LIPIS

PEDAGOGIA DO ENVOLVIMENTO: EM BUSCA DO OUTRO

FLÁVIA PFEIL é Bacharel em Psicologia pela PUC-Rio. Mestranda em Psicologia Clínica na PUC-Rio. E-mail: fla_pfeil@yahoo.com.br

LUCAS RORATTO é Bacharel em Psicologia pela UNIFRA – Santa Maria/RS. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Subjetividade da UFF. E-mail:lucasvieiraroratto@hotmail.com

SIMONE FERREIRA é Bacharel em Geografia pela FFP/UERJ. E-mail: simone_aferreira@yahoo.com.br

Resumo: O presente artigo vem problematizar as relações educacionais atuais, utilizando como intercessor para a discussão a Educação Popular - que propicia a emergência da presença dos sujeitos que habitam o movimento educacional. Acreditamos que a Educação Popular ao introduzir a individualidade e uma relação dialógica na sua concepção, possa beneficiar agenciamentos coletivos de enunciação, onde não se trata de uma individualidade reduzida somente ao indivíduo, interiorizado, auto-centrado, mas a um indivíduo que é, vive num mundo onde nada se reduz ao “uno”, onde a multiplicidade se compõe com forças desarmônicas e não fixadas. Privilegiando o movimento na educação como criador de potência para a discussão de novos possíveis dentro das políticas públicas nacionais.
Palavras-chave: Educação Popular, movimentos sociais, resistência

PEDAGOGY OF INVOLVEMENT: LOOKING FOR THE OTHER

Abstract: This article intends to question the current educational process, using as an intercessor for the discussion the Popular Education - which fosters the emergence of the subjects who compose the educational movement. We believe that introducing the individuality and a dialogic relations the Popular Education can benefit collective assemblages of enunciation, where it is not reduced only to an individual person, internalized, self-centered, but an individual who is living a world where nothing is reduced to "one", where the multiplicity is composed by not fixed and inharmonious forces. Privileging the movement in education as potentiating the discussion of possible new directions for national public policies.
Keywords: Popular Education, social movement, resistance

PEDAGOGIA DO ENVOLVIMENTO: EM BUSCA DO OUTRO(1)

Vivemos no momento com um modelo educacional homogêneo, onde diferenças regionais, individuais, são no mínimo desprezadas. Esta educação trabalha sobre o aluno e não com o aluno (FREIRE, 2009). Dita idéias, impõe ordens e dá fórmulas. A reprodução em detrimento da criação mantém o território educacional cristalizado e inflexível.

A educação é tratada como mais um processo da cadeia produtiva capitalista, tornando-se mais objetiva e operacional, formando especialistas capacitados para o mercado de trabalho. A “ordem capitalística” (ROLNIK e GUATTARI, 1986) produz subjetividades que constroem e definem modos de existência, de ação no mundo, sendo moldadas pelos distintos equipamentos sociais como as práticas pedagógicas e as práticas psi. Tais práticas muitas vezes partem de uma concepção do sujeito como possuidor de uma natureza ou essência e, portanto, determinado – crenças que "são fortes expressões do capitalismo, com sua referência idealista-metafísica, presentificadas na ordem político-social” (COIMBRA, 2003, p. 9). É partindo dessa concepção essencialista de sujeito que certos discursos – enquanto práticas – desqualificam alguns territórios e alguns sujeitos. Colocando-os no hall da anormalidade, do desvio, daqueles que necessitam ser tutelados, docilizados e ordenados.

 A proposta da Educação Popular aponta para uma educação como agente potencializador de (trans)formação do sujeito, do outro – aquele que “se afirma como o outro, que recusa a domesticação” (PASSETTI, 2009, p. 163). A partir desta outra concepção de sujeito - não essencialista - abrimo-nos aos possíveis, a formas outras de proceder, apostando na coletividade como potencializadora das resistências e suas linhas de fuga.

O senso crítico e a autonomia em suas decisões políticas são fomentadas. As verdades tomam caráter de provisoriedade - de valor transitório e contraditório - o que possibilita outros olhares para a educação, para além dos moldes pré-estabelecidos, da docilidade e da passividade. Assim, a educação do (em) movimento surge como uma linha de fuga à lógica educacional vigente, e luta por uma pedagogia ativa, levando em consideração as práticas sociais que ocupam um lugar de resistência, de produção singular, de criatividade.

A proposta da Educação Popular é defendida pelos movimentos sociais rurais em seu histórico de luta afirmando a inseparabilidade entre conhecimento e prática social. O processo educativo integra-se na dinâmica formadora do sujeito, “na invenção/experimentação de caminhos que se fazem no próprio ato de caminhar” (COIMBRA, 2009, p. 54). A Educação Popular busca valorizar o diálogo nas relações entre educador e educando, pensando a educação como uma força motriz para a reconstrução do sujeito social ativo, capaz de uma constante abertura para o novo. Assim, fogem as estratégias comuns de confronto direto com o Estado, propondo operações “que logo se dissolvem para reaparecerem em outros lugares, em outros momentos, antes que o poder do Estado possa esmagá-las e/ou capturá-las” (COIMBRA, 2009, p. 58). Respeitando as especificidades e necessidades para a formação social e política dos sujeitos, esta pedagogia educa propondo a coletividade e movimentando a luta pela afirmação e fortalecimento de suas identidades - os conteúdos demandam das dinâmicas locais.

Contrariando a passividade, transmissão de conteúdos, memorização e verbalismo dos projetos educacionais, é que surge a Educação Popular, na década de 1980. Com a proposta da construção (ativa) do conhecimento através das experiências e vivências de cada sujeito, a Educação Popular traz esperança e força de reação aos marginalizados e segregados no/do processo educativo. Apostando na educação como agente de transformação, este movimento objetiva criar experiências políticas de expressão cultural com o propósito de obter transformações sociais e simbólicas que gerem reorganização e mobilização de grupos populares e o fortalecimento de seu poder de classe. O desenvolvimento dessas possibilidades inspira maneiras diferentes de organização da educação para cada população e suas peculiaridades.

Ela busca trabalhar pedagogicamente o homem e os grupos envolvidos no processo de participação popular, fomentando formas coletivas de aprendizado e investigação, de modo a promover o crescimento da capacidade de análise crítica sobre a realidade e o aperfeiçoamento das estratégias de luta e enfrentamento. É uma estratégia de construção da participação popular no redirecionamento da vida social (VASCONCELOS, 2004, p.71).

Vinculados a este pensamento, muitos movimentos sociais e populares – que surgiram e ganharam força no mesmo momento político-histórico – viram na Educação Popular uma fonte de energia renovável e disponível. Segundo Gohn (1997), Movimentos Sociais são ações sociopolíticas construídas por atores sociais coletivos pertencentes a diferentes camadas sociais, articuladas em certos cenários de conjuntura socioeconômica e política de um país, criando um campo político de força social na sociedade civil.  A afinidade entre os movimentos sociais e populares e o popular da educação, está, justamente, na participação coletiva na construção de novas (contra)culturas. Sem distanciar teoria e prática, o trabalho em suas diversas formas exercidas, é sem dúvida uma tarefa de retomar a cultura com o objetivo de motivá-la, através de um trabalho político de recriá-la com o povo.

Compreender que a educação é uma dimensão historicamente especializada da cultura e a sua forma de realizar um tipo de educação é um momento transitório de tal dimensão; obedecendo, como outra qualquer prática agenciada que tem a ver com relações de saber e poder, a princípios de produção e transformação da própria cultura (BRANDÃO, 1985, p.152).

Com força nas periferias urbanas e principalmente no meio rural, o movimento pela Educação Popular ganha maior dimensão por se incorporar a dinâmica de luta dos movimentos sociais e pastoris. É através de seus objetivos, princípios e valores que os movimentos intencionalizam suas práticas educativas, ao mesmo tempo que aos poucos, também começam a refletir sobre elas. Buscando unir elementos transformadores da sociedade, a educação popular busca um contínuo movimento de troca entre os professores e os estudantes, de acordo com sua realidade, suas experiências. Preservando a imanência contida nas relações, nos acontecimentos, nos “entres”, nos meios – abdicados geralmente quando se fala em educação. “A idéia de imanência afirma a possibilidade não de um caminho, mas põe em questão cada caminho, afirma ‘uma vida’ e não esta ou aquela vida, nem mesmo a tomada consensualmente como a mais exemplar” (NEVES, 2002, pg. 84). Busca-se uma educação onde o índio amazônico e o funcionário de grandes cidades possam exercer uma gestão participativa do processo educacional.

Na Educação Popular, não basta que o conteúdo discutido seja revolucionário se o processo de discussão se mantém de cima para baixo. Enfatiza não o processo de transmissão de conhecimento, mas a ampliação dos espaços de interação cultural e negociação entre os diversos atores envolvidos em determinado problema social, para a construção compartilhada do conhecimento e da organização política necessários à sua superação. Ao invés de procurar difundir conceitos e comportamentos considerados corretos, procura problematizar, em uma discussão aberta, o que está incomodando e oprimindo (VASCONCELOS, 2004, p. 71).

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) vê na Educação Popular uma prática educativa que se concretiza na dialogicidade crítica, reafirmando o direito do povo de ter vez e voz, ter direito a direitos, possibilitando a compreensão de que ensinar é um processo de comunicação emancipadora. Pensar nesse processo pedagógico deve ser alterar perspectivas do olhar corriqueiro dado sobre as questões educacionais, incluindo novas dimensões de envolver os estudantes no planejamento das aulas e no processo de trabalho produtivo. Incorporando as diversidades - sabendo que a realidade não é um dado imutável e fixo - atrelar alunos a gestão do próprio ensino, do trabalho realizado, das singularidades presentes em cada situação, amplia a possibilidade do exercício de outras formas de aprendizado onde a multiplicidade esteja em jogo.

[...] por meio do reconhecimento da pluralidade de ações alternativas que, pautadas na diversidade de saberes, promovem a emergência de um outro tipo de conhecimento – um conhecimento solidário e dialógico que reabilita vozes silenciadas, saberes destruídos e aspirações esquecidas de povos e grupos sociais marginalizados, o conhecimento-emancipação (PÉREZ, 2007, p. 134).

No meio rural o processo de massificação da educação é intensificado em nome do “progresso”, objetivando a incorporação e adequação à lógica urbano-industrial. Os movimentos sociais vinculados ao meio rural, ao contrário, apoiam-se em outra prática de educação – do envolvimento – que considera a pluralidade local e o sujeito na construção do conhecimento. Essa outra pedagogia assume, desta forma, um caráter potencializador da resistência ao mito do desenvolvimento e ao silenciamento da população rural e suas peculiaridades.

Alicerçada na base material, a sociedade está submetida a valores quantitativos ao longo da sua formação social e cultural. Seja no trabalho, na escola ou em outras atividades exercidas esses valores se fazem presentes. No entanto, para melhor compreender as ações antrópicas é fundamental sentir-se consciente de sua função social, ter leitura própria dos fatos e autonomia nas decisões. É neste sentido que pensamos que trabalho e educação não podem ser dissociados. Eles apresentam potencialidades que podem e devem ser mantidas numa relação recíproca e mútua, apontando caminhos alternativos à lógica econômica e competitiva que fundamenta a sociedade atual. Nesta perspectiva, o trabalho deve ser visto como um ferramenta educacional e não deve ser alijado da formação do sujeito.

Procedimento Metodológico

O presente artigo é baseado na proposta metodológica da cartografia, por possibilitar uma melhor flutuação entre os saberes acadêmicos, a respeito da temática desenvolvida. Segundo Baremblitt (2003) uma cartografia é um mapa relato que além de ser objetivo, tem seu caráter subjetivo e político, que expressa uma singularidade irrepetível e única dessa viagem, não impedindo que outros a utilizem para a construção de suas próprias trajetórias.

Utilizaremos como intercessores para a discussão autores como Felix Guattari, Cecília Coimbra, entre outros pensadores atuais sobre Educação Popular e políticas públicas como Paulo Freire e Carlos Rodrigues Brandão. Visando uma problematização transdiciplinar, onde os saberes sejam construídos conjuntamente, sem bases em verdades universais homogeneizantes, as quais criticamos. Para isso, uma construção bibliográfica transversal torna-se potente na discussão de novos modos de construir/gerir outros olhares, tendo em voga a Educação Popular e seu caráter político como potencializador de movimentos.

Resultados

Com base nesse breve apanhado bibliográfico, apostamos na discussão e implementação da Educação Popular como uma forma de gerir conhecimento, ampliar debates pertinentes as políticas públicas nacionais e estimular novas linhas de fuga frente a práticas pedagógicas cristalizadas da educação convencional e ao processo de massificação da cultura. Dessa forma, agenciamentos coletivos de enunciação podem vir à tona, buscando-se estratégias para compor forças com movimentos sociais, em busca de maior diálogo, potencializando a vida de pessoas que hoje vivem a margem de uma sociedade capitalística.

Com a proposta e o desafio de reformular o processo educativo e cultural, temos o exemplo do MST que construiu, ao longo de sua existência, condições pertinentes ao desenvolvimento sócio-educacional. Uma pedagogia própria, não voltada para si, mas para contextualização dos saberes, dos movimentos englobados nessa dinâmica. Como principal exemplo das práticas abordadas no corpo do texto, temos a criação da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), inaugurada em 2005. Construída, também, pelos integrantes do MST – e apoiada por diversas universidades tais como UNICAMP, UERJ, UFPB e UFMG – tem a proposta de romper com a educação homogeneizante, desarticulada e transcendente.

Com uma postura acolhedora, a ENFF oferece cursos voltados para os agricultores, ciranda para crianças, educação de nível superior contando com professores e colaboradores de diversas partes do Brasil. Trata-se de reformular o pensamento desenvolvimentista estritamente especialista e econômico. A educação passa a ser pensada enquanto movimento de resistência e luta micropolítica, promovendo a organização do conhecimento em prol do desenvolvimento social de classes minoritárias.


NOTAS:

(1) Trabalho apresentado no V Simpósio Internacional de Geografia Agrária/ VI Simposio Nacional de Geografia Agrária (SINGA), em Belém-PA, nos dias de 7 a 11 de novembro de 2011.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAREMBLITT, Gregório. Introdução à esquizoanálise. 2ª Ed. Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Félix Guattari, 2003.

BRANDÃO, C. R. A educação como cultura. Ed. Brasiliense: São Paulo, 1985.

COIMBRA, C.; LEITÃO, M. B. Das essências às multiplicidades: especialismo psi e produções de subjetividades. In: Revista Psicologia e Sociedade, n.15, vol.2. jun. a dez. 2003, p. 6-17.

COIMBRA, C.; NASCIMENTO, M. L. Movimentos sociais e sociedade de controle. In: TEDESCO, S.; NASCIMENTO, M. L. (Orgs.) Ética e subjetividade: novos impasses no contemporâneo.  Ed. Sulina: Porto Alegre, 2009. p. 39-59.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo, UNESP, 2000.

GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Ed. Vozes: Petrópolis, 1986. In: COIMBRA, C.; LEITÃO, M. B. Das essências às multiplicidades: especialismo psi e produções de subjetividades. In: Revista Psicologia e Sociedade, n.15, vol.2. jun. a dez. 2003, p. 6-17.

GOHN, Maria da Glória. Teorias dos Movimentos Sociais: Paradigmas Clássicos e Contemporâneos. São Paulo: Loyola, 1997.

NEVES, C. A. Interferir entre desejo e capital. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2002.

PASSETTI, E. Sobre sociedade de controle, educação e fluxos. In: TEDESCO, S.; NASCIMENTO, M. L. (Orgs.) Ética e subjetividade: novos impasses no contemporâneo.  Ed. Sulina: Porto Alegre, 2009. p. 39-59.

PÉREZ, C. L. A lógica e o sentido da formação: heterotropias, acontecimentos e sujeitos. In: Revista do departamento de psicologia – UFF. Vol. 19, n.1, p.127-144. EdUFF, Niterói, 2007.

VASCONCELOS, E. M. Educação popular: de uma prática alternativa a uma estratégia de gestão participativa das políticas de saúde. Physis,  Rio de Janeiro,  v. 14,  n. 1, Junho 2004. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010373312004000100005&lng=en&nrm=iso>. Acessos em  07  Setembro  2011.

Recebido: 10/2011
Aceito: 12/2011

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