LIPIS

OS DISPOSITIVOS PSI COMO DETERMINANTES NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO ENCARCERADO

ELZA IBRAHIM Psicóloga graduada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/RJ). Mestranda em Psicologia Clínica no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ). Professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Veiga de Almeida (UVA). Email: elzaibrahim@terra.com.br


Resumo: Este artigo pretende discutir, do ponto de vista foucaultiano, de que maneira a Psicologia – assim como a Psiquiatria e o Direito – poderia contribuir para facilitar com o surgimento e a criação de novos modos de subjetivação do denominado “louco-criminoso” encarcerado nos manicômios judiciários. O seu objetivo é também promover subsídios para uma reflexão acerca das práticas de controle presentes nas instituições carcerárias, através de dispositivos que pretendem aferir o nível de periculosidade desses sujeitos.
Palavras-chave: dispositivo, sujeito, periculosidade.

PSY DEVICES AS DETERMINANTS IN CONSTITUTION OF THE PERSON IN DETENTION

Abstract: This article intends to discuss, by Foucault’s point of view, how Psychology – as well as Psychiatry and Law _ could be contributing in order to  create new ways of human constitution by those who are incarcerated in psychiatric-penal institutions. It also appoints to provide subsidies to a reflexion about the question of the control practices present in most of the psychiatric assessments that define the level of danger to others. Key-words: dispositif, subject, danger of others.

Foucault parece buscar em Nietzsche inspiração para compor o seu método genealógico. No artigo “Nietzsche, a genealogia e a história”, ele tece uma história do humano enquanto produto da história mesma.  Assim sendo, pode-se observar que o autor despreza o entendimento do sujeito como um sujeito unificado, portador de uma origem, de uma essência. Para ele não há origem. Para ele não há sujeito constituído: há regras e forças.

Através da obra de Foucault deu-se a maior transformação no campo da história como um todo. Veyne (1990) interpreta-a como o marco: para ele, a ‘revolução foucaultiana’ consistiu na modificação de uma perspectiva de análise focada em ‘objetos’, para outra, focada em ‘práticas’.  Segundo o autor, cada prática engendra o objeto que lhe corresponde: “o objeto não é senão o correlato da prática” (Veyne, 1990, p. 250). Ou seja, o objeto é produzido na história. E a tese central foucaultiana ratifica: “o que é feito, o objeto, se explica pelo que foi o fazer em cada momento da história” (Veyne, 1990, p.257).

Para Foucault, não existem coisas, só existem práticas. A loucura não existe como objeto, a não ser mediante uma prática - dentre outras -, a prática do internamento. É ele quem afirma: “é o hospício que produz o louco como doente mental” (Foucault, 1979, p. XIX). Em outras palavras, poderíamos dizer que não existe nada que seja natural, nativo, originário, mas tão somente aquilo enquanto construído. A loucura não pode ser tomada como objeto natural, como algo que ‘já lá estivesse’. Na verdade, é a emergência do encarceramento, é a sua prática e são os seus discursos que sustentam e reforçam o que se denomina de loucura.

Ao ler Foucault torna-se quase impossível não se fazer uma associação de seus pensamentos aos acontecimentos da atualidade. Assim, ao problematizar os caminhos da história, Foucault nos faz refletir sobre os descaminhos das práticas psi, em especial sobre alguns dispositivos jurídico-psiquiátricos utilizados, na maior parte das vezes, de forma indiscriminada nos campos da psiquiatria, da psicologia e do direito penal.

Trazendo como exemplo os laudos psiquiátricos e os exames psicológicos fartamente utilizados nas redes institucionais de um modo geral, observamos a ênfase na busca da verdade e no passado ‘tal como ele ocorreu’:

Nestes procedimentos, um objetivo claro deve ser alcançado e é ele que norteia os interrogatórios, os inquéritos, a fala das testemunhas: a reconstituição do passado “tal como ele ocorreu”. A partir de fatos concretos vistos por alguém, a partir da fala do acusado, fonte de erros e falseamentos e que deve ser deles depurada, buscar-se-ia chegar à “verdade”. (RAUTER, 1989, p. 12).

Não raro encontram-se laudos e exames onde é enfatizada a história pregressa do apenado, tentando buscar no passado, verdades que confirmem o presente. Melhor dizendo, o saber psi acredita que pode revelar o que está na origem da loucura, assim como se preocupava a metafísica com a origem da coisa. Como vimos, na perspectiva genealógica não há coisa, mas forças, cujo sentido é a relação. E relação é, sem sombra de dúvida, o que não ocorre durante uma situação de exame de avaliação no interior dos campos de saber da psiquiatria e da psicologia.

Muitas vezes, tanto na instituição prisional quanto na instituição psiquiátrica, torna-se clara a observação de jogos de verdade correlativos de jogos de poder, relativos a certos interesses que determinam algumas premissas como verdadeiras, e outras, como falsas. Os jogos de poder produzem jogos de verdade que, por sua vez, transitam como postulados instituídos, inflexíveis, imutáveis e principalmente, inquestionáveis no interior das ‘enfermacelas’ (1) das instituições. Eles são um conjunto de regras de produção de verdade.

Tomemos como exemplo o Exame Criminológico, um dos dispositivos de controle, amplamente utilizado no sistema prisional do Rio de Janeiro, aplicado àqueles que estão em vias de obter o livramento condicional. Antes, porém, apresentamos uma definição do que seja o exame, segundo Foucault:

O exame combina as técnicas da hieraquia que vigia e as da sanção que normaliza. È um controle normatizante, uma vigilância que permite qualificar,classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. [...] Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade. [...] A superposição das relações de poder e das de saber assume no exame todo o seu brilho visível (FOUCAULT, 1975, p. 164-165).

Voltando ao Exame Criminológico _ elaborado com base no Art. 83 do CP _, este deve ser apreciado pelo Conselho Penitenciário e pela Vara de Execuções Penais (VEP) (2) que esperam, seja ele, esclarecedor da “previsibilidade de comportamento futuro” do condenado. Tendo em vista o previsto na lei, conclui-se que este tipo de exame, mais absurdamente ainda, propõe avaliar a previsibilidade de comportamento do apenado, ao nível de suas virtualidades (3). A partir de um único encontro entre ele e o ‘especialista’, é necessário que fique esclarecido às instâncias jurídicas, o grau de previsibilidade de seu comportamento, confirmando-se se aquele sujeito “voltará ou não a delinqüir”, isto é, mais do que punir as suas infrações, tem-se como função agora, corrigir as suas virtualidades.

Ao colocar cada vez mais no primeiro plano não apenas o criminoso como sujeito do ato, mas também o indivíduo perigoso como virtualidade de atos, será que não se dão à sociedade direitos sobre o indivíduo a partir do que ele é? Não mais, é claro, a partir do que ele é por status (como era o caso nas sociedades do Antigo Regime), mas do que ele é por natureza, segundo a sua constituição, seus traços de caráter ou suas variáveis patológicas (FOUCAULT, 1978, p.24).

Assim, pune-se o condenado duplamente: já não bastasse a punição sobre o seu crime mesmo, pune-se o próprio criminoso, incidindo sobre seus motivos, suas tendências, seus instintos: “doravante se procura adaptar as modalidades da punição à natureza do criminoso” (Foucault, 1978, p. 12).

A aferição do citado grau de periculosidade é delegada a um agente de saber, ao perito, a um especialista: aquele que tem um olhar adestrado, longa experiência e um saber bem armado” (Foucault, 1978, p.10).  O preso, geralmente angustiado com asituação de exame, vê-se diante de um agente psi, que lhe é totalmente desconhecido, estabelecendo-se, de imediato, uma relação de saber/poder.  De um lado o nosólogo, que detém o saber a respeito do ‘tipo de personalidade’ daquele indivíduo e de como ela se expressa e que, a partir de determinadas premissas instituídas cientificamente como verdadeiras, exerce o poder de decidir sobre a sua vida futura. Do outro lado está o apenado desprovido, naquele momento, de qualquer saber/poder, e de quem se espera uma atitude passiva e subserviente, só lhe restando aguardar pela sua ‘sentença’.

Tais procedimentos jurídicos buscam na fala do acusado, a verdade absoluta, o relato coerente, o nexo causal, a objetividade do fato. Trata-se de uma abordagem historicista, onde o estudo do passado pressupõe uma origem como forma primeira. Nela, considera-se o passado como aquilo que marca o presente, cristalizando-o. Assim, não restaria mais nada ao sujeito a não ser cumprir com o seu destino: uma vez louco/criminoso/anormal, para sempre, louco/criminoso/anormal. Parece, portanto, tratar-se de uma perspectiva que se utiliza do passado para justificar o presente, e mais _ como em uma cadeia associativa _, determinar o futuro.

Vimos que o dispositivo do exame é um tipo de estratégia para manejar os jogos de força numa determinada direção: ele é uma espécie de tecnologia que visa extrair do indivíduo um saber para, então, dar a ele uma forma. Assim como o inquérito, ele é um procedimento jurídico de obtenção da verdade, que aparece travestido de cientificidade a partir do século XVII: é uma tecnologia de poder que consiste em produzir verdades.

Ora, surge então uma pergunta: qual a implicação do profissional psi nessa trama? A partir de que princípios e tecnologias ele se adapta às formas de exclusão desses dispositivos que marginalizam e controlam o condenado?

Ao se questionar se aquele sujeito voltará ou não a delinguir, isto é, se aquele sujeito ainda é perigoso, o profissional psi passa a funcionar como mecanismo e instância de defesa social. Ele se coloca a serviço de uma sociedade que pretende isolar e vigiar esse delinqüente, tal qual o modelo da peste do final do século XVII: isola-se para melhor controlá-lo.Este profissional aparece aqui como a figura, cunhada por Foucault, do médico-juiz que, ao descrever o caráter de delinqüência e as suas “condutas criminosas desde a infância”, contribui para deslocar o sujeito “da condição de réu ao estatuto de condenado” (Foucault, 2001, p. 27). Condenado pela sua própria história, da qual jamais poderá escapar. Trata-se de um sujeito sujeitado, destinado a cumprir um caminho previamente traçado, onde não lhe resta nada, a não ser obedecer. Desta forma associa-se, comumente, o poder à idéia de violência, de repressão, de domínio, de sujeição.

Todavia, Foucault nos traz uma valiosa contribuição ao pensar sobre o conceito de poder. Em suas obras posteriores, o poder é problematizado como uma relação de forças, onde se afeta e se é afetado, implicando uma estratégia de luta e de resistência: “o poder não existe; existem sim, práticas ou relações de poder” (Machado, 1979, p. XIV).            

É como se na aparente assimetria no campo de poder, houvesse uma simetria de base, onde ambos os lados são afetados. Assim, poderíamos dizer que, a despeito do poder instituído, há algo que acontece nos interstícios das relações; e este algo seria a resistência. Parece, portanto que, a relação de poder e as forças que resistem não podem ser separadas uma da outra. Em “O sujeito e o poder” Foucault esclarece que

[...] no centro da relação de poder, provocando-a incessantemente, encontra-se a recalcitrância do querer e a intransigência da liberdade. Mais do que um “antagonismo” essencial, seria melhor falar de um “agonismo” _ de uma relação que é, ao mesmo tempo, de incitação recíproca e de luta; trata-se, portanto, menos de uma oposição de termos que se bloqueiam mutuamente do que de uma provocação permanente (FOUCAULT, 1995, p. 244-245).

Ao falar de poder, Foucault se refere a algo que está sempre presente e que se exerce como uma multiplicidade de relações de forças. É como se o poder incitasse, estimulasse o sujeito a resistir. E é desta forma que o poder é visto como resistência. Portanto, é possível sustentar que o poder é algo construído e transformado pela força da resistência e é, justamente a partir da análise dessas resistências que se pode conhecer as estratégias e mecanismos que lhe são próprios.

Levando-se em consideração que, segundo Foucault, há resistência e capacidade de dizer não em todo e qualquer sujeito, acredita-se que há resistência também no ‘louco-infrator’, isto é, no paciente inimputáve (4). Se acreditarmos que a resistência pode ser vista como uma potência se insurgindo sobre estratégias de dominação, manifestando-se através de movimentos que lutam contra o poder instituído, teremos chances para acreditar que existe resistência em todos os humanos. Ao ser questionado por Jacques-Alain Miller (5) sobre quem seriam os nossos inimigos ou quem são os sujeitos que se opõem entre si, Foucault responde:

O que vou dizer não passa de uma hipótese: todo mundo a todo mundo. Não há, dados de forma imediata, sujeitos que seriam o proletariado e a burguesia. Quem luta contra quem? Nós lutamos todos contra todos. Existe sempre algo em nós que luta contra outra coisa em nós (FOUCAULT, 1979, p. 257).

Se considerarmos, como Foucault, que o poder sempre é produtivo, e que onde há poder há também resistência, acreditaremos ser possível a este sujeito inimputável resistir aos mecanismos coercitivos e adaptativos presentes nas instituições, e na vida como tal.

Mas de que maneira e sob quais condições este sujeito estaria disponível a resistir? Pensamos que, para isso, seja necessário o investimento pessoal do profissional psi, igualmente sob a forma de resistência mesma: resistência às tentativas de normatização impostas pela instituição, que tentam obstaculizar os possíveis movimentos em direção a novas saídas, a novas práticas de liberdade.

Isto nos remete às idéias de Michel de Certeau a respeito das ‘maneiras de fazer’ ou as ‘artes de fazer’:

Se é verdade que por toda a parte se estende e se precisa a rede de “vigilância”, mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também ‘minúsculos” e cotidiano) jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim, que “maneiras de fazer” formam a contrapartida, do lado dos consumidores (ou “dominados”?), dos processos mudos que organizam a ordenação sócio-política (CERTEAU, 1999, p. 41. Grifo nosso).

Indagamos, então: de que maneira o profissional psi – assim como toda a rede de práticas e instituições -, poderia contribuir para facilitar o surgimento e a criação de novos modos de subjetivação do sujeito encarcerado?

Pensamos que o papel do intelectual consiste em se implicar no campo de trabalho - não só tornando visível e denunciando os mecanismos repressivos exercidos de maneira dissimulada e encoberta no interior das instituições -, mas, principalmente se colocando como sujeito da ação. Assim, terminamos o artigo citando Basaglia com seu vigoroso e consistente comentário:

[...] Não é verdade que o psiquiatra tenha duas posturas, uma como cidadão do Estado e outra como psiquiatra. Há somente uma: como homem. E como homem eu quero mudar a vida que levo, e para isso tenho que mudar essa organização social, não com revolução, mas apenas exercendo minha profissão de psiquiatra. Se todos os profissionais exercessem sua profissão, isso seria a verdadeira revolução. Mudando o campo institucional no qual eu trabalho, mudo a sociedade, e se isso for onipotência, viva a onipotência!”(BASAGLIA, 1982, p. 150).


NOTAS:

(1) Criamos uma junção entre os vocábulos: ‘enfermaria’ e ‘cela’.

(2)  O jurista Salo de Carvalho aponta para o fato de que, em nossos dias, o juiz já não julga mais sozinho: “Ao longo do processo penal, e da execução da pena, prolifera toda uma série de instâncias anexas. Pequenas justiças e juízes paralelos se multiplicam em torno do julgamento principal: peritos psiquiátricos e psicólogos, magistrados da aplicação da pena, educadores, funcionários da administração penitenciária fracionam o poder legal de punir” (Carvalho, 2008, p. 187-188).

(3) Foucault se refere ao termo ‘virtualidade’ ao analisar uma nova forma de controle, “não tanto sobre se o que fizeram os indivíduos está em conformidade ou não com a lei, mas ao nível do que podem fazer, do que são capazes de fazer, do que estão sujeitos a fazer, do que estão na iminência de fazer” (FOUCAULT, 2005, p. 85).

(4)  “É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”(Código Penal). É este inimputável que Foucault vai denominar de anormal, aquele a ser corrigido pela psiquiatria e pelo sistema penal.

(5) Foucault é entrevistado por vários psicanalistas, dentre eles o francês Jacques-Alain Miller.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASAGLIA, F. A Psiquiatria Alternativa. Contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática. São Paulo: Brasil Debates, 1982.

CARVALHO, S. Pena e Garantias. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008.

CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1999.

CÓDIGO Penal Brasileiro de 1940. Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. Em: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.        

____________. O sujeito e o poder. Em: Dreyfus, H. e Rabinow, P. – Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

____________. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

____________. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

____________. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2005.

MACHADO, R. Por uma genealogia do poder. Em: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

RAUTER, C. Criminologia e Subjetividade no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

VEYNE, P. Foucault revoluciona a história. Em: Como se escreve a história. Brasília: UNB, 1990.

Recebido: 01/2012
Aceito: 01/2012

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