Questões Contemporâneas

FREUD E A GUERRA(1)

LUCIANA KNIJNIK é Psicóloga, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense, Consultora da UNESCO, Conselheira do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, Psicanalista em formação no Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.

Resumo: O texto aborda o entrelaçamento entre vida e obra de Sigmund Freud,  tomando como fio condutor a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. O modo como o principal articulador da psicanálise viveu duas grandes guerras, o judaísmo, os personagens que fizeram parte de sua história, e as repercussões em sua obra são tema do artigo.
Palavras-chave: Psicanálise; guerra; judaísmo.

FREUD AND THE WAR

Abstract: This paper addresses the intertwining of life and work of Sigmund Freud taking as conducting wire the First and Second World War. The way the main articulator of psychoanalysis lived through two world wars, Judaism, the characters who were part of his history, and the impact on his work are the subject of the article.
Keywords: psychoanalysis; war; judaism.

A formação em psicanálise é marcada por um mergulho na biografia de Sigmund Freud. Amigos, inimigos, familiares, pacientes, pensadores e aprendizes atravessam sua vida, promovendo permanentes desvios, abertura de novas rotas e a persistência obstinada por trajetos intuídos. O entrelaçamento entre vida e obra é irrefutável. Não há como acompanhar a trajetória de construção da psicanálise sem conhecê-las de perto. Como nos bons romances, a ambientação e a construção de cada personagem são peças fundamentais para a composição do personagem principal.

De 1856 a 1939, o mundo passa por grandes transformações. O crescimento da população, a urbanização, as transformações no sistema de transporte, o fortalecimento do capitalismo e duas grandes guerras. Freud, como tantos europeus, viveu a iminência da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) com entusiasmo. O nacionalismo aflorado neste período era contagiante e o tema passou a fazer parte de suas discussões com seus correspondentes. Em agosto de 1914, Europa e regiões próximas tomam parte na Primeira Guerra Mundial.

Com o passar do tempo, a concretude da guerra imprimiu novas questões. A violência e a proximidade da morte invadiram a casa de Freud com o ingresso de três de seus filhos no Exército. Martin, com 25 anos, apresentou-se voluntariamente. Admitido na artilharia, participou de combates nos fronts do leste e do sul. Oliver, o segundo filho, recusado até 1916, atuou desenvolvendo projetos de engenharia para o exército. Já Ernst, o mais jovem, que também se apresentou como voluntário, serviu no front italiano. Até Anna preocupou seu pai por estar em viagem à Inglaterra, em julho de 1914, e precisou da ajuda de Ernest Jones para retornar para casa em segurança.

Na família Freud, somente Hermann Graf, filho único de Rosa, irmã de Freud, morreu em combate. Max Halberstad, genro de Freud e marido de Sophie, foi ferido em combate na França, em 1916 e é reformado por invalidez. No entanto, não medimos a interferência da Primeira Guerra na vida de Freud pelo número de mortos. Em seu escrito intitulado Reflexões para os tempos de guerra e morte (FREUD, 1915), ele explicita seu lugar de familiar no cenário de guerra, aquele que, à distância, guarda o posto e anseia pelo retorno de seus entes queridos:

Deve-se estabelecer aqui uma distinção entre dois grupos – os que arriscam suas vidas no campo de batalha e os que permanecem em casa, tendo apenas de esperar pela perda de seus entes queridos por ferimentos, moléstia ou infecção. Seria muito interessante, sem dúvida, estudar as modificações na psicologia dos combatentes, mas sei muito pouco a esse respeito. Devemos restringir-nos ao segundo grupo, ao qual nós próprios pertencemos (p. 301).

Neste período, a guerra e suas consequências aparecem em sua produção teórica, em Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915), Introdução à psicanálise e as neuroses de guerra (1919), Por que a Guerra? (1932) e em diversas correspondências. Ponderações sobre a ética, os laços que unem os povos e as chamadas ‘vicissitudes instintuais’ estão ali apresentadas. Neste contexto a morte torna-se um dos temas centrais:

É evidente que a guerra está fadada a varrer esse tratamento convencional da morte. Esta não mais será negada; somos forçados a acreditar nela. As pessoas realmente morrem, e não mais uma a uma, porém muitas, frequentemente dezenas de milhares, num único dia. E a morte não é mais um acontecimento fortuito (Freud, 1915, p. 301).

Não foram somente os psicanalistas que sofreram interferências neste período. A própria psicanálise foi influenciada pela conjuntura mundial. Um congresso de psicanálise planejado para setembro de 1914 na cidade alemã de Dresden não pôde ocorrer. Já em 1918, em Budapeste, o V Congresso da IPA (Associação Internacional de Psicanálise) teve como tema os traumas de guerra. Diversos psicanalistas foram convocados para servir no front na qualidade de médicos, dentre eles Max Eitingon, Karl Abraham, Sándor Ferenczi e Otto Rank. As reuniões da Sociedade Psicanalítica de Viena, até então ocorridas todas as quartas-feiras à noite, tornaram-se esparsas. Pacientes em potencial também foram convocados, esvaziando os consultórios e assim a escassez financeira igualmente se impôs.

A década seguinte, ao fim da Primeira Guerra Mundial, é marcada por permanentes conflitos, desemprego e crises econômicas. No primeiro dia de setembro de 1939, a Alemanha invade a Polônia, marcando o início dos seis longos anos de duração da Segunda Guerra Mundial, a mais letal da história da humanidade, com aproximadamente setenta milhões de mortos.

Se em 1914 Freud aderiu ao clima bélico com entusiasmo, na Segunda Guerra Mundial o quadro era outro, não apenas pela sua maturidade e seu acúmulo de experiências. Enquanto na Primeira Guerra o austríaco Freud estava do lado dos fortes, na Segunda Guerra o judeu Freud estava com os fracos, era alvo do nazismo.

Freud era judeu. Não se reconhecia como um homem religioso, mas portador da tradição cultural judaica. Sua família de origem emigrou da Morávia, Galícia austríaca (atual Tchecoslováquia), para Viena.

Em 1926, em entrevista a Geroge Sylvester Viereck, Freud diz: “Minha língua é o alemão. Minha cultura, minhas realizações são alemãs. Eu me considerava intelectualmente alemão, até que notei o crescimento do preconceito anti-semita na Alemanha e na Áustria germânica. Desde então, prefiro me dizer um judeu” (GAY, 1989, p. 409).

Freud, que não se considerava alemão nem austríaco, mas judeu, viveu situações de necessário enfrentamento com o anti-semitismo. O tratamento diferenciado para com os judeus foi apresentado a Freud por seu pai ao contar a cena em que foi agredido por um cristão que arrancou seu ainda novo boné de pele, jogou-o na lama e gritou: “Judeu! Saia da calçada!”. O jovem foi tomado pelo espanto frente à resignação do pai, que junta o boné da lama e segue seu caminho. Comentando sua inserção na universidade, relatou:

Lá encontrei essa estranha exigência: eu devia sentir-me inferior, e excluído da nacionalidade dos outros, porque era judeu [...] Nunca pude entender por que deveria ter vergonha de minha origem, ou como se começava a dizer: de minha raça [...] uma consequência dessas primeiras impressões da universidade que mais tarde teve sua importância foi o fato de familiarizar-me logo cedo com o destino de estar na oposição e sofrer a oposição de uma ‘maioria compacta’ (FREUD, 1925, p. 19).

A perseguição aos judeus e os consequentes movimentos migratórios não são novidade histórica e no período que antecede a Segunda Guerra não foi diferente. Em 1933 Freud, Thomas Mann, Albert Einstein, Marx e Kafka estão entre os autores que têm seus livros queimados em praça pública. Em 1934 as leis de raça invadem a universidade e Freud é cortado da sua lista de membros. Em 1936 o professor Moritz Schlick, membro do Círculo de Viena, é assassinado nas escadarias da universidade por um estudante racista que posteriormente tornou-se membro do partido nazista austríaco.

O cenário pós Primeira Guerra Mundial, favorável à ascensão do nazismo, expande o anti-semitismo racial à política governamental. Judeus alemães e austríacos são novamente levados ao exílio. Max Eitingon, Otto Fenichel, Erich Fromm e Ernest Simmel são alguns dentre tantos psicanalistas que buscam refúgio no exterior. Oliver e Ernst, filhos de Freud, por prudência emigram para França e Inglaterra (GAY, 1989).

Em março de 1938, a temida anexação da Áustria à Alemanha acontece. Enganaram-se os que acreditaram que o anti-semitismo seria mais leve na Áustria do que vinha sendo na Alemanha.

No dia 15 de março do mesmo ano, o apartamento da família na Berggasse 19, bem como a editora psicanalítica, foi invadido por membros de tropas paramilitares e camisas-pardas(2) em busca de documentos comprometedores. Martin passou o dia preso. Anna abriu o cofre e entregou o que tinham. Nesta circunstância fugir da Áustria não parecia possível, ficar tampouco. Centenas optaram pelo suicídio, cogitado também por Anna que perguntou ao pai se “não seria melhor se todos nós nos matássemos” (GAY, 1989, p. 562).

O reconhecimento internacional obtido por Freud somado ao seu fiel e influente círculo de amizade foram os fatores que determinaram a salvação de parte da família. Ele relutou o quanto pode em deixar sua querida Viena, até que, em 22 de março de 1938, Anna é presa pela Gestapo. Nesta ocasião a princesa Marie Bonaparte demonstra mais uma vez sua lealdade aos Freud’s e pede para ser presa junto.

A atenção das autoridades já havia sido despertada pelo presidente norte-americano Franklin Roosevelt que determinou a intervenção direta do embaixador em Berlim para levar o caso Freud aos comandos alemães. A repercussão negativa que o assassinato de Freud causaria não interessava aos nazistas. Após enfrentar toda burocracia e a corrupção da máquina, no dia 4 de junho, a família – incompleta – deixa Viena. Mesmo com o auxílio financeiro de Marie Bonaparte, a soma exorbitante necessária para o visto de saída de toda família não é obtida.

Apesar de todos os esforços empreendidos para garantir conforto e bem-estar na Inglaterra, ninguém pode amenizar a preocupação de Freud com suas quatro irmãs idosas que permaneceram em Viena. Provavelmente intuía que o desfecho final não seria feliz. Adolfine morreu de fome no campo concentração de Theresienstadt, na República Tcheca, por onde passaram aproximadamente 140 mil pessoas. Mitzi, Rosa e Paula foram assassinadas, provavelmente em Auschwitz.

O holocausto produz ressonâncias na obra de Freud. Tanto suas correspondências como sua última publicação, Moisés e o Monoteísmo, são atravessadas pelas reflexões acerca do anti-semitismo sem precedentes da Segunda Guerra Mundial. Sua produção teórico-clínica nunca esteve alheia aos acontecimentos sociais, políticos, econômicos de seu tempo. Da mesma forma, sua experiência pessoal sempre foi matéria-prima de trabalho. No final da vida, não poderia ser diferente.

O judaísmo para Freud estava mais próximo da ética do que da religiosidade, como podemos constatar na carta dirigida aos membros da associação B’nai B’rith. No dia 6 de maio de 1926, completando 70 anos, ele diz: “O que me ligava ao judaísmo não era a fé – devo confessar – nem mesmo o orgulho nacional, pois sempre fui incrédulo, fui criado sem religião, mas não sem o respeito do que se chama as exigências ‘éticas’ da civilização humana” (FLEM, 1988, p. 114). Em outras palavras, 44 anos antes, diz para sua noiva Martha: “E quanto a nós dois, eis o que penso: embora as formas em que os velhos judeus se sentiam bem não nos ofereçam mais segurança, algo de essencial, a substância mesma desse judaísmo tão cheio de sentido e de alegria de viver não abandonará o nosso lar” (Idem, p. 104).


NOTAS:

(1) Trabalho apresentado na Jornada de 27 de novembro de 2010 no Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.

(2) Milícia nazista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GAY, P. Freud: uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

FLEM, L. A vida cotidiana de Freud e seus pacientes. São Paulo: L&PM, 1988.

FREUD, S. Por que a guerra? (1933[1932]) Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

___. Um estudo autobiográfico (1925[1924]). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

___. Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

HUSTON, J. Freud em Viena. [Filme]. Direção de Jonh Huston e produção de Versatil Home Vídeo. Estados Unidos, 1962, 135 min.

Recebido: 26/10/2011
Aceito: 16/12/2011

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