Macabéa sentem a centelha da vitória, pirrônica, para, logo depois, serem destruídos pela chegada da “Indesejada das gentes” (6).
Esse humor de Clarice aparece com força no próprio título do livro: A hora da estrela ― aundécima hora da travessia de todos torna-se para os proletários a hora em que se tornam a estrela do espetáculo de sua própria morte: "a hora de estrela de cinema de Macabéa morrer" (AHE, 100).
Para Clarice Lispector, a palavra não é apenas um significante e um significado, mas, antes de tudo, um símbolo, com validade por si mesmo dentro do contexto, contudo também representativo de um estado de existência no momento da escritura.
Keats ensinou-nos: “O caráter do poeta é tudo e nada [não tem eu]. Um Poeta é a coisa menos poética do mundo, porque não tem identidade — está continuamente a se enformar e a preencher outra pessoa” (7).
Isto não acontece em A hora da estrela, pois nele encontramos a própria Clarice Lispector, deparamo-nos com os seus males físicos e mentais, retratando-se no seu término existencial, como pessoa empírica e criatura demiúrgica. Revelando-nos o amor pela literatura e a presença ameaçadora da morte.
Em A hora da estrela, vemos, sentimos, sofremos, vivenciamos Clarice Lispector. Morremos com sua breve despedida do globo terráqueo. Encontramos a minoria judaica, o seu espírito desconfiado e sinuoso, como disse Érico Veríssimo; a procura da identidade, principalmente, através da procura do saber como os outros a veem; o fatalismo diante da existência; o Destino, presidindo todas as coisas; a tragédia e o instinto de sobrevivência.
Esbarramos com o fim da travessia de Clarisse, a doença terminal, a inconformação do ser humano que sabe que tem de partir, mas que luta, para continuar se doando.
E agora — agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas — mas eu também?!
Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.
Sim (HE, 104).
Observemos a pontuação de Clarice: "Mas — mas eu também?!" Ela também? A dúvida (?) e a confirmação (!). Sim, ela também! Podíamos perguntar: Mas nós também?!
Os morangos conduzem-nos ao hino homérico, a Demetér e ao conhecimento de que as frutas dos vivos, em particular a romã, só podem ser comidas pelos que ainda estão apartados da morte. Ela, apesar do perigo do Estige, ainda podia consumi-las, sem o perigo de ser jogada aos fogos do Inferno.
A interpretação psicológica é válida? É válido desvendar o processo criador a partir da figura empírica, do ser social do escritor? Dependendo da obra e do autor... Devemos desmitificar essa história do trabalho crítico puramente técnico e isento de emoção. Um trabalho de base psicológica deste tipo não valora qualquer tipo de literatura, mas ilumina-o, esclarece o processo criador, torna-nos cúmplices da autora e, por que não? coautores.
A leitura de qualquer texto de Clarice é sumo de muita taquicardia, muito trabalho e muita comoção! Concordo com Harold Bloom, quando afirma que, se conhecermos o autor, a leitura será mais prazerosa, mais envolvente, mais catártica... Um seco analista literário diria que essas informações não interessam à literatura. Dizemos o contrário: interessam sim!
Repetindo-me enfaticamente, essas questões genéticas não tornam desprezível o julgamento estético da literatura, que existe e subsiste por suas qualidades de obra de arte e não pela análise da psicologia do escritor. A obra de ficção desvela-nos a realidade humana, uma realidade mediada pela poética do escritor. O texto sempre fala pelo seu autor. O autor fala pelos conteúdos políticos, sociais, históricos, econômicos e religiosos de seu tempo. Uma interação de reciprocidade onde o passado, o presente e as possibilidades do futuro se imbricam.
Clarice incorporou ao texto a sua mensagem de despedida da vida e do anseio de permanecer entre nós, os vivos de hoje... Clarice coloca, em A hora da estrela, seu substrato humano, descobre-se, desnuda-se. alegria e dor, felicidade e tristeza, "pois por enquanto é tempo de morango" (AHC, p. 104).
A um texto instigante como esse, podemos acrescentar as observações de Freud em “Moisés de Miguel Ângelo”:“Toda autêntica criação poética deve decorrer de mais de um motivo, mais de um impulso no pensamento do poeta, e deve admitir mais de uma interpretação”.
A obra aberta dá margem a outras interpretações, todas válidas, desde que articuladas com o texto, considerando-se ainda mais que, se nenhum objeto pode ser inteiramente descrito, também havemos de considerar que não há limites para a interpretação do texto literário.
Conhecendo a Clarice Lispector do mundo empírico, conhecendo a Macabéa do mundo imaginário, envolvemo-nos, fruimos, adentramos o espírito de A hora da estrela. Naqueles momentos da leitura, mesmo depois, rodeados por aquele halo mágico da criação mística, somos Clarice e Macabéa, Clarice e Rodrigo, somos Glória e Olímpico, porque somos o todo e a parte do romance.
O todo sem a parte não é todo.
A parte sem o todo não é parte.
Mas se a parte o faz todo, sendo parte.
Não se diga, que é parte, sendo todo.
(Gregório de Matos)
Faço minhas, as palavras de um personagem das Histórias de calendário, peça de Bertold Brecht:
Já observei que afastamos muita gente da nossa doutrina por termos para tudo uma resposta-feita. Não seria conveniente estabelecermos em benefício da nossa propaganda, uma lista de todas as questões que nos parecem ainda não estar solucionadas?
Pegando esse gancho de Brecht, dirijo-me aos dois ou três leitores desse pequeno ensaio, conclamo-os a pensarem nas montanhas de lacunas, de gaps, de buracos sem fundo, que este trabalho está mostrando, a procurarem soluções às questões infinitas que vocês poderão criar, encontrar respostas, detectar verdades, pensando na epígrafe de Freud.
Clarice Lispector transmite-nos a ideia de que escrever é mistério, enigma: escrever é magia, encanto; escrever é passar do aquém para o além-túmulo, deixando testemunho. Mesmo a pequenina Macabéa, o espetar de um alfinete na anca do elefante capitalista, incomoda, e, por isso, os demiurgos, todos, os ótimos, os bons, os regulares, os péssimos, todos aqueles que criam literatura a partir da folha de papel em branco, são temidos, e, por isso, afastados, desprezados, pela classe dirigente, porque são perigosos, muito perigosos.
Mas quando escrevo não minto. Que mais? Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim (AHE, 24).
A classe alta considera-a "um monstro esquisito", e di-lo com toda a razão, porque a escritora não faz parte do seu modo de produção — não faz porque não quer — a burguesia tem um projeto, a extorsão dos "outros". A classe média desconfia, porque tem medo, vive temerosa, no fio da navalha, entre o proletariado e a burguesia, desprezando o primeiro e invejando o segundo. O proletariado, completamente desorientado, desorganizado, avança num prato de comida, nunca num livro. Sabemos que é mais importante o que entra na cabeça do que tudo aquilo que pode entrar pela boca... mas vá-se argumentar nestes termos com um faminto...
A Macabéa de Clarice Lispector, digo, a Macabéa Brasileira do Brasil, representante de todos os deserdados de nosso mundo-cão, vagueia ao léu da sorte e do destino, passa pela vida como o ar, e confirma o truísmo de que "é fácil amar a humanidade, difícil é amar o próximo".
As Macabéas Brasileiras do Brasil reforçam a ideia de que o capitalista brasileiro desmente as palavras de Ricardo III: "Não há besta, por mais feroz que seja, que não tenha um pouco de piedade".
Hemingway, em O velho e o mar, declarou que "o povo pode ser destruído, mas nunca derrotado". Na mesma linha de raciocínio — porque “o poeta é a antena do povo” (Ezra Pound), assim, nada os separa e tudo os une, seja lá qual for a latitude, a nacionalidade ou o tempo de vida — Clarice cunhou palavras que marcam a existência de Macabéa e a de todos nós: “O que queria dizer que apesar de tudo ela pertencia a uma resistente raça ana teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito ao grito” (AHE, 96).
Clarice Lispector criou Macabéa, entretanto não fez literatura panfletária. Vemos que Friedrich Engels e Clarice caminham juntos, quando lemos a carta do filósofo a Margaret Harkness, inícios do ano de 1888, acerca do romance A city girl:
se tenho alguma crítica a fazer, será talvez a de que seu romance não é bastante realista. O realismo, para mim, implica, além da verdade do detalhe, a apresentação verdadeira de personagens típicos em circunstâncias típicas.
Macabéa e todos os personagens que a rodeiam agem tipicamente em situações típicas, sejam proletários ou não, todos são criaturas tão vivas, ou mais, do que as que nos cercam no nosso medíocre viver. Clarice apresenta o problema, não dá a solução, porque ela conta a vida de uma personagem e, em momento algum, pretende escrever uma tese política.
De qualquer maneira, àqueles que acham que Clarice perverteu sua escritura com A hora da estrela oferto o escrito de Bertolt Brecht que encerra esse caleidoscópio:
O ANALFABETO POLÍTICO
O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais.
NOTAS / REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
(1) MONTERO, Teresa (Org.) Correspondências/Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. p. 33.
(2) LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1977; daqui em diante, indicada no texto pela sigla AHE, seguida da página.
(3) BOTTOMORE, Tom (ed.). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. p. 223.
(4) AVELLAR, José Carlos. O olho que pensa. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 3 fev. l982.
(5) ASSIS, Machado de. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992. p. 806.
(6) BANDEIRA, Manuel. “Consoada”
(7) FORMAN, M. R. (org.). The letters of John Keats. Oxford University Press, 1935.
Recebido: 12/2011
Aceito: 12/2011