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A POÉTICA DO RÁDIO PARA JACQUES COPEAU E PIERRE SCHAEFFER: A VOZ ÍNTIMA

ALEXANDRE SPERANDÉO FENERICH
Flautista, compositor, pesquisador e sound designer. Tem um trabalho musical voltado para a investigação da escuta e suas relações com o olhar e o corpo. Compositor de música eletroacústica, trabalha neste campo musical desde sua graduação em música, na Unicamp. Teve uma passagem pelo Rio de Janeiro, onde fez um mestrado em música eletroacústica com Rodolfo Caesar e mantém vínculos de criação com Tato Taborda, Mauro Costa, Virginia Flores e Denise Milfont. Em São Paulo, está concluindo um doutorado em musicologia, e pesquisa a obra fundadora da música concreta, a Symphonie pour un Homme Seul. Além disso, ali criou com Giuliano Obici o duo de experimentações audiovisuais N-1, no qual alia as experiências para ver-ouvir, em performances ao vivo (n-1.art.br).


Resumo: Pierre Schaeffer e  Jacques Copeau  constroem a noção de escuta da intimidade própria da emissão vocal no rádio,  em especial na situação da leitura poética ou dramática. Definem assim uma outra forma de escuta, articulada a maneiras bem definidas de uso da voz – diferenciando-a da voz do ator no teatro – e na relação determinante com as características técnico-ambientais do microfone, da transmissão radiofônica e da gravação sonora. Esta pesquisa da poética da voz radiofônica é contemporânea da criação da música concreta por Pierre Schaeffer.
Palavras-chave: criação de um outro modo de escuta;  escuta da intimidade; a poesia na voz radiofônica; microfone; transmissão radiofônica; gravação sonora.

THE POETICS OF RADIO IN JACQUES COPEAU AND PIERRE SCHAEFFER: THE VOICE OF INTIMACY.

Abstract: Pierre Schaeffer and Jacques Copeau build the notion of intimacy listening, proper  to the vocal emission in radio, especially  in the situation of poetic or dramatic readings. Thus they define a way of listening, linked to  a particular use of the voice - differentiating it from the actor’s voice in the theater - and in a determining relationship with the  technical and environmental characteristics of the microphone, radio broadcasting and sound recording. This research of the poetics of radiophonic voice is contemporaneous to the creation of concrete music by Pierre Schaeffer.
Keywords: the creation of a mode of listening; intimacy listening; the voice of poetry in radio; microphone; radio broadcasting; sound recording.

Quando o menino que eu fui trazia em seus ouvidos a concha [le coquillage] que Valéry disse se destacar da desordem ordinária do conjunto das coisas sensíveis como um som puro, ou um sistema melódico de sons puros em meio aos ruídos(1), não achava estranho, bem o contrário, que o rumor dos oceanos se mostrasse. Na astúcia dos adultos – esses grandes dissimulados – há sempre o indício de alguma confidência. Na credulidade das crianças, guiadas por um instinto certeiro, há quase sempre pressentimento. (SCHAEFFER: 1970, p. 90) (2)

A noção de uma escuta da intimidade a partir do som mediado aparece enquanto reflexão na obra de Pierre Schaeffer no cerne da investigação pela criação radiofônica, que caracterizou sua produção de 1942 até meados dos anos 50. Esta pesquisa é, assim, anterior e, em parte, simultânea da música concreta. Tal noção surge em meio a uma poética do rádio, ou seja, de uma série de reflexões para a sua abordagem estética. A noção de escuta da intimidade provém da formulação da especificidade da emissão vocal no meio radiofônico, na situação da leitura poética ou dramática: é contra uma “cabotinagem” (SCHAEFFER: 1970, p. 100), uma afetação e uma impostação de todo herdadas da (má) interpretação teatral, mas também da própria condição espacial e social do teatro – realizadas, a seu ver, erroneamente, no radio - que seu pensamento irá se insurgir. Três ideias, então, serão o eixo do entendimento deste pensamento, e, ao nosso ver, irão transpassar até as noções de escuta levantadas pela própria música concreta: 1) o radio como meio acusmático por excelência, que fala “diretamente aos ouvidos” e que cria uma nova condição de escuta 2) a escuta acusmática como exercício de imaginação pela expressão mesma de uma ausência 3) o microfone como uma lupa sonora, que capta os mínimos gestos da voz, sendo assim o meio para a expressão da intimidade. Desta forma, uma reunião destes três vetores leva a uma situação poética que em tudo difere do teatro. Mas as retomaremos mais tarde. 

Por agora, tracemos uma genealogia de uma escuta da intimidade no pensamento schaefferiano anterior à música concreta. Tal noção coloca-se em um texto provavelmente escrito entre 1943 e 1946 (3), as Notes sur l'expression radiophonique. Dentre outras questões, ele comenta as ideias do teatrólogo francês Jacques Copeau acerca da interpretação para o rádio. Tais ideias aparecem após um “estágio de formação sobre as artes radiofônicas”, idealizado por Schaeffer, em que Copeau teria sido convidado a dirigir, em Beaune, 1942 (GAYOU: 2007, p. 24), e que estão sistematizadas na forma de um curto texto escrito por ele em 1943 (4). Este estágio teria sido uma “experiência essencial” para o jovem diretor radiofônico Pierre Schaeffer (GAYOU, idem, ibidem), de tal modo que a concepção da interpretação para o rádio, colocadas no texto de Copeau, ressoam vividamente no texto schaefferiano escrito mais tarde. De fato, o texto de Copeau é extensivamente citado no de Schaeffer, amparando muita de suas colocações.

Ambos os textos foram produzidos no contexto das atividades do Studio d'Essai, “laboratório de arte radiofônica e centro de formação profissional” (GAYOU: 2007, p. 26). Foi através desta instituição que o Estágio de Beaune, como ficaria conhecido, foi realizado. Além disso, o estúdio produziria, dentre outras coisas, uma série de peças radiofônicas cujo modelo seria o Hörnspiele alemão: de fato, em 1936 Schaeffer viajou às rádios alemãs, e concluíra que a produção deste país estaria “bem à frente da França em matéria de expressão radiofônica” (idem, ibidem), descobrindo que lá a “peça de escuta” (Hörnspiele) já seria um gênero consagrado. Não é por acaso que sua primeira grande obra artística, a“ópera radiofônica”(5) La Coquille à Planètes, de 1944 [“Suíte fantástica para uma voz e doze monstros”, em oito emissões radiofônicas gravadas no Studio d'Essai de la Radiodifusion Française], “oito composições sonoras baseadas tanto por ruídos, ambiente e música (composta por Claude Arrieu) quanto por texto” (BRUNET: 1969, p. 219), seria, em realidade, uma peça radiofônica na qual elementos de cenário sonoro, com técnicas de edição e criação sonora no meio radiofônico, são criadas e exploradas ao limite.

Mas o Studio d'Essai não produziria exclusivamente “peças para ouvir”: uma parte importante de sua criação consiste em simples leituras de textos literários, algumas vezes realizadas pelos próprios autores (Apollinaire, Aragon, Bachelard, George Bernanos, Paul Claudel, Albert Camus...(6)) , outras vezes narradas por atores. É justamente sobre a particularidade da atuação para o rádio que o texto de Copeau se concentra e que o texto de Schaeffer faz ressonância. Há, por parte destes criadores de um estilo radiofônico na França, uma tomada de consciência da particularidade da voz radiofônica para textos literários, e que, pela reflexão sobre este meio, acaba por ter muitos pontos de encontro com a noção que aqui trabalhamos: a escuta da intimidade. Tracemos então uma trajetória por estes dois textos que nos são fundamentais para o entendimento da poética da voz na obra schaefferiana.


Afirmamos acima que os textos de Schaeffer e de Copeau nos levam a entender que “o radio é o meio acusmático por excelência, que fala 'diretamente aos ouvidos' e que cria uma nova condição de escuta”. Mas que condição é esta? Para ambos os teóricos, o rádio abre a escuta para situações não mais restritas a espaços públicos ou sociais, como o teatro e a sala de concertos, mas a espaços privados, o espaço da casa, no silêncio da solidão. Para Schaeffer, o rádio carrega outros ambientes e eventos, simultâneos ou gravados, para um lugar que, na vida de seus ouvintes, é um espaço da intimidade. Para ilustrar esta condição hipotética, lança mão de uma imagem: cria uma longa parábola acerca de um solitário personagem; no caso, ele mesmo:

A rua é deserta, o último trabalhador regressa, uma criança traz o pão e um magro quarto de leite neste subúrbio pouco movimentado onde estamos instalados. Meus passos ressoam sozinhos entre as portas e as janelinhas fechadas do inverno. É, então, que uma voz em tudo diferente das vozes da região, revestida com uma maquiagem de objetividade, uma voz em sapatos de verniz e com casaca, que toma muito cuidado da sua pronúncia, a qual se está disposto a tudo perdoar, salvo um ligeiro tropicão se ela vier a se deter em alguma sílaba, uma voz, dizia eu, que aparece de um lugar a outro com a regularidade fatigante das lâmpadas elétricas.  Da mesma forma que entro e saio deste halo luminoso dos refletores, caminho ao redor deste escoamento de palavras inteligíveis. E, enquanto que meus olhos me dirigem, meus ouvidos, de quem nada exijo, se engajam por sua conta própria neste jogo de esconde-esconde obsedante, deleitando-se como que contra minha vontade destes propósitos exteriores ao mesmo tempo familiares e obsequiosos, de sorte que, se eu tivesse qualquer tendência a me separar do mundo, a me desinteressar de tudo que se passa, não poderia evitar este apelo que me infligem as soleiras mais recônditas, as janelas mais bem fechadas, as portinholas mais ciumentas.
(…) Chego em casa, respiro, mas nem bem fechei a porta, nem bem coloquei a mão no interruptor, e o aparelho, sempre ligado na tomada, inicia discretamente. Mudo por alguns instantes, ele introduz pouco a pouco sua partitura para uma orquestra longínqua, mas sempre perceptível nas redondezas. É a sua vez de fazer o turno de sentinela. Por sua vez, do ruído que ele traz agora posso comprazer-me sem escrúpulo, já que é para o meu cálculo pessoal que é feito, é à minha operação que ele atua. Eu não sou mais violentado, mas voluntário. Obedeci à fórmula do feiticeiro, que faz acreditar, como em todas as fórmulas mágicas, que se tem o uso pleno de uma liberdade alienada.

Que se passa então, exatamente? Eu estou isolado e não estou só. Estou em casa e estou fora. O que eu faço não sou eu a fazer. Se eu escuto, escuto apenas de um ouvido. Se afirmo que aquilo que faço escutar aqui é sem interesse,  todavia persisto. Se eu fingir não escutar, abandono no depósito, como um trapo, o campo da minha consciência. Esta dispersão de mim mesmo, esta divergência de minha atenção, isto que vem a ser tão rapidamente uma mania tenaz, deve se comparar mais ao uso do tabaco, do álcool ou do romance policial, que à apreciação de uma arte. Literalmente, o rádio nos invade. Tornando-se nosso pensamento, ele possui uma virtude, justamente a da ubiquidade. Não é suficiente dizer que ele nos traz o mundo a domicílio ou, inversamente, que ele nos leva a algum lugar na terra que gostaríamos de estar; deve-se dizer que ele conjuga ao mesmo tempo o 'aqui' e o 'algures', o este e o aquele, nossa própria atividade e aquela de outrem, em um desdobramento da atenção. (SCHAEFFER: 1970, p. 94-95).                  

Temos, da reflexão do personagem schaefferiano, que a escuta do rádio não traz apenas o exterior ao interior, o evento externo à casa: ela cria uma espécie de Berceuse; escuta desatenta, acalentadora, que preenche a consciência de seu ouvinte e o põe em estado de devaneio. Em Bachelard, esta é uma atividade em que a consciência “se distende, se dispersa e, por conseguinte, se obscurece” (BACHELARD: 2001, p.5); em que “a dualidade do sujeito e do objeto é irisada, reverberante, incessantemente ativa em suas inversões  (BACHELARD: 2000, p.4). Para o filósofo, ela é similar ao estado de consciência criado pela leitura da poesia. Não é uma atividade do espírito sob a vigília do racional, mas, mesmo, um obscurecimento do real em favor do mundo que lhe é apresentado, seja pelo texto poético, seja, no nosso caso, pelas imagens sonoras trazidas pelo rádio:

O homem do devaneio e o mundo de seu devaneio estão muito próximos, tocam-se, compenetram-se. Estão no mesmo plano de ser; se for necessário ligar o ser do homem ao ser do mundo, o cogito do devaneio há de enunciar-se assim: eu sonho o mundo; logo, o mundo existe tal como eu o sonho. (BACHELARD: 2001, p. 152).

Ao lançarem mão de fórmula similar para descreverem a escuta radiofônica, Copeau e Schaeffer inventam, assim, uma qualidade ideal de escuta, que será aproximada ao estado da leitura poética, em que “se está aqui e se está fora”; “se está isolado e não se está só”. E, de fato, no texto de Jacques Copeau a poesia, e certa poesia, é colocada como gênero privilegiado para a escuta e a criação radiofônica:

Certos textos são, mais do que outros, designados a tomarem o caminho da emissão radiofônica. E não creio que sejam forçosamente os mais medíocres. Ao contrário. Na primeira categoria eu colocaria os textos de poesia e, dentre eles, os mais delicados, os mais sutis, aqueles que se exprimem de maneira íntima e confidencial. (COPEAU In: SCHAEFFER: 1990, p. 79)

Evidentemente, para estes autores o rádio não deve exclusivamente transmitir leituras ou criações poéticas: apenas, em certa medida, a leitura poética parece indicar um caminho geral para a estética da voz no rádio, por conta, nesta, de sua particular situação de escuta, cuja parábola schaefferiana parece ilustrar bem: uma escuta doméstica, privada, e, diríamos, idêntica à situação de “escuta” do livro de poesia; de uma voz que nos fala individualmente, e não a um grupo:

O radio é um instrumento que te fala ao ouvido em uma câmara silenciosa... é um instrumento que permite ao poeta se encontrar na casa de milhões de ouvintes, no mundo inteiro, e de lhes fazer sua confidência elevando muito pouco a voz. Quando se reflete sobre isso, nota-se que há um fenômeno que toca verdadeiramente numa maravilha que me parece estar totalmente de acordo com a natureza da poesia... (COPEAU In: SCHAEFFER: 1990, p. 79).

Ora, a voz da poesia pode se dar a altos brados (pensemos, por exemplo, em Maiakóvski). Aqui, porém, busca-se uma outra qualidade: é a de um falar ao pé do ouvido, da comunicação discreta e interpessoal; poesia privada, e não pública. Devemos nos lembrar que ambos os textos foram escritos no contexto da ocupação alemã, e que Schaeffer atuara ativamente na resistência (o Studio d'Essai foi uma organização que sempre transmitiu tanto a voz de poetas proibidos (Paul Éluard, Louis Aragon, Jean Tardieu ou Albert Camus) quanto de músicos exilados (como a transmissão de Pierrot Lunaire, de Shöenberg). Além disso, o próprio Schaeffer fez a radiodifusão dos apelos às armas dos líderes da resistência, na Libertação de Paris: cf GAYOU: 2007, p. 34 e 35). É de se esperar que o estilo schaefferiano em tudo fosse contrário ao modelo das transmissões de discursos hitleristas da época da ocupação – dirigidos sempre a multidões, e aos brados. Certamente, tal modelo deveria lhe causar arrepios. Mas não é necessário ir tão longe: a voz para o rádio, nas palavras de Schaeffer, se opõe até mesmo à voz teatral:

Tudo, com efeito, deve opor o teatro ao rádio: o modo de escolha de um assunto, a maneira de o decupar em atos, em cenas, o cultivo de um cenário, a técnica da voz e, naturalmente, a mímica. O teatro apresenta uma ação artificialmente organizada, inflada, em um lugar dramático onde comunicam os espectadores e os celebrantes. Nós vamos a ele como a uma festa; da mesma forma que nos asseamos, adornamos igualmente o nosso espírito, nos preparamos com o nosso melhor a fim de atuarmos em um papel duplo, de espectadores diante dos atos, de personagens nos entre-atos. A cena no rádio é o mundo inteiro; seu público, um homem só. (…) É preciso arrancar pouco a pouco de suas preocupações cotidianas um ouvinte de pantufas, e o colocar (…) em estado de recolhimento.  (SCHAEFFER: 1970, p. 99).

Trata-se, assim, da tomada de consciência de uma diferença fundamental entre ambos os espaços de projeção da voz: no teatro, o ator dirige-se a uma platéia que o vigia, mas que é também vigiada. A atuação se dá dos dois lados: não se espera de um espectador moderno, por exemplo, que interrompa a cena com manifestações mais largas do que uma risada ou o bater de palmas. Mesmo a vaia é tida como um arroubo excessivo. Para estes autores, a cena radiofônica atinge os espectadores no estado desarmado de sua privacidade. A emoção, ali, não é espetáculo; os arroubos da recepção não precisam ser contidos ou, ao contrário, performatizados, e, em tese, podem ser intensamente vividos pelo ouvinte.

A reflexão anterior concerne aos diversos modos de recepção da voz;  a reflexão que segue refere-se ao tipo de atuação em ambos os espaços:

Enfim, desde de tempos imemoriais, tendo ou não suas máscaras como porta-vozes, os atores de teatro são criados e postos no mundo para parecerem falar naturalmente. Sob uma cena exposta a mil olhares, eles representam a solidão, a conversação íntima, até mesmo a clandestinidade. No rádio, se diz “Fulano te fala”, e ele te fala realmente, somente a você, na sua casa, e bem perto de ti. Será normal que ele clame aquilo que ele havia te dito com uma voz feita para chegar ao 'galinheiro' [galerias superiores do teatro]? (SCHAEFFER: 1970, p. 99).

A voz, enfim, é outra por ser outro o meio e outro o espaço onde ocorre a escuta. Ao expor um monólogo interior ou um diálogo íntimo, no teatro (ou, ao menos, no teatro tradicional de 1944) é improvável que se sussurre, pois a voz não alcançará os ouvintes das últimas cadeiras: são as atitudes corporais e faciais do ator, o cenário, ou mesmo a presença ou a ausência de música que denunciarão o teor íntimo de uma tal cena. No rádio, todavia, embora evidentemente não estejam presentes estes elementos visuais da atuação, é possível ter uma pura modulação da voz de normal para o sussurro, e isto faz com que se module muito facilmente da cena pública para a privada:

(…) [O rádio] parte sem dificuldade para a digressão, o comentário; ele sai e entra à vontade no tempo objetivo. Já que é assim com o tempo, também o é com o espaço. Constantemente, ele traça o ponto de suas coordenadas: tal instante, tal lugar. “No momento em que vos falo, caros ouvintes, estou em Nova Iorque, no Carnegie Hall...”, “Esta tarde, no estádio Jean Bouin...” Mas o recitante pode dizer também: “Então, o rapaz parou de falar. Ele sonhou (ou melhor, “sonha”), ele se perguntou (ou “se pergunta”) se fez (ou “faz”) bem de...” E, mesmo, sem que a intervenção do recitante seja necessária, o rapaz pode deixar de falar para sonhar, passar do diálogo com seu parceiro para o monólogo interior. No estúdio, neste caso, pediremos ao ator para se aproximar do microfone, para fazer um primeiro plano [gros plan], a fim de eliminar todo o ruído, toda a ambiência da sala. Eventualmente, providenciaremos um acompanhamento musical. Assim, procuraremos, por instinto, deixar para trás qualquer tempo e espaço. E é no momento preciso em que se apaga o cenário sonoro que se abre o “espaço interior” [l'espace du dedans]. (SCHAEFFER: 1970, p. 112).

Pouco a pouco adentramos naquilo que estes textos tomam da situação da criação radiofônica, bem distinta da criação teatral. Ali o ator ou o recitante se vê sozinho diante de uma máquina que capta o seu mínimo gesto vocal. O foco na voz vem assim a ser realizado pela presença deste novo protagonista: o microfone. Sua manipulação por sentidos diversos a partir da captação vocal exige uma outra técnica e uma outra estética, tanto dos atores quanto dos técnicos. Trata-se de uma situação nova: aliado da voz, o microfone é, todavia, um inimigo do ator treinado a arroubos vocais. É um censor implacável: um grito muito forte ou um desvio de seu eixo o farão transduzir um som inaceitável. Mas para o ator acostumado com o palco, a ausência de interlocutor externo pode ser a dificuldade maior a ser ultrapassada:

Os jovens atores tornam-se perturbados diante deste vazio, deste nada. Eles patinam [ils nagent]. Eles decaem [ils battent de l'aile]. Eles procuram um ponto de apoio, crêem encontrar em algumas atitudes de teatro que os fazem se orientar para os parceiros, e se desviam do microfone. (COPEAU, idem, ibidem)

Na poética de Copeau e Schaeffer, estas duas dificuldades (os limites técnicos do microfone e a ausência de interlocução) devem se transformar em valor. Em Copeau, esboça-se um guia quase metafísico ao ator diante da prodigiosa tarefa da atuação totalmente concentrada na voz, e com a ausência de um interlocutor “vivo” e externo, que o modula. Este guia acaba, pouco a pouco, por criar um corpo imóvel, moldado pela performance vocal. Em primeiro lugar, acentua-se aquilo que é dispersão na atuação diante do microfone:

O microfone, como o microscópio e como a câmara, aumenta, acusa, exagera tudo o que captura. Diante do microfone, deve-se reprimir os hábitos do jogo cênico: a gesticulação (que se nota), os ataques abruptos (que produzirão  insegurança), os bruscos desvios de tom (que prejudicarão a percepção distinta). Em todos os tons, deve-se sustentar a emissão da voz, visto que nem a mímica do rosto ou do gesto estão ali para completar o sentido, para tornar inteligível pelo jogo aquilo que não é nitidamente audível pela dicção. (COPEAU, idem, ibidem)

Schaeffer traça com humor os domínios desse mandarim severo, e não resistimos em colocar aqui o seu chiste ao descrever uma atuação em que se exige, a um tempo, uma grande versatilidade vocal e uma imobilidade extrema:

Engajado em um diálogo, afinado [acordé] com meu parceiro, nem eu  tenho um pensamento para ele, nem ele o tem para mim. Nossas vozes se entrelaçam, nossos olhares se ignoram. É o microfone que me atém, é o microfone que o atém; é a esta máquina aparentemente inerte que cada um de nós confia o calor de sua alma. Ele me vigia, ele o vigia, grava o menor movimento, oscila [bronche] à menor alteração de distância, à menor mudança do ângulo incidente. O falante ao microfone se sabe submetido ao mesmo espinhoso rigor de um salmodista que rende homenagem ao deus Coat-Coat em cima de um braseiro, empoleirado sobre uma rede [escarpolette] cujas cordas os padres auxiliares estão prestes a cortar ao primeiro sinal de erro de prosódia. (SCHAEFFER: 1970, p. 101).

Diante desta nova situação para o ator, certamente delicada, Copeau sintetiza o que deve ser a atuação no rádio:

A arte do radio é, assim, nitidamente um retorno à dicção. A interpretação diante do microfone é uma leitura. (COPEAU, idem, ibidem)

E, em seguida, enfatiza a condição que o ator deve encontrar em si a fim de poder enfrentar este ditador implacável, invertendo os pólos e tirando desta prática uma potente forma de expressão:

A atitude diante do microfone é uma atitude puramente interior. A voz se apega ao microfone, faz corpo com ele. Ela não flutua mais em espaços inumanos, ela é senhora de si, proporcional à sua compreensibilidade [dans son entendu], à sua percussão, ao seu volume.

Com este tom moderado, este tom discreto e bem íntimo em que se inserem as menores inflexões de uma voz, as menores nuanças de uma sensibilidade e mesmo os menores tiques de uma pessoa, o ouvinte acreditará conhecer, depois de algum tempo, e melhor que se houvesse visto seu rosto, tão bem o personagem que lhe fala; somente este tom lhe abre um considerável campo à arte do microfone; um campo que a ele é próprio, que a ele é exclusivo. (COPEAU: idem, ibidem)

Cria-se desta forma um espaço da intimidade a partir deste ouvido hiper-sensível. Em Copeau, o microfone funciona, assim, como um espelho, transduzindo e amplificando as menores inflexões vocais, que retornam ao emissor. Ele adiciona dois fatores: em primeiro lugar, separa o som do gesto corporal, ou seja, o domínio visual do sonoro, sedimentando somente este último. Enfatiza, desta forma, tanto o fazer quanto o escutar dos sons vocálicos. Por si só, tal aspecto já amplifica o gesto vocal pelo simples fato da concentração, tal qual a luneta amplifica o campo visual por concentrá-lo em um único ponto (SCHAEFFER: 1970, p. 103). Em segundo lugar, ele amplia detalhes do som que na escuta direta encontram-se em amplitude muito baixa. Todo o sistema de captação e projeção sonora amplifica o sinal elétrico que transduz. Com isso torna perceptível aquilo que era inaudível num espaço acústico, como numa sala de espetáculos. Mínimos gestos vocais passam a ser transmitidos, e se tem a presença, acentuada pela concentração e amplificação, de uma voz traduzida em seus detalhes. Ora, um ator ciente desta potencialidade pode extrair daí um contundente campo expressivo. Transformando as restrições do meio em potência, sua atuação ao microfone pode transforma-se em uma renovação:

Aliviado do zelo da memória por ter o texto na frente de seus olhos, livre do medo por atuar em uma câmara fechada, só depende de si e de sua própria inspiração, já que a reação do público não o alcança mais; preservado dos acidentes materiais do cenário, dos costumes ou dos acessórios, que sempre tiram as bases de um ator no palco, enfim reduzido à sã nudez, purificado pelo tête-à-tête com o texto, que só alimentará sua inteligência e sua sensibilidade, além disso, condenado a uma imobilidade que deverá ser para ele a garantia de uma concentração intensa, à espera apenas, enfim, como testemunho de sua sinceridade, de um instrumento único: sua voz, o ator diante do microfone, com a condição de que se prepare para um estudo aprofundado e para numerosos ensaios, deve encontrar as condições ideais para reconstituir e manifestar esta harmonia, este equilíbrio perfeito, de modo que, como dizíamos, o palco apenas o frustraria.
Todo aquele que souber obter tal presença da voz ao microfone, todo aquele que souber se concentrar em sua voz,  trará ao ouvinte esta extraordinária impressão de ser tocado pela voz humana na medida em que ela é a pura expressão de sentimentos e de ideias, a mensageira da alma.

Se o leitor isolado de um texto, em uma cabine nua, diante deste pequeno aparelho niquelado e frio, tiver a consciência de se dirigir pessoalmente, através do ar e a milhares de quilômetros, a um homem ou a uma mulher que sua voz distraia, console ou exalte, terá um sentimento que eleva a sua função. (COPEAU, idem, ibidem).

Trata-se, assim, de uma pesquisa dentro desse âmbito mínimo em que trabalha o microfone, todavia instaurado enquanto nova possibilidade expressiva para o ator. A ênfase na pesquisa vocálica é, a nosso ver, tanto da parte de Schaeffer quanto de Copeau, uma militância poética por um uso do microfone enquanto dispositivo para um exercício contra a “cabotinagem”, a atuação empolada ou carregada de efeitos retóricos, que pouco traduzem da própria vivência do ator daquele personagem. É, assim, uma busca de uma “naturalidade” encontrada na sua própria vivência da personagem. Em Schaeffer, esta busca de uma “verdadeira sinceridade” e de uma “exposição interior”  no rádio é essencial:

Nestas condições, é de se admirar que em cem atores que ensaiam ao microfone, são dez os que não soam falsos, e que dentre estes dez que possuem uma fala clara, nove gritam como surdos. Por vezes não fica um só, uma vez livre de seu manequim, que nos toque; nenhum que possa transparecer, através de sua voz, qualquer recuso interior, uma sensibilidade profunda, uma inteligência verdadeira. Esta centena de atores, por serem o centro das atenções, abusam de nós. O teatro não os treinou para a sinceridade, ou mesmo, os obrigou a serem aquilo que são: exteriores em tudo. (SCHAEFFER: 1970, p. 99).

Que temos então? Uma concepção do microfone enquanto um dispositivo que direciona atores, diretores e técnicos a buscarem uma outra atuação, mínima, concentrada, que supostamente lhes abriria um campo expressivo mais natural ao os obrigarem a encontrar uma concepção da atuação que fuja das normas teatrais: o trabalho com as nuanças vocálicas pela concentração e a amplificação; a quebra com a empostação vocal para a sala de espetáculos, que perde sentido ao ouvinte desta voz acusmática; o encontro com a “sinceridade” e a “interioridade” pela solidão e o silêncio do deserto do estúdio e da interlocução com a máquina “niquelada e fria”; e, finalmente, a possibilidade da re-escuta da atuação por conta da microfonação e da gravação, criando com isso um processo contínuo de pesquisa pela expressão adequada. Dessa forma, a escolha de textos poéticos intimistas e de um certo tipo de voz se dá pelo entendimento de que estes textos e essa expressão conformariam um pathos tornado possível pela nova tecnologia, impossível de se obter anteriormente ao seu surgimento.

Esta tecnologia, como vimos, não compreende só o microfone, mas também a emissão radiofônica, e esta, para estes autores, adiciona dois fatores: cria um novo lugar de escuta na recepção da atuação teatral, levando a cena até o espaço privado, e cria a situação acusmática de escuta, em que essa voz tornada superlativa ressoa na imaginação dos ouvintes (sendo que estes dois fatores também se aplicam à gravação sonora).


A escuta da intimidade aparece, portanto, enquanto elemento poético resultante de uma busca pela expressão vocálica no meio radiofônico que lhe seja inerente, única. E se, aparentemente, o rádio, o microfone e a gravação distanciariam a escuta da apreensão do corpo seja pela imobilidade em que os atores devem se colocar para se concentrarem na emissão vocal, seja pela ausência da presença do ator no ato mesmo da escuta das vozes por via do rádio, Jacques Copeau faz uma última observação no excerto a que temos acesso que vai contra essa direção:

Privada do rosto, privada da autoridade do olhar, privada das mãos e do corpo, a voz daquele que fala ao microfone não é desencarnada. Ao contrário. Ela traduz o ser com uma fidelidade extrema. Ela o traduz mesmo com indiscrição.

A voz que não tem nada do corpo ou nada da mente dificilmente chega ao microfone. (COPEAU, idem, ibidem).

Esta criteriosa exploração pela intimidade não restringe-se portanto a uma “exploração da alma” por via da voz, mas visa atingir o âmago do ouvinte naquilo que este tem de mais íntimo: sua corporeidade. A este respeito, gostaríamos de chamar o texto do filósofo José Gil:

O que se passa em certos fenômenos de 'correspondência', de 'comunicação muda' entre um público e um orador, por exemplo, ou de modo mais geral, entre os espectadores e os comediantes em cena, entre um cantor e a sala que o escuta?
( …) Sempre que Hitler falava a dezenas de milhares de alemães concentrados num estádio e que os 'eletrizava', o seu discurso era, para ele, o meio de se construir, em algumas horas, um novo corpo social que, por sua vez, falava: as palavras do Führer emanavam então de um 'organismo' único. Como é que Hitler – ou qualquer outro orador messiânico – conseguia obter um tal efeito? Adotemos ainda a terminologia de Husserl: digamos que todo o discurso pressupõe uma camada indicativa (feita de índices corporais); sempre que um orador fala ao público, este, ainda que mudo no plano expressivo, responde por toda uma série de signos indicativos, visíveis ou invisíveis, que o orador 'entende': gestos, traços fisionômicos, ritmos de silêncios e de barulhos, vibrações de murmúrios, respirações, etc. Tudo isso forma um 'discurso', de tal modo que se estabelece um 'diálogo' feito de 'perguntas' e 'respostas', de 'pedidos' mudos da parte do público e de reações 'expressivas' vindas do orador. (…) [Hitler] conseguia transferir para o plano da voz toda a camada indicativa da comunicação com o público: deixava de ter um corpo particular, sempre que falava, com órgãos, com signos distintivos, com uma subjetividade singular, para se tornar um bloco de voz que transmitia de modo tanto mais poderoso a mensagem indicativa, corporal (…). O seu corpo passava completamente para o lado de sua voz: formado assim o corpo da sua voz, podia induzir nos alemães que o escutavam estados intensivos pela simples manipulação da voz. (GIL: 1997, p. 85-86).  

Entre as teses de Copeau e Schaeffer e esta reflexão de José Gil, duas dissonâncias: 1) nada mais distante da expressão da poesia tida enquanto modelo para a voz ao microfone no rádio que o discurso hitlerista; 2) não há, na emissão radiofônica, a resposta do público em signos indicativos. Sobre o primeiro ponto, dizemos entretanto que, seja na expressão da intimidade, seja na afirmação da ideologia nacional-socialista, é um corpo que expressa, por via destes signos indicativos, apontados por Gil, a mensagem que com ele vem impregnada: por via de ritmos da fala, respirações, pausas, arfares, volumes e densidades, a voz coloca o ouvinte no estado deste corpo virtual, de modo que, se um falante se expressa com um ritmo ofegante que indica certa asfixia, e se sou seu ouvinte atento e intencional, meu corpo ofega ao seu ritmo, e minha respiração passa a pulsar com o seu andamento. É a partir, portanto, de um bloco de voz que minha escuta se impregna de elementos que estão para além ou aquém dos sons que remetem a signos da linguagem verbal, os quais indicam o corpo emissor do som, que vibra no meu próprio.

E, sobre o segundo ponto, devemos colocar que Copeau prevê que é em si mesmo que o ator deve encontrar o modo de sua atuação. Se, no modelo do orador tomado por Gil acerca de Hitler, a persuasão se dá justamente por um talento adaptativo frente às demandas da platéia, que lhe chegam por via de signos indicativos – sem abrir concessões, entretanto, do conteúdo ideológico que vincula -  no modelo de emissão radiofônica projetado por Copeau e Schaeffer, o texto induz o próprio ator a um estado introspectivo, e deve-se buscar aí, no silêncio do estúdio e diante do microfone, as emanações deste estado, do interior ao exterior.   

Talvez, para Copeau, o microfone teria a mesma função da máscara neutra (7), usada desde os anos 20 em seus exercícios de improvisação (8). Tal máscara é sem expressão ou forma previamente codificadas, e teria duas funções em seus exercícios: a) um “esvaziamento interior” do ator que, uma vez com esta máscara, é impedido de fazer uso das expressões faciais convencionais que sobrecarregavam a atuação teatral da virada do século, obrigando-o a encontrar um modo natural de expressão. Integra os exercícios com a máscara um estágio preliminar de silêncio e imobilidade, no qual o ator, portando-a, deve encontrar este esvaziamento de suas concepções arraigadas acerca do personagem ou da situação cênica que lhe é dada enquanto proposta, para em seguida, construir sua personagem a partir desta suposta “verdade interior”.  b) um congelamento do seu rosto que acaba por amplificar sua expressão corporal: sem o artifício das faces codificadas, deve elaborar um modo de expressão apenas pelo corpo.

Da mesma forma, o ator à frente do microfone vê-se diante de um cerceamento de sua completa corporeidade, e esta “mutilação” o faz compensar a ausência do gesto, da expressão facial e da movimentação no espaço com um mergulho em uma expressão total apenas pelo canal da voz. Tal exercício, como explicitou Copeau (9), é um ato de imaginar-se próximo aos ouvidos de seu interlocutor, e portanto, de um modo de empostar sua voz, que cria signos indicativos desta espacialidade na própria emissão vocal. Neste colocar-se imaginário é todo o corpo que é carregado pela voz, por conta daquilo que nela é indicativo de sua materialidade e inflexão.

Mas, como aponta José Gil, o plano dos índices indicativos não se atém apenas a uma referência à materialidade do corpo que os gerou, trazendo também expressividade e sentido:

(…) [um corpo] É uma respiração que fala. A respiração, o sopro, pneûma, traz, no tempo, a unidade de uma continuidade, mas não ainda a espacialização unificada desta continuidade. Enquanto o sopro se encara somente pelo seu lado puramente 'indicativo', ele é apenas a manifestação, rebatida no plano do tempo, de ritmos corporais; mas porque o sopro é uma mediação permanente entre o interior e o exterior do corpo, uma passagem, contém em si a própria possibilidade da expressão (sentido). Todo ritmo expressivo que aí se repercute – precipitação, hesitação – se torna possível, enquanto tal, por esta propriedade do sopro ser uma passagem: encontra-se na charneira da articulação manifestação (índice)/expressão (sentido). (…) [O ritmo expressivo] não manifesta apenas as intensidades do corpo, mas constitui-se também como expressões. Permitindo a sua saída para um exterior do corpo, ela constitui-as enquanto tais: isto é dizer que não há um sentido expressivo anterior à sua exteriorização, mas que a passagem do interior ao exterior constitui a expressão como sentido plenamente expresso.

           É deste modo que o sopro se apresenta como uma espécie de princípio diretivo dos ritmos corporais: como ele participa, do interior, na formação da expressão, esta reage sobre toda a camada indicativa do sentido – e, portanto, sobre o corpo: de tal maneira que o sopro – e a voz – aparecem como o que constitui o corpo em totalidade articulada no tempo: o sopro é o que dá a uma organização espacial uma forma única (dada no tempo). (GIL: idem, p. 88-89 – grifos do autor).      

O sopro e a voz, por provirem do interior ao exterior, organizam espacialmente as expressões do corpo que se dão no tempo por via do ritmo de suas aparições, da qualidade mesma de sua vibração. Sua escuta afirma a identidade do corpo enquanto uma unidade causal por constituírem, no exterior, emissões que provém espacialmente do interior:

Porque ele se 'ouve falar' isto é porque o 'ouvir-se' reorganiza para si, num todo, certos sons (que formam um todo em si), o corpo do homem constitui-se como uma totalidade única que, na sua fisiologia própria, não se reduz a uma unidade de matéria viva: o corpo humano é, por assim dizer, auto-significado. Isto quer dizer que na sua 'organicidade', no seu 'ser-uno', se diferencia das outras unidades orgânicas. Porque fala – e se ouve – vivemos o nosso corpo numa presença imediata, não-tética, inquestionável, do seu sentido (que se confunde com o da sua/da vida): tem assim a unidade de um sentido que se vive (e não se pensa, não visa um objeto). A infralíngua supõe um corpo auto-significado que se constituiu pelo efeito da voz. (GIL: idem, p. 89)

Os sentidos trazidos pelo camada indicativa da voz são, assim, significantes do corpo: uma infralíngua que remete à sua unidade e que dá sentido aos sons vocálico-corporais por relacioná-los com esse vetor único de emissão sonora: do interior ao exterior.

Assim, a escuta destes sons, se vindos do exterior de si, ou de outrem, sempre nos relaciona com o corpo por conta desta permanente referência à situação do “ouvir-se falar” que José Gil elabora, e são estes índices indicativos, e não o conteúdo semântico das palavras, que nos remetem a ele. Ora, a situação desta auto-escuta é a de uma anulação do espaço entre interior e exterior: “'ouvir-se falar' seria um ato de 'redução absoluta' do espaço, pondo o sujeito em contato imediato consigo próprio e com o objeto pensado: no solilóquio de 'ouvir-se falar', a subjetividade, não saindo de si própria, reencontra a presença do objeto” (GIL: idem, p. 87). É nesse sentido que afirmamos que a voz íntima buscada por Copeau e Schaeffer, na realidade, é a remessão a esta espacialidade da auto-escuta da voz, pois a constante referência a uma voz muito próxima ao microfone enquanto a que melhor traduz o “eu” da poesia lírica nada mais indica que a vontade de tradução desta voz interna, desta auto-escuta.


NOTAS:

(1) Paul Valéry, “L'Homme et La Coquille”, Varieté V.

(2) “Quand l'enfant que je fus portait à son oreille le coquillage dont Valèry a dit qu'il se détache du desordre ordinaire de l'ensemble des choses sensibles comme un son pur, ou un systhème mélodique de sons purs au milieu des bruits, il ne trouvait pas étrange, bien au contraire, que le rumeur de l'ocean s'y révélait. Dans les attrapenigauds des grandes personnes – ces grandes simulatrices – il y a toujours l'indice de quelque aveu. Dans la credulité des enfants, que guide un sûr instinct, il y a souvent pressentiment.” (SCHAEFFER: 1970, p. 90).

(3) Conforme um estudo crítico de Carlos Palombini, tal texto possui variantes, levantadas na sua pesquisa em manuscritos originais do autor, que datam de 1943, 1944 e 1945 (cf SCHAEFFER: 2010, p. 120, e nas páginas 159-160, notas 19, 20, 21). O texto completo seria publicado apenas em 1970 no primeiro volume de Machines a Communiquer, sob o título de 1944: Notes sur l'expression radiophonique. É a essa publicação que faremos referência, embora haja uma outra : Pierre Schaeffer: dix ans d'essais radiophoniques, de 1990. Nesta, entretanto, o texto  de Pierre Schaeffer apresenta-se incompleto e sob o título de 1946: Notes sur l'expression radiophonique. Qual a razão da “correção” da data do ensaio, realizada por essa edição de 1990? Talvez o próprio texto schaefferiano, que se inicia com a sentença: “Estamos em 1946. (...)” (SCHAEFFER: 1990, p. 82; 1970, p. 89).

(4) O texto de Copeau que nos basearemos aqui é um excerto que Schaeffer cita frequentemente em Notes sur l'expression Radiophonique e que será publicado mais tarde:  Cf  SCHAEFFER, 1990, pp. 79-81. Tal excerto consta enquanto manuscrito no espólio de Schaeffer, e ali denomina-se Écrit en 1943 (PALOMBINI: s/d, p. 5 – nota 7). De acordo ainda com esta fonte,  ele refere-se a um texto póstumo de Copeau, publicado em 1956: “Pour une esthétique de la radio”. (PALOMBINI, idem, ibidem).

(5) GAYOU: 2007, p. 26.

(6) cf SCHAEFFER: 1990, Index Alphabétique.

(7) A este respeito, ver: GIANETTI, BERTOLI & FALEIRO: “Sobre a poética da atuação em Jacques Copeau” (2009), p. 5-6 . Todas as nossas considerações a respeito da máscara neutra em Copeau provém deste trabalho.

(8) Tal aproximação entre a máscara neutra e o microfone é sugerida por Schaeffer: “[a máscara] foi concebida para inchar os traços, mas também a voz, a fim de que o ator desaparecesse diante do personagem. O microfone é uma outra máscara que inverte as relações: o grito traz menos que o sussurro, o herói cede lugar ao homem. (SCHAEFFER: 1970, p. 101).

(9) “Se o leitor isolado de um texto, em uma cabine nua, diante deste pequeno aparelho niquelado e frio, tiver a consciência de se dirigir pessoalmente (...) a um homem ou a uma mulher que sua voz distraia, console ou exalte, terá um sentimento que eleva a sua função.”. (COPEAU: idem, ibidem).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACHELARD, G. (2001)  A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes.

BACHELARD, G. (2000) A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes.

BRUNET, S. (1969) Pierre Schaeffer. Paris: Éditions Richard-Masse.

GAYOU, E. (2007) GRM Le Groupe de Recherches Musicales Cinquante Ans d'histoire. Paris: Fayard.

GIANETI, G.; BERTOLI, N & FALEIRO, J. (2009) “Sobre a Poética da Atuação em Jacques Copeau” In: DaPesquisa – Revista de Investigação em Artes. Volume 3, n. 2. Universidade do Estado de Santa Catarina. Online:  <http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume4/numero1/cenicas/sobreapoetica.pdf> , acessado em 24/12/2011

GIL, J. (1997). Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio d’água editora.

PALOMBINI, C. (s/d) As noções de art infirme e art relais em textos publicados e inéditos de Pierre Schaeffer do período 1932–1952”

In: <http://historiaemusicac.files.wordpress.com/2011/03/projeto.pdf >, acessado em 24/12/2011.

SCHAEFFER, P. (1952). A la recherche d’une musique concrète. Paris: Éditions du Seuil.

SCHAEFFER, P. (1970). Machines a Communiquer – Genèse des Simulacres. Paris: Éditions du Seuil.

SCHAEFFER, P. (1990). Dix Ans d'Essais Radiophoniques - du Studio au Club d'Essai – 1942/1952. Paris: Phonurgia Nova.  

Recebido: 01/2012
Aceito: 01/2012

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