LIPIS

MICHEL DE CERTEAU 25 ANOS DEPOIS: ATUALIDADE DE SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA UM OLHAR SOBRE A CRIATIVIDADE DOS CONSUMIDORES

MARIA INÊS GARCIA DE FREITAS BITTENCOURT Doutora em Psicologia Clínica. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio. Pesquisadora do LIPIS. E-mail: mines@puc-rio.br


Resumo:  O artigo resume algumas das principais contribuições de Michel de Certeau à metodologia no campo das ciências sociais e humanas, tomando como foco a obra “A invenção do cotidiano”. Destaca-se  a possibilidade de se considerar o consumo por um prisma criativo, graças a uma metodologia que, incluindo o pesquisador como alguém que também faz parte do campo estudado, evita representações eruditas distanciadas da realidade trivial.
Palavras chave: sociedade de consumo, criatividade, metodologia das ciências sociais.

MICHEL DE CERTEAU 25 YEARS LATER: THE PRESENT OF HIS CONTRIBUTIONS TO A LOOK ABOUT CONSUMER'S CREATIVITY

Abstract: This article describes some methodological contributions by Michel de Certeau to the research in social sciences, focusing on his work “Invention of everyday life”. A creative behavior is possible for consumers, when appropriate methods allow the researcher to be close to his object, avoiding interpretations far from everyday reality.
Key words: consumer society, creativity, social sciences methodology.

INTRODUÇÃO

Em 2011 completaram-se 25 anos desde a morte prematura de Michel de Certeau, autor que deixou um legado extraordinário para a pesquisa em ciências humanas e sociais.

Mais conhecido no campo da História, Certeau nasceu na França em 1925. Inteligente e não conformista, ele foi um autor que buscou saciar sua imensa curiosidade através de uma sólida e variada formação, que incluiu  filosofia, letras clássicas, história e teologia. Ingressou na Companhia de Jesus em 1950, conciliando a vida religiosa com a  vida de um pesquisador  com interesse pelos métodos da antropologia, da lingüística e da psicanálise. Lecionou em Paris na Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales, assim como na Universidade da Califórnia. Deixou  uma vasta obra, abordando temáticas variadas sempre de maneira original e instigante.

Inicialmente seu interesse se voltou para questões  religiosas, resultando em trabalhos de pesquisa histórica sobre os textos místicos do Renascimento e da  época Clássica,  ou  ainda sobre o contexto e as causas sócio-históricas do fenômeno de possessão demoníaca ocorrido no século XVII na cidade de Loudun. Sensível ao significado dos eventos ocorridos na França em maio de 1968, dedicou-se ao estudo das transformações culturais ocorridas a partir destas manifestações,  com ênfase na questão do ensino nas universidades. Realizou  também importantes reflexões sobre historiografia, “ escrita da História” .Por fim,  Certeau é ainda autor de um importante trabalho de pesquisa intitulado “A invenção do cotidiano”, objeto do estudo que trazemos aqui como ilustração de seu “modo de fazer”.

Este trabalho, dividido em duas partes,  descreve as práticas cotidianas dos consumidores, procurando descrever o fenômeno “de dentro”. Ao captar as práticas no movimento da sua enunciação, a pesquisa de Certeau nos apresenta um panorama que resgata a criatividade dos homens comuns, tantas vezes desprezada nas teorias que tendem a colocar em relevo a dimensão de conformismo e submissão ao poder instituído.

A originalidade de Certeau como pesquisador aparece no seu estilo   caracterizado  por um pensamento que combina flexibilidade e rigor. Sempre na intenção de “trazer à tona as diferenças”,  trata-se de aplicar testes a hipóteses claramente enunciadas, mas sem aceitar que a “cientificidade” seja restrita  a certos campos de saber:

Como diz Luce Giard, colaboradora do mestre:

Atento ao rigor explícito de um método e de modelos teóricos, recusando a deixar-se aprisionar na prática de um único modelo ou a consentir na preeminência deste modelo, M. de Certeau tinha um gosto inveterado pela experimentação controlável na ordem do pensável. Não é então de se admirar sua desconfiança em relação a duas tendências, ou tentações, comuns às ciências sociais (...) a primeira dessas tendências está habituada a ver em ponto grande, compraz-se em enunciados solenes, emite um discurso generalista e generalizante. Esse tipo de discurso, tendo por natureza resposta para tudo, não se mostra embaraçado por nenhuma contradição, vive a se esquivar da prova do real e jamais admite uma possível refutação(...) A tese de Popper sobre o papel chave da  refutabilidade  o seduzia, por sua modéstia de asserção e pelo valor provisório que atribuía aos enunciados de verdade no interior de uma teoria(...) Quando uma hipótese enfim sobrevivia a esse batismo de fogo, a dificuldade se concentrava na pesquisa de campo (...)Por vezes, depois de semanas decepcionantes e insossas, a situação de repente se revertia, a exaltação se apoderava de nós, eis que milhares de pormenores contraditórios ganhavam sentido...  (1997:21-22)

A invenção do cotidiano

...)”É inútil determinar se Zenóbia deva ser classificada entre as cidades felizes ou infelizes. Não faz sentido dividir as cidades nessas duas categorias, mas em outras duas:aquelas que continuam ao longo dos anos e das mutações a dar forma aos desejos e aquelas em que os desejos conseguem cancelar a cidade ou são por esta cancelados”.
Ítalo  Calvino (2000: 36)

Opondo-se às visões que conferem, a priori, uma suposta passividade ao  sujeito contemporâneo, Michel de Certeau (1990) propõe  bases para uma outra compreensão das  organizações subjetivas dentro da configuração cultural instituída pela sociedade de consumo, partindo do princípio de que uma situação de controle não paralisa necessariamente a criatividade humana.

Deixando de lado a já mais que reconhecida possibilidade de sublimação própria dos criadores excepcionais (Freud, 1910) Certeau prefere rastrear nas práticas cotidianas dos homens comuns um  ágil movimento. Nossa linguagem popular as reconhece como indicadoras de “jogo de cintura”: trata-se de ações que podem se camuflar num emaranhado de artimanhas silenciosas, sutis, eficientes. Através delas,  pessoas comuns, tais como anônimos Mc Gyvers do cotidiano, procuram desenvolver maneiras próprias de sobreviver na selva das condições impostas pelo sistema econômico-social  com uma inventividade  evocadora do velho herói televisivo que transformava objetos banais em criativos meios de salvação.

Inúmeras realizações inventivas poderiam provar (segundo o autor, para aqueles que souberem ver) que as massas não são necessariamente tão obedientes nem passivas, mas podem praticar uma criatividade cotidiana, de forma a procurar viver da melhor maneira possível as injustiças da ordem social e a violência das coisas forçadas. A ordem imposta, que antigamente se referia aos ritos de celebração de crenças dogmáticas religiosas ou, mais recentemente, políticas, refere-se hoje ao consumo. Para Certeau, no entanto, mecanismos de resistência sempre foram exercidos ao longo do tempo, diferindo apenas quanto às  formas específicas assumidas de acordo com cada contexto sócio-histórico;  pois a distribuição desigual de forças é uma constante na história e as práticas de subversão sempre foram o  recurso dos mais fracos. Na cultura ordinária, na própria rede das determinações institucionais, insinua-se desde sempre um estilo peculiar de trocas, de invenções técnicas  e de resistência moral: “a ordem é enganada por uma arte”.

Crítico sutil dos efeitos das crenças consumistas, Certeau  também evita olhar para a sociedade de consumo como uma força irremediavelmente destrutiva da liberdade individual. Esta visão é tornada possível por uma metodologia que, incluindo o pesquisador como alguém que também faz parte do campo estudado, evita representações eruditas distanciadas da realidade trivial; reconhecendo que a especialidade se mistura com o trivial, torna-se possível reorganizar o lugar de onde se produz o discurso (1990:19, tradução nossa):

O trivial não é mais o outro (encarregado de validar a isenção do seu observador) ;é a experiência produtora do texto. A aproximação da cultura começa quando o homem comum se torna o narrador,  quando ele define o lugar (comum) do discurso e o espaço (anônimo) do seu desenvolvimento.

Na observação da mesma realidade onde outros autores tendem a colocar em relevo a dimensão de conformismo e submissão ao poder instituído, podem ser encontrados também indícios de uma re-apropriação saudável, criativa e pessoal do espaço e do uso das coisas; torna-se possível então empreender oresgate das artimanhas anônimas da arte de viver no mundo contemporâneo, numa invenção do cotidiano baseada em estratagemas sutis,  ou artes de fazer capazes de contornar a simples submissão aos objetos impostos e aos códigos estabelecidos.

Pode-se dizer que, procurando descrever o fenômeno “de dentro”, captando o movimento da sua enunciação, Certeau confere à palavra “consumo”  um significado diferente do que lhe é dado por outros autores, que o descrevem “de fora”. Nesta segunda perspectiva,  podem ser destacadas as interpretações do consumo focadas na aquisição de signos impostos, como faz Baudrillard, ou na reprodução de um tipo de  habitus, como postula Bourdieu, exemplos de autores que não pensam sobre a possibilidade da produção de um jogo original . Este é criado, de acordo com Certeau,  por maneiras de utilizar a ordem imposta (1990:51-68). Estas maneiras  permitem  que o indivíduo, sem sair do seu lugar, instaure de modo imprevisível a pluralidade e a criatividade, numa arte do “intermediário” que  bem poderia se aproximar dos conceitos winnicottianos de jogo e criação, situados numa zona de transicionalidade psíquica  (Winnicott, 1975). É importante frisar que se trata de visões teóricas diferentes, mas talvez complementares, pois os conceitos propostos por Winnicott descrevem do ponto de vista da experiência psíquica maneiras de apropriação pessoal dos elementos da realidade externa, observadas por Certeau no contexto da vida cotidiana.

A análise desta “arte”, tal como é  proposta por Certeau, se diferencia dos modelos teóricos que criam espaços (representados pelas diferentes disciplinas científicas) isolados  das circunstancias reais. Coloca-se assim em perspectiva crítica tanto o objeto de estudo (a cultura dita “popular”) quanto o lugar do pesquisador.

Inspirando-se na obra de Wittgenstein e enfatizando a relevância do destaque conferido pelo filósofo aos comportamentos e usos lingüísticos, Certeau questiona a divisão que se estabeleceu nas sociedades técnicas, entre as ”discursividades que regulam as especializações, estabelecendo divisões operatórias” e “as narratividades das trocas massificadas, que regulam a circulação numa rede de poder”. 

Certeau assume como base de sua metodologia uma atitude de compreensão isenta de qualquer julgamento de valor. As práticas cotidianas dos consumidores, adquirindo o status de táticas de resistência, são enfocadas no seu estudo empírico sob  categorias de análise como a economia do dom, referente aos “gastos generosos” que têm o sabor de transgressão numa economia que privilegia o lucro; a estética dos jeitinhos, que os considera como operações de artistas; a ética da tenacidade, referente às inúmeras maneiras de não ver a ordem estabelecida como lei, como sentido exclusivo ou como fatalidade.

Ao comparar o espaço da vida na sociedade contemporânea a um formigueiro, Certeau apenas constata uma mudança fundamental, que precisa ser aceita sem comparação de pesos ou medidas: trata-se de reconhecer que os antigos valores do  singular e do extraordinário foram simplesmente substituídos por “um novo tipo de heroísmo, enorme e coletivo”:    

Esta forma de sociedade começou com a submissão das massas ao controle das racionalidades niveladoras. Mas a onda subiu, atingiu os próprios criadores do sistema, invadiu as profissões liberais, os criadores literários, os artistas. Arrasta hoje na sua correnteza as obras outrora insulares, transformadas em gotas no mar ou em metáforas de uma disseminação de linguagem que não tem mais autor mas se torna o discurso ou a citação indefinida do outro. (1990:13  - tradução nossa)

Luce Giard (1990) pontua  que esta ”viagem empreendida através da vida comum, elogio da sombra e da noite” (a inteligência ordinária, a criação efêmera, a ocasião e a circunstância), ao levar em conta a realidade política e o peso da temporalidade, não deixa de enfatizar a presença da morte entre os vivos: morte de Deus, das sociedades, das crenças, morte a vir para cada indivíduo, que remete ao processo de narrar uma história.

A narrativa torna-se então a possibilidade, para o sujeito, de legitimar suas ações e de apropriar-se da sua vida.

Considerando as ações cotidianas no espaço urbano, os usos da língua ou as maneiras de crer como modos ativos de enunciação, Certeau devolve a estas práticas uma possibilidade individual de liberdade criativa, possibilitando que sejam compreendidas como verdadeiras formas de linguagem. Estas incluem processos de apropriação de um sistema (topográfico, lingüístico, ideológico, etc) e de realização a partir dos elementos deste sistema, pelo estabelecimento de relações entre posições diferenciadas . A respeito do sistema topográfico, o autor nota que na contemporânea cidade de Atenas os transportes públicos são chamados de  metaphorai.

 Considerações finais

Realizado nos anos 70, o trabalho de Certeau se refere a fenômenos cujo  conteúdo é determinado pelas condições sócio-históricas da época: voltou-se para as práticas de consumo então comuns, “maneiras de fazer” próprias de uma sociedade que, embora já entrando na mudança, podia ainda apegar-se a algumas certezas tradicionais de estabilidade e prosperidade. Como pondera Luce Giard,  numa avaliação retrospectiva vinte anos depois, uma pesquisa análoga nos dias atuais teria que levar em conta uma outra  realidade,  que inclui fenômenos como a desestruturação do tecido social e o desmoronamento das antigas redes de pertencimento , em que a transmissão entre gerações tornou-se cheia de lacunas. As transformações da  vida ordinária atingiram a apropriação do espaço privado e público;  os ritos de trocas adquiriram novas configurações em virtude dos novos recursos tecnológicos disponibilizados para os consumidores

Certeau não teve a oportunidade de testemunhar  os últimos  avanços tecnológicos do final do milênio e suas repercussões na vida cotidiana. A pesquisa hoje precisa explorar uma realidade atomizada cheia de desigualdades e violência.

Mas a prevalência da imagem, a internet, as mudanças no ritmo de alternância trabalho/lazer, os comportamentos de consumo, etc, criam hoje novas configurações  e possibilidades de surgimento de incontáveis novas práticas transformadoras dos produtos culturais disponibilizados para os consumidores.

 “Tudo se passa como se a generalização dos aparelhos de reprodução de imagens, sons e textos tivesse  aberto à imaginação dos usuários um novo campo de combinações e alternativas “. (Giard, 1997:24).

 Continua mais do que nunca justificado o uso do  modelo metodológico proposto por Certeau para a compreensão destas novas formas contemporâneas de consumo, se quisermos dar um crédito à liberdade interior e à imaginação, e participar do resgate  da dimensão criativa do divertimento hoje,  numa visão que possa levar em conta o lado positivo de alguns aspectos adaptativos  da   interação dos “homens comuns” com as novas configurações da cultura do nosso tempo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALVINO, Ítalo ([1972], 2000) As cidades invisíveis. São Paulo, Companhia das Letras

CERTEAU, Michel de  (1990)      L'invention du quotidien 1. Arts de faire. Paris, Gallimard

CERTEAU, Michel de, GIARD, Luce, MAYOL, Pierre (1997) A invenção do cotidiano 2.
Petrópolis, Vozes

------------------------------ (1995)      A cultura no plural. Campinas, Papirus.

FREUD, S ( [1910] , 1976) Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci. Edição Standard Brasileira das obras de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago

WINNICOTT, Donald W (1975) O Brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago

Recebido: 01/2012
Aceito: 01/2012

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