LIPIS

OBESIDADE NA INFÂNCIA: UM CONTRAPONTO ENTRE O DISCURSO MÉDICO E OS SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS PELAS MÃES AOS IMPASSES ALIMENTARES DA CRIANÇA

FABIANA AZEREDO é Mestre em psicologia pela Universidade de Fortaleza, membro do Laboratório de Estudos e Intervenções Psicanalíticas na Clínica e no Social (LEIPCS), associado ao Programa de Pós-graduação em Psicologia; fabianazeredo@hotmail.com

KARLA PATRÍCIA HOLANDA MARTINS é Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, Professora colaboradora do curso de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza, Membro do GT Processos de Subjetivação, clínica ampliada e sofrimento psíquico, Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.Pesquisadora Associada do LIPIS. kphm@uol.com.br .

Resumo: O presente artigo consiste em uma investigação no campo da obesidade infantil, refletindo as características discursivas das práticas médicas de intervenção junto à infância e trilhando um contraponto com os significados atribuídos pela mãe da criança à obesidade. Diante disto, elege-se como objetivo geral investigar no discurso materno os significados atribuídos à obesidade do (a) filho (a), diante da influência do discurso médico, bem como as implicações da relação mãe-filho na problemática em questão. Com vistas à investigação do objetivo proposto, foi realizada uma pesquisa qualitativa com levantamento bibliográfico e investigação de campo. No período de abril a junho de 2010, foram realizadas entrevistas com 04 mães de crianças obesas que participavam do Programa de Prevenção à Obesidade do IPREDE/Ceará. O método de análise de discurso orientou o trabalho com o material de campo, organizado a partir de categorias. No presente artigo, traz-se como eixo principal de discussão a categoria relacionada aos significados atribuídos às intervenções do Programa de Prevenção. A partir do percurso empreendido, pode-se concluir que os significados sobre o que acometia seus filhos ora revelavam a submissão destas ao discurso dominante ora apontavam para suas resistências em 'aderir' ao programa. Diante disto, interrogar a implicação da mãe na problemática apresentada pela criança é fazer jus à complexidade do tema e criar espaços de interlocução com as áreas de conhecimento, dentre elas a medicina.
Palavras-chave: Obesidade infantil; Discurso médico; Psicanálise; Relação mãe-filho.Obesidade infantil; Discurso médico; Psicanálise; Relação mãe-filho.

CHILDHOOD OBESITY: A COMPARISON BETWEEN MEDICAL DISCOURSE

AND THE MEANINGS ATTRIBUTED BY MOTHERS TO CHILDREN'S EATING DILEMMAS

Abstract: The current article consists in a research on childhood obesity. The problematic in focus leads to reflect on the discursive features of medical practices regarding childhood intervention, leading to a counterpoint with the meanings assigned by the child’s mother about the obesity. Given this, picks up as the general goal search into parent speech the meanings assigned to the child’s obesity, before the influence of medical discourse, as well as the implications of mother-child relationship in the issue in question. About the investigation of the proposed objective, a qualitative study was conducted with bibliographic survey and field investigation. In the period April to June 2010, interviews were conducted with 04 mothers of obese children who token part in the Programa de Prevenção à Obesidade do IPREDE/Ceará (Obesity Prevention Program of IPREDE/Ceará). The method of discourse analysis guided the work with the field material, organized based on categories. In the current article, brings as the main focus of discussion the category related on the meanings attributed to the interventions of the Prevention Program. From the course undertaken, can be concluded that the meanings about what flew at their children sometimes revealing the submission of these to the dominant discourse sometimes indicating their resistance to join the program. Facing this, question the involvement of the mothers in the problems presented by the child is to do justice to the complexity of the subject and create spaces for dialogue with the knowledge areas, among them the medicine.
Keywords: Childhood obesity; Medical Discourse; Psychoanalysis; Parent-child relationship.

INTRODUÇÃO

O presente artigo consiste em uma investigação no campo da obesidade infantil. A problemática em foco leva-se a refletir sobre as características discursivas das práticas médicas de intervenção junto à infância, trilhando um contraponto com os significados atribuídos pela mãe da criança à obesidade. Elege-se como objetivo geral investigar no discurso materno os significados atribuídos à obesidade do (a) filho (a), diante da influência do discurso médico, bem como as implicações da relação mãe-filho na problemática em questão.

A reflexão do trabalho de pesquisa desenvolveu-se inicialmente a partir do que se concebe sobre a instituição de normas e condutas alimentares. Diante da complexidade do contexto, a discussão se faz à luz dos estudos de Michel Foucault (1984), Jurandir Freire Costa (2004) e Jean Clavreul (1978), em que se relevam as relações entre o poder médico e a dietética, considerando que, neste processo de privatização do controle alimentar, a mãe foi eleita como uma peça-chave. Os aspectos subjetivos da mãe da criança obesa e as possíveis implicações desta na problemática em questão são discutidos e articulados no âmbito da teoria psicanalítica, bem como relacionados ao contexto em questão.

A obesidade é considerada um acometimento que configura dados alarmantes e é definida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como uma doença crônica multifatorial, caracterizada pelo excesso de gordura nos tecidos adiposos, sendo um fator de risco para doenças graves na infância, como diabetes, hipertensão e cardiopatias (OMS, 2009).

Segundo Coutinho, Gentil e Toral (2008), as doenças crônicas não transmissíveis, por serem de longa duração, são as que mais demandam ações, procedimentos e serviços de saúde, gerando no Brasil uma sobrecarga do Sistema Único de Saúde (SUS). Os levantamentos epidemiológicos, igualmente demonstrados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), revelam que a obesidade infantil vem se constituindo como uma doença recorrente que perfaz caminhos diversos, o que torna o seu perfil enigmático. Deste modo, evidencia-se a necessidade de compreendê-la em diálogo com diferentes áreas de conhecimento.

O Brasil atravessou, nas últimas décadas, transformações no que diz respeito aos aspectos sociais, políticos e econômicos, o que sem dúvida alguma acarretou à população brasileira mudanças em suas condições de vida, particularmente, na nutrição. Vários autores (AZEVEDO e SPADOTTO, 2004; FRIEDMAN e ALVES, 2009; COUTINHO, GENTIL e TORAL, 2008) reconhecem que o Brasil atravessa a chamada “transição nutricional”. Neste contexto, a obesidade tem sido tomada como um desafio nos programas de saúde pública. Esses estudos apontam, por exemplo, uma relação inédita entre o quadro de desnutrição na infância e a obesidade.

As mudanças socioeconômicas e culturais, relacionadas, por exemplo, ao aumento no consumo de alimentos industrializados e uma rotina mais sedentária, são fatores considerados coadjuvantes no aumento de quadros de obesidade na infância. Porém, observa-se que existem controvérsias quanto às causas etiológicas e às perspectivas terapêuticas (OLIVEIRA e FISBERG, 2003; OLIVEIRA e CERQUEIRA, 2003; FRIEDMAN e ALVES, 2009).

Diante da atenção desprendida aos fatores ambientais, vinculados aos hábitos alimentares inadequados, o Ministério da Saúde, no intento de promover estratégias de controle da obesidade, lança, em 2009, a Agenda de Compromissos para a Saúde Integral da Criança e Redução da Mortalidade Infantil (BRASIL, 2009) e propõe como um dos eixos de atuação a linha de cuidados para uma “alimentação saudável e prevenção do sobrepeso e obesidade infantil”. Deste modo, as estratégias de prevenção da doença estão focadas na promoção do controle sobre o alimentar-se em excesso e o estilo de vida.

Ainda dentro das estratégias de atuação do Ministério de Saúde (2009/2010), a saúde da mulher é contemplada desde o pré-natal, cuidados no pós-parto e com o recém-nascido (RN). Deste modo, na primeira consulta do RN, os profissionais da saúde devem identificar a forma como a mãe planeja alimentar o filho até os 2 anos de idade ou mais. É ressaltada também a importância sobre a formação do vínculo afetivo da mãe-filho no momento da amamentação. Caso existam dificuldades decorrentes do aleitamento, a mãe é encaminhada para avaliação do médico e/ou para grupos de apoio à amamentação. Anjos (2006) ressalta que os estudos na perspectiva da saúde pública que associam amamentação e prevenção da obesidade sem controlar variáveis relativas às condições socioeconômicas devem ser interpretados com cautela.

Desde os tempos mais remotos até a contemporaneidade, os estudos filosóficos, sociológicos, antropológicos e etnográficos sinalizam transformações no ato de alimentar-se, de como convém alimentar-se e no tipo de alimento consumido. Portanto, a relação com o alimento sempre foi e nunca deixará de ser um sinalizador das transformações da história da humanidade.

Considerada a afirmação de Fernandes (2006, p.30) de que o importante não é ‘o que se come’, mas ‘como se come’, pode-se questionar o lugar que o alimento tem ocupado na contemporaneidade. A autora ainda ressalta que existe um deslizamento da questão da alimentação, em seu sentido mais amplo, para a do comportamento alimentar. Em acordo, compreende-se que a alimentação não pode ser estudada e considerada apenas em seu valor nutricional, deve ser compreendida a partir de seus aspectos subjetivos em relação à biopolítica e à dietética.

Nos dias de hoje, as práticas nutricionais são instituídas através de uma série de padrões e medidas-teste para monitorar o peso, o crescimento e desenvolvimento da criança (OMS, 2009). Diante destes padrões, inauguram-se “dispositivos de avaliação”, em que foram incluídas tabelas para detectar se as metas estavam sendo cumpridas ou não. Compreende-se que, diante da complexidade da obesidade, medidas como a introdução de uma terapia alicerçada em bases “corretivas”, instituída através de um controle alimentar de “treinamento autoinduzido”, parece não trazer à luz a resolução da problemática.

A ORDEM MÉDICA E A DIETÉTICA COMO INSTITUIÇÃO DO CONTROLE DAS PRÁTICAS ALIMENTARES

Foucault (1984), ressaltando o papel dos moralistas, filósofos e médicos na regulação das condutas do homem, propõe que são as questões sobre a dietética que também podem esclarecer a instituição de normas e condutas alimentares. Analisa as práticas dos antigos gregos sobre a moral do ato sexual, da alimentação e dos exercícios físicos, baseados em certo modo de cuidar de si mesmos. Reportando à cultura grega e latina, as práticas, que nomeia de “artes da existência”, investiga, nas manifestações do poder, a constituição deste sujeito e da sua relação com o desejo e institui a “história de homem de desejo”, com vistas a pensar os processos de subjetivação na modernidade (FOUCAULT, 1984, p.13-18). A partir da genealogia, entende-se que tais intervenções instituíram a normatização dos atos desde a Antiguidade.

As práticas de prazer, segundo Foucault (1984), eram refletidas pelos gregos do ponto de vista moral, não pelo ato em si, mas, sobretudo, “pelo desejo que leva ao ato, o ato que é ligado ao prazer, e o prazer que suscita o desejo” [...]. Uma das questões formuladas foi: “com que força se é levado pelos prazeres e pelos desejos?” (FOUCAULT, 1984, p.57). Refere-se ainda a uma preocupação da medicina da Antiguidade com a intensidade e frequência das práticas sexuais. Nesse instante, emerge um aspecto quantitativo, a “divisão entre o menos e o mais, a moderação ou a incontinência” (FOUCAULT, 1984, p.70). Assim como a prática sexual, a prática alimentar está sujeita ao excesso e se estabelece, igualmente, como um problema moral.

O alimento, a bebida e o sexo são pensados como operantes de regulação. Foucault (1984, p.66) questiona ainda “como se pode”, e “como convém se servir da dinâmica dos prazeres, dos desejos e dos atos”. A pergunta se faz em relação a uma medida, um limite que esclarece esse impasse com o outro, seja a bebida, o alimento, o sexo. Nas manifestações das relações do homem com o outro, esses elementos se mesclam e é através do controle das práticas que algo se interpõe para dar limites. No entanto, o que está em questão é o modo como esse limite deve se instituir como contenção de desejo. A identificação do sujeito sexual ao sujeito desejante está posta, como já suspeitava Foucault (1984).

No intuito de ponderar os excessos, tão naturais na “dinâmica dos prazeres”, os gregos da Antiguidade instituíram a “dieta” como dispositivo para controlar as práticas alimentares, sexuais e dos exercícios físicos. Do que se entende por dietética, Foucault (1984, p.128) assim a conceitua: “a dietética surge como uma espécie de medicina para os tempos de lassidão; ela era destinada às existências mal conduzidas e que buscavam prolongar-se”, ressaltando ainda que a dietética só se tornou um prolongamento da arte de curar a partir da instituição do regime, fomentado como modo de viver.

É verdade que o regime, para os gregos, não era tomado como algo que privasse o homem de seus prazeres, mas instituía condutas relativas à natureza dos fatos. Sobre isso, Carneiro (2004, p.3) elucida que:

Se Foucault sublinha a dietética como a arte de viver dos gregos [...] tudo isso configura um precioso instrumento de trabalho em torno da subjetividade, quando o limite do homem com o outro e consigo fica posto na báscula daquilo que ele come, representa e sustenta, em uma concepção dietética de existência.

A retomada histórica de Foucault (1984) vem prestar considerações importantes acerca de uma economia dos prazeres. O alimento, assim como o sexo, era controlado por razões que se ordenavam em consonância com interesses da época.

Na contemporaneidade, esse controle também se faz em decorrência de questões políticas, porém, a diferença está no fato de que a imposição da ordem e da conduta provém de uma tentativa de redefinir o sentimento social dos sujeitos, através de manobras já instituídas. Isso é o reverso de suplantar no homem a atenção para o seu ser e a tomada de consciência de seus atos. A normatização das práticas ilustra a perspectiva de controlar, principalmente, o dito excesso de comer. Curiosamente, o alimento tomou um lugar central, atributo antes relacionado às práticas sexuais.

A dietética pode se colocar em um lugar importante para discutirmos o dito excesso do comer presente na obesidade infantil. O que se aponta neste cenário é um “impasse” (CARNEIRO, 2004 p.3) na relação com o outro, pautada através de limites controladores do uso dos prazeres.

Jurandir Freire Costa (2004) avalia que “com o intento da universalização de novos valores, e através da convicção de que o Estado era mais importante que a família, os antigos dispositivos buscaram orientar os sujeitos para novos fins” (COSTA, 2004, p.23). Aponta ainda que os atos político-científicos de outrora persistem na contemporaneidade como terapêuticas que instituem uma vigilância na família, ascendendo-a como incapaz de cuidar de seus próprios filhos, a exemplo da medicina higiênica do Brasil colonial: as mães que não cuidavam bem dos filhos e não obedeciam aos ditos da higiene eram consideradas faltosas e irresponsáveis.

Paradoxalmente, a ignorância devia ser mantida e até estimulada, “pois foi sobre ela que a higiene se apoiou para remanejar as relações de poder dentro da família sem ser vista como intrusa ou inimiga” (COSTA, 2004, p.47). Deste modo, foram instaurados novos modos de modelagem da vida privada da família, muita vezes, “contornando as vicissitudes da lei” (COSTA, 2004, p.63).

O autor ainda discorre que o cotidiano da mulher foi regulado através do aleitamento materno, instituído como um modo de diminuir a mortalidade infantil: a mãe que não amamentava seu filho e descumpria o “figurino higiênico” (COSTA, 2004, p.72) era taxada como um ser que contrariava as leis da natureza. Era necessário que um modelo de “mãe amorosa” surgisse, restituindo-a no “universo disciplinar”. 

Neste projeto, o poder público e seu discurso se fortalecem a partir da desautorização da própria família de cuidar de seus interesses e a mãe é escolhida para desempenhar o papel principal de reguladora dos hábitos alimentares e cotidianos do filho (COSTA, 2004).

Se Foucault coloca que foi a partir da instituição das práticas discursivas que o homem era levado a se reconhecer como homem de desejo, Jean Clavreul (1978, p.35) acrescenta que:

Colocar-se à escuta do que se diz e do que nós mesmos dizemos, fazer a experiência do discurso, é fazer também a experiência do Inconsciente, que só é estruturado como uma linguagem pelo fato de que é seu efeito, o reflexo ao avesso do discurso dominante, enquanto este é constituinte do recalcamento. Não se trata aí de um procedimento científico, médico. É, mesmo, exatamente o contrário.

Os autores nos convidam a pensar que é próprio do discurso dominante oscilar, simultaneamente, entre a potência e a impotência. Esta oscilação está igualmente submetida às leis do inconsciente; e, se o inconsciente é estruturado como linguagem, como já anunciara Lacan (1963-1964/1998), o que se apresenta como verdade nos discursos depende de um modo de estruturação que não está sob controle ininterrupto de nenhum tipo de racionalidade.

MÉTODO

Com vistas a estabelecer um contraponto com os significados atribuídos pela mãe da criança à obesidade da criança e o discurso que sustenta as práticas médicas de intervenção junto à infância com problemas de obesidade, realizou-se uma pesquisa qualitativa, por meio de levantamento bibliográfico e de campo.

A pesquisa de campo foi realizada no Instituto de Promoção da Nutrição e do Desenvolvimento Humano (IPREDE), no Município de Fortaleza, no período de abril a junho de 2010. A escolha pelo local foi feita pela existência do Programa de Prevenção à Obesidade Infantil. Os atendimentos no programa não se limitavam somente às crianças, mas também eram oferecidas atividades às mães através de grupos de psicoterapia, ensejando um suporte psicológico, bem como oficinas de culinária com a equipe de nutrição, que estimulava modos mais criativos ao ato do alimentar.

Após incorrer aos trâmites necessários e receber a autorização do Conselho de Ética - COÉTICA (Parecer: nº 050/2010), para  inserção no local e realização dos contatos e entrevistas com as mães, começou-se com um grupo frequentado por 08 mães, mas, destas, somente 04 compareceram aos encontros. Foram excluídas da amostra mães de crianças que apresentavam comorbidades associadas à obesidade. As entrevistas foram seguidas através de um roteiro semiestruturado e de um diário de anotações. Os encontros aconteceram no próprio IPREDE, em sala reservada às entrevistas, com duração média de 50 minutos cada.

Deste modo, propõem-se dois momentos, o primeiro com a entrevista semiestruturada, apoiada em um questionário com questões abertas; o segundo, um momento para que as mães expusessem suas histórias de vida e ansiedades, quando foram ou não retomadas as questões do primeiro encontro.

Os dados colhidos nas entrevistas foram analisados qualitativamente. Os resultados foram comparados com as informações relevantes oferecidas pelos teóricos pesquisados. Entende-se por análise qualitativa aquela na qual os dados serão interpretados de forma interrelacional, buscando identificar e relacionar as informações obtidas através do que foi verbalizado nas entrevistas (MINAYO, 2006).

Como técnica para esta análise, foi utilizada a Análise de Discurso, no intuito de investigar nas produções dos sentidos os significados atribuídos à problemática em questão. Segundo Spink (1999, p.42), “essa prática é social, dialógica, que implica a linguagem em uso. [...] e busca entender as práticas discursivas que atravessam o cotidiano como repertórios utilizados nessas produções”.

Ainda que não se trate de uma pesquisa clínica, as mães foram escutadas contemplando suas histórias e os significados atribuídos à obesidade dos (as) filhos (as). Para tanto, o recorte das falas foi analisado a partir do referencial psicanalítico, ressaltando-se as obras de Freud e Lacan, bem como autores que se articulam com o tema em questão.

Neste estudo específico, elegeu-se a categoria que discute os significados atribuídos pelas mães às intervenções do Programa de Prevenção à Obesidade (IPREDE). Os eixos de investigação da presente categoria foram organizados a partir dos discursos das mães sobre a problemática dos filhos, bem como dos motivos alegados para buscarem o serviço em questão. O que se coloca em cena não é o modus faciendi do Programa, e sim como as mães o interpretam e o elaboram diante do universo que se descortina, a partir de suas queixas e demandas.

No intuito de compreender a implicação subjetiva das mães no tratamento de seus filhos e os sentidos por elas atribuídos às intervenções, partiu-se da necessidade de situar a dupla mãe-filho no contexto dos cuidados médicos. Diante do que foi exposto neste recorte de falas, apontamos alguns aspectos que referenciam as questões decorrentes da normatização e condutas.

DESDOBRAMENTO DO ESTUDO

O contraponto feito pela teoria psicanalítica é trazido para a análise das falas das mães também como objetivo de revelar aspectos subjetivos das mães presentes na problemática em questão.

Observa-se que as entrevistadas indagadas sobre o motivo de procura pelo programa revelam preocupações em relação à aparência física do(a) filho(a) e sua aceitação social. Inicialmente, as mães tentaram elaborar um enquadramento da criança às questões que o programa trazia como diagnósticas à obesidade. Reconhecem que seus (suas) filhos(as) estão com excesso de peso, mas, mesmo diante deste reconhecimento, não conseguem justificar os motivos que as moveram até a instituição.

Diante das falas, evidencia-se um paradoxo onde é revelado um “já saber fazer” ao mesmo tempo em que emerge um “não saber” diante das questões que acometem seus filhos. As orientações do Programa são conhecidas e repetidas no discurso das mães, mas, na maioria das vezes, permanecem negadas, expressas, por exemplo, na seguinte afirmativa de uma das mães: “eu sei [referindo-se ao que deve oferecer como alimento ao filho], mas mesmo assim...”. Ainda que reconheça que o filho está “gordo”, uma das mães afirma categórica que não está no Programa para que algo seja mudado, dizendo: “mudei foi nada!”.

Permanece a pergunta: o que fez essa mãe procurar o Programa? De que modo o trabalho realizado poderia deslocar esta mãe de uma tal posição? Convém avançar a partir da distinção freudiana entre conhecimento construído e conhecimento comunicado (FREUD, 1914-17/1980). A comunicação feita ao paciente, fora de seu processo de elaboração, pode produzir como efeito o incremento das resistências, portanto, a manutenção da sua negação. Pode-se concluir que as orientações comunicadas às mães podem suspender o suposto desconhecimento não implicando, portanto, na aceitação do que se passa em nível inconsciente.

Outro efeito produzido pelas recomendações que partem do pressuposto da ignorância dos pacientes, como nos ensina Lacan (1961-62), é a obediência àquele que é suposto saber. As mães, a partir de suas posições subjetivas, apresentam-se desprovidas de saber e respondem à oferta do Programa, afirmando a importância de uma “pessoa para orientar”. Percebem que são colocadas como responsáveis diretas pelo controle da alimentação dos filhos. Mas é através da negativa que emerge a verdade sobre as suas implicações subjetivas no quadro. Todavia, muitas vezes, tais implicações ficam intocadas pelo trabalho de orientação.

A questão da amamentação – valorizada pelo discurso médico - e a culpa referente ao descumprimento deste ato também emergem. São elaboradas teorias sobre as relações entre o amamentar considerado insuficiente e os problemas de saúde apresentados na infância, tais como: a obesidade, as “reações químicas” e os “problemas de pele”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através do diálogo com Foucault (1984), Costa (2004), Clavreul (1978) e as considerações do campo psicanalítico, observa-se que as questões relativas ao ato do alimentar-se se mostram na mais inteira complexidade.

Em um primeiro momento das entrevistas, as mães se colocavam como expectadoras da situação que acometia seus filhos e delegavam ao saber médico e/ou aos parentes a função de monitorar as suas ações frente à problemática do (a) filho (a). Pouco a pouco, outras questões que se colocavam em cena, tais como: problemas familiares e impasses na relação com os companheiros, onde ressaltavam a existência de fatores que, segundo elas, contribuíam com a obesidade do (a) filho(a). Ainda que este não fosse o objetivo da pesquisa, o espaço de fala criado pelas entrevistas proporcionou, em alguns casos, condições para a abertura de questões quanto às suas posições subjetivas.

A percepção inicial de que o saber médico mantinha a mãe em posição de submissão foi se deslocando para a percepção dos ganhos secundários com esta posição, por exemplo: o saber dos especialistas permitia a manutenção da sua pseudoignorância, sustentava a sua posição denegatória, permitia que ela continuasse delegando a outros a reflexão sobre a sua problemática e de seu filho(a).

Pensa-se que a entrada de um discurso dominante – trazido por nós como o discurso médico – pode se estabelecer como um impasse para a mãe que não autoriza a entrada desse terceiro na sua relação com o filho. Os discursos das mães entrevistadas portam significados singulares sobre o que acometia seus filhos. As verdades produzidas por cada uma delas guardavam a ambiguidade apontada por Clavreul (1978), qual seja: ora revelavam a submissão destas ao discurso dominante ora claramente apontavam para suas recusas.

O campo apresenta-se fértil para a pesquisa frente à complexidade da problemática e aos limites desta investigação. Acredita-se possível o diálogo entre os modos de pensar o controle alimentar por meio da dietética, da psicanálise e das práticas de saúde, principalmente no que se refere às condições para se conduzir intervenções capazes de levar em consideração o sujeito em questão e sua relação com o desejo.


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SPINK, M. J. P. Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricos metodológicas. São Paulo: Cortez, 1999.

Recebido: 10/2011
Aceito: 12/2011

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