MATHEUS, UM PEQUENO GRANDE RASTRO DA PRISÃO NO MUNDO

 

Neilza Barreto
Professora do Curso de Psicologia e do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Doutora e Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Especialista em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Psicóloga e Militante em Direitos Humanos. E-mail: neilzalvesbarretojaneiro@gmail.com.

 


Resumo: O artigo que segue pretende refletir sobre as condições das prisões femininas no Brasil. Partimos de uma experiência e contato com um filho de uma presidiária e reconhecemos os diversos rastros da prisão feminina na sociedade. Ao longo do artigo refletimos sobre as consequências históricas e sociais da prisão de mulheres no Brasil e suas muitas engrenagens. Utilizamos a narrativa das mulheres presas e a observação do campo de pesquisa para mapear a fragilidade das condições dos filhos das presas, assim como a necessidade de reflexão acerca do alojamento conjunto entre mãe e filhos em aleitamento, nas prisões femininas.
Palavras-chave: Prisão. Mulheres. Rastros. Maternidade. Subjetivação.

MATHEUS, A SMALL TRAIL IN THE GREAT PRISON WORLD

Abstract: The following article is a reflection on the conditions of women’s prisons in Brazil. We begin with an experience and the contact with a prisoner’s child to recognize the various traces of female imprisonment in society. Throughout the article we reflect on the historical and social consequences of the imprisonment of women in Brazil and its many machinery.We use the narrative of women prisoners and the observations of the field of research to map the fragility of the conditions of prisoners’ children as well as the need for reflection on joint housing of mother and young babies who are still breastfed in female prisons.
Keywords: Prison. Women. Traces. Maternity. Subjectivation.

 

“Fazer viver e deixar morrer, eis a linha de programação fundamental desta máquina disciplinar.”
(BASTOS, 2002, p.120)

“A verdade mais profunda que o genealogista deve revelar é o segredo que as coisas não têm essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe são estranhas.”
(DREYFUS, RABINOW, 1985, p.119)

“É uma antologia de existências. Vidas de algumas linhas ou de algumas páginas, desventuras e aventuras sem nome, juntadas em um punhado de palavras.”
(FOUCAULT, 2003, p.204)

“A Explosão da Barbárie” – Assim foi a capa da Revista Veja do dia 11 de janeiro de 2017. Continua a capa:

Duas chacinas, 91 cadáveres, muitos decapitados, desmembrados, incinerados. O horror bestial dos presídios, dominados por facções criminosas, choca o mundo e impõe desafios enormes ao governo e à sociedade. (Revista Veja – edição 2512 - ano 50 - n2 -11 de janeiro de 2017).

A manchete me remete imediatamente à pesquisa realizada por mim no sistema penitenciário feminino concluída em 2006 para obtenção do título de doutor, no Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, sob orientação da Profa. Dra Junia de Vilhena. A partir das experiências ao longo da pesquisa, pretendo problematizar os muitos matizes das vidas no cárcere dando especial destaque ao encontro que tive com Matheus – filho de uma detenta que estava presa no sistema penitenciário feminino.

Não pretendo resgatar uma verdade em si e nem tão pouco fazer denúncias ou afins, trata-se de minha narrativa, repleta de minhas marcas e visões de mundo; não pretendo evocar nenhuma neutralidade. Transitarei entre os anos 2002 a 2006, início e término da pesquisa. Sei, no entanto, que outros dizeres e recortes poderiam ser feitos, todavia o fiz a partir das minhas possibilidades. 

Tais noções, inteiramente conceituais, no mais das vezes foram tecidas a partir de significados historicamente precisos, que sociólogos ou historiadores pretendem, para fins teóricos ou políticos, generalizar para além do tempo e da circunstância em que foram efetivamente usados na vida real (...) nos expõe igualmente, pois podemos pretender ser meros reconstrutores mentais de épocas mortas como se isto fosse possível, como se não estivéssemos todos muito bem fincados em nossos atualíssimos interesses. Pois bem, é caminhando sobre esta lâmina fina, que separa anacronismo de relativismo, que me moverei. (GUIMARÃES, 2004, p. 02).

Convido o leitor a algum tipo de reflexão sobre gente encarcerada que ultrapasse a visão da mídia ou da velha e constante associação ao mal e ao crime, convido-o a ver gente encarcerada – sem “pieguismos” ou noções preconcebidas.

Atiro-me contra as quinas erguidas desta madrugada/Contra estes edifícios enormes, parados/Contra o cinza do céu sujo como sabão que lava o piso dos botequins/ Ao fim da noite/Atiro-me contra o cansaço do mundo/Contra o meu próprio e inenarrável cansaço/Atiro-me em nome da utopia que é minha, a tua, a nossa utopia. (Helio Pellegrino)

Após dez anos de realização da pesquisa, concluída em 2006, algumas imagens permanecem nos meus mais tristes depósitos afetivos e confesso que não pretendia evocar tais memórias por saber que sempre me causam sofrimento. Mas se me afetam devem também afetar ao leitor, e nesta engrenagem de afetos e afecções pode surgir, quem sabe, algum tipo de efeito, seja ele afetivo, político, ético ou estético.

Em meados de 2005, prestes a concluir a tese de doutorado, depois de três anos em constantes e sistemáticas visitas ao lugar mais quente e desconfortável do mundo – afetiva e existencialmente – sentia-me absurdamente misturada àquela dor, àquelas paredes, àqueles cheiros. A minha circulação pelo presídio contava com a proteção de uma das presas, que naquele momento era uma importante liderança do sistema penitenciário feminino. Durante anos, após a defesa, acreditei que na prisão feminina não havia facções já que era esse o discurso das presas e da direção do presídio, mas depois de muito tempo percebi que tal liderança era a continuidade da liderança do presídio masculino vizinho. E confesso que fui protegida por minha mais total inocência e romantismo. E também por minha arrogância em pensar que as leituras que eu acreditava ter poderiam, de alguma maneira, decodificar a realidade prisional e, ao fazê-lo, permitir minha permanência naquele lugar. Não, não foram minhas leituras, mas o fato de ter caído na simpatia da liderança do presídio feminino Talavera Bruce naqueles dias. E em função desta simpatia, entrava e saia de muitos espaços, travava longas e afetivas conversas com as presas, sentava-me no chão das celas para ver objetos de valor afetivo das muitas mulheres ali sentenciadas.

Esta aproximação não foi cercada de “paz de espírito”, ao contrário, eu e minha vida pessoal passamos por muitas tempestades e, de uma maneira singular, tinha o grupo de pesquisa como um lugar seguro, talvez o único naquele momento. Confesso que o grupo pulsava (e sangrava) comigo diante das muitas “acontecências”. Os pesquisadores de então ficavam longas horas me ouvindo, muitas vezes num silêncio tão acolhedor que só muitos anos depois pude decodificar a grandeza daquele momento.

Não, não é nada fácil visitar presídios com regularidade ou pelo menos não foi para mim. E penso que não é fácil para ninguém, já que são poucas (pouquíssimas) pesquisas nos presídios com tanta imersão. Durante os anos que seguiram após a defesa da tese, evitei falar daquele lugar, fugia de qualquer tipo de trabalho acadêmico que me colocasse de novo naquele espaço nefasto. Não havia denúncias ou medo, mas falar “daquilo” era tão penoso quanto lembrar de uma cena triste – de filme ou música, ou cenas piores da vida. Mas também confesso que daquelas vidas infames, havia sim, aos meus olhos, estranhos poemas.

[...] se me emocionei mais com a beleza desse estilo clássico, drapeado em algumas frases em torno de personagens sem dúvida miseráveis, ou com os excessos, a mistura de obstinação sombria e de perfídia dessas vidas das quais se sentem, sob as palavras lisas como a pedra, a derrota e o afinco. (FOUCAULT, 2003, p.206)

 

Desfiliações, desamparos e maternidades

A pesquisa centrou-se na pergunta acerca dos projetos futuros das mulheres encarceradas, todavia outros tantos desdobramentos foram pontuados, em especial a presença de um discurso que atribui à existência feminina no cárcere à função procriadora da mulher para destitui-la do lugar de perigo e afastá-la de sua relação com o delito cometido. A partir de seus discursos, elaboram para si um “corpo-ventre”, um corpo de mãe que pretendia dar conta de toda sua existência, reduzindo-as à esfera da maternagem e sua associação com temas como “sensibilidade”, “amor”, “sentimento”, dentre outros cujo cerne está na sacralidade da maternidade. Tal fato retoma a construção histórica da maternidade como um destino a todas as mulheres, numa suposta obediência à “mãe natureza”. Nessa perspectiva, a maternidade salvaria a mulher de uma natureza maligna já bastante pontuada na história do Ocidente e que teve seu ponto culminante na Inquisição, em que houve uma clara associação entre mulheres e bruxarias (Delumeau, 1991).

O discurso das 154 mulheres entrevistadas esteve pautado na presença da associação mulher “não bandida” pelo fato desta ser mãe e “vocacionada” à maternidade e ao afeto. Em função dessa associação há um “corpo-ventre” como uma existência possível no sistema penitenciário, tanto para o reconhecimento de si quanto para construir uma voz que encontre legitimidade e existência possível frente ao grupo ao qual pertencem.

Após inúmeras entrevistas cujo cerne eram os projetos futuros, não ouvi o que eu esperava: o trabalho. Por não ouvir temas relativos ao trabalho, acreditei por um tempo que as mulheres não construíam projetos futuros. Entretanto, auxiliada pelo grupo de pesquisa e pela orientação, desenvolvi uma escuta mais cuidadosa capaz de ouvir um coral polifônico sempre constante e presente na fala das mulheres presas: a maternidade. O tema da mulher reclusa refazia um cenário já conhecido por todos nós: a imagem da mulher-mãe.

Historicamente, a mulher obteve visibilidade e lugar social a partir do valor dado à maternidade e aos cuidados com a criança e as mulheres presas reiteram esta posição da mulher e sua suposta vocação à maternagem. Acredito que é a partir da maternidade que as mulheres entrevistadas conseguiam construir um discurso possível que coubesse numa certa adequação social.

Esta suposta adequação social esteve imersa a uma política de exclusão da pobreza que compõe ainda hoje o Estado Penal. Na política do Estado Penal, não há o compromisso com a transformação social, ao contrário, pretende somente administrar as consequências de séculos de exclusão e assujeitamento de uma certa camada social. Esta administração não se compromete com questões públicas que dizem respeito ao compromisso com a educação da população mais pobre, nem compromisso com a saúde, moradia, dentre outros. Na ótica do Estado Penal, o único “latifúndio urbano” possível para o pobre é uma fétida cela de cadeia.

Antes e depois do cumprimento da pena há uma rede eficaz de manutenção da exclusão. E nessa teia, a ideia discursiva ou tangível de família e sentimentos “famialiaristas” sugerem algum tipo de inclusão/aceitação dentro da sociedade. Além da família significar o único e possível acolhimento pós cárcere. Diante do emaranhado de exclusões, nos lembra a canção que o “Silva” é pai de família.

Era só mais um Silva que a estrela não brilha/Ele era funqueiro, mas era pai de família. (Rap do Silva – MC Bob Rum).

 Como nos assinala a canção, o discurso “familiarista” coloca o homem pobre em outro patamar social em que ele vê e é visto de uma maneira específica e mais inclusiva. Ao entrar em contato com as mulheres no sistema penitenciário me distanciei de uma certa noção pré-estabelecida de “prisioneira”, já que o modo que costumeiramente pensamos a sua vida social e privada está enredado numa teia de delitos: aborto, prostituição, adultério (LUDEMIR, 2002). Esta imagem esteve remetida a uma visão de desordem estabelecida a partir de uma visão-referência que percebe a mulher como detentora de uma natureza ligada ao amor, à dor e ao sofrimento (SHIENBINGER, 1998). Dentro dos presídios, há um discurso específico no qual as presas não se enxergam enquanto uma desordem, uma contra natureza do que seja feminino. Destaco que a noção de feminino foi construída historicamente, se não há natureza, não existe, em contrapartida uma não natureza.

Mulheres, presas ou não, participam e engendram o lugar social, histórico e cultural construído pelas e para as mulheres que associa o feminino à esfera privada e ao universo da família. Em todas as entrevistas realizadas durante a pesquisa havia uma clara preocupação com os filhos. Preocupação esta que se expressava em raiva, mágoa, desespero, saudade, ciúme, angústia, ausência, desamparo. Tais mulheres estão sob a égide do “amor materno” que fundou e funda as crenças e valores da mulher no Ocidente. Não cabe aqui julgá-las, bandidas ou não, mas pensar a construção da imagem mulher-mãe como uma tática de reconhecimento de si dentro do sistema carcerário.

 A imagem da mulher associada à maternidade é tão forte socialmente que se constituiu numa tática de construção de projetos futuros e de reconhecimento de si para além do rótulo “bandida”, “traficante”, “sequestradora”, etc. Conforme Certeau (2003), é a “arte do fraco”; poderíamos dizer que a tática é utilizada quando o poder é grande e o assujeitado pequeno demais para elaborar estratégias. Sem espaços para movimentar-se estrategicamente a tática se constitui numa linha de fuga de singularização possível:

Sem lugar próprio, sem visão globalizante, cega e perspicaz como se fica no corpo a corpo sem distância, comandada pelos acasos do tempo, a tática é determinada pela ausência de poder assim como a estratégia é um postulado de poder. (CERTEAU, 2003, p. 101).

Diante da pergunta “o que você vai fazer quando sair daqui?” – pergunta que norteou a pesquisa de doutoramento – inicialmente as mulheres divagavam por inúmeros discursos evasivos, desde tomar um banho de mar até ir à Igreja. Entretanto, após estes primeiros afãs de liberdade as mesmas retomavam a realidade de suas possibilidades reais de sobrevivência remetida aos filhos e às famílias. Até mesmo para o ingresso no mundo do trabalho, segundo as presas, se fazia necessário a ajuda dos filhos e das famílias. Seja para fazer sabonetes ou serem cabeleireiras. Nenhuma das mulheres entrevistadas respondeu que seu projeto de futuro estava ancorado na entrada do mundo formal de trabalho.

A família e seus infindáveis arranjos ainda eram o eixo de sustentação das mulheres entrevistadas, era pela família e na família que elaboravam um discurso de dias melhores. Tais relações são denominadas de relações de sociabilidade primária, conforme Castel (1998), e diz respeito a uma proteção próxima cuja base é o sentimento de aliança com a família, com a vizinhança e/ou redes remetidas à ancestralidade. Importante destacar que estas redes se destacam no discurso das presas entrevistadas por ausência de outras redes de sustentação construídas pelo Estado. A rede primária de sociabilidade tornou-se mais evidente na sociedade feudal, no entanto este tipo de organização pode ser vista no que Castel (1998) chama de sociedade sem história ou sociedade sem social. Na medida em que os laços familiares tornaram-se mais frouxos houve a construção de um conjunto de práticas que serviram como substituto do que outrora a família, a vizinhança e o gueto fizeram, mas que desta vez ganhou uma especialização prática:

Assim, o hospital, o orfanato, a distribuição organizada de esmolas são instituições “sociais”. Procedem ao tratamento particular (especial e especializado) de problemas que, em sociedades menos diferenciadas, eram assumidos sem mediação da comunidade. (CASTEL, 1998, p. 57).

As sociedades cujos laços eram primários foram caminhando para uma intervenção formal de um conjunto de práticas que, num primeiro momento, tem funções protetoras e integradoras. Mais tarde incorpora também a função preventiva, podendo ter características controladoras. Ocorreu, segundo Castel (1998) um deslocamento dos sistemas relacionais que outrora sustentavam os sujeitos em sua relação de pertencimento social. Tal deslocamento desencadeou numa sofisticação assistencial que tem por objetivo dar conta das montagens cada vez mais complexas de substituição das redes relacionais primárias. Neste outro tipo de sociabilidade, chamada por Castel (1998) de sociabilidade secundária, ocorre o aparecimento de “especialistas” em socialização:

[...] essas práticas sempre apresentadas pelo menos esboços de especialização, núcleos de profissionalização futura. Não é qualquer um, de qualquer lugar, que tem a responsabilidade desse tipo de problemas mas, sim, indivíduos ou grupos de mandatados, ao menos parcialmente, para fazê-lo e identificados como tais. (CASTEL, 1998, p. 58).

Na socialização secundária, ocorre uma profissionalização do setor social. Esta profissionalização é atravessada por uma “tecnização” mínima que vai orientar sua ação junto às classes necessitadas. Na falta de políticas públicas que amparem as pessoas, cabe a vontade dos esforços pessoais que, nadando contra a maré, tentam suprir o que o Estado não possibilita: esperança por dias melhores. Cabe destacar a diferença entre compaixão e solidariedade; a primeira é algo conferido individualmente enquanto a solidariedade tem poder de mudança, pois está remetida à transformação social. Se no caso das presas a família inclui e ampara, cabem às políticas públicas amparar as famílias e acolher seus inúmeros arranjos. Se a família é um eixo de esperança e uma possibilidade de reinserção dos detentos, cabe ao Estado a construção de políticas públicas efetivas que amparem as famílias cujos pais, mães ou filhos estejam em situação de encarceramento.

Diante das inúmeras exclusões que comprometem a capacidade de sonhar, ou seja, de desejar viver uma outra vida, nos remetemos a Atenas e seus rituais nos quais mulheres, anônimas nas cidades, adubavam o chão numa experiência urbana de recusa ao sofrimento passivo por parte dos oprimidos. Tesmoforia era um destes rituais de recusa ao sofrimento passivo que não se recusava à memória, mas que dignificava o corpo feminino resgatando a fala e o desejo negado no espaço público.

Testemoforia era um rito de origem pré-homérica, presidido por Démeter, um rito de fertilidade cujo primeiro dia as mulheres cobriam as sepulturas dos restos úmidos dos porcos com sementes. Em seguida, iam para abrigos de madeira, lá sentavam e dormiam, numa simbologia da morte. “No dia seguinte celebravam a morte: expunham seu pesar lamentando-se e praguejando-se” (SENNET, 2001, p. 65). O terceiro e último momento era o da recuperação da massa fétida enterrada junto às sementes. Esta substância era sagrada. Este ritual, próprio das mulheres de Atenas, nos remete aos milhões de seres que vivem à margem de um espaço cívico dentro do contexto da cidade. Na Tesmoforia ocorria uma transformação que dava um novo lugar cívico àquelas que eram silenciadas e anônimas, apesar dos fétidos residuais dos porcos e do lugar subterrâneo, frio e escuro ocupado pelos corpos frios que, em Atenas, eram mergulhados na sombra do silenciamento e da submissão à ordem social pré-estabelecida.

Escravos e estrangeiros residentes tampouco tinham autorização para falar na cidade, por serem todos corpos frios (SENNET, 2001, p. 61).

Na Grécia Antiga, o silêncio esfriava os corpos; a possiblidade de falar, de evocar ideais, a linguagem política simbólica abasteciam os corpos de calor, “pathos de vivenciar o calor da paixão num corpo passivo” (SENNET, 2001, p.59). Assim possamos compreender os corpos frios e silenciados nos porões da existência humana:

Os malditos e desgraçados corpos vivos e sem calor tinham ao seu alcance rituais que lançavam sobre eles um manto de escuridão. Essa antiga liturgia revela um aspecto eterno da nossa civilização, ou seja, a recusa do sofrimento passivo por parte dos oprimidos, como se a dor fosse um fato inalterável da natureza. Negar-se a sofrer, porém tem suas limitações. (SENNET, 2001, p. 62).

 

Encontrando Matheus

Próximo ao final da conclusão da tese, busquei dados acerca do paradeiro dos filhos das presas; alguns encontrei nos abrigos do Estado e dentre estes tive a oportunidade de encontrar um menino que naquela época tinha doze anos e será nomeado por mim de Matheus.

Matheus estava no abrigo para crianças desde que sua mãe foi presa, havia três anos. O menino tinha um irmão por parte da mãe que foi concebido numa das vistas íntimas de sua mãe com outro detento. Soube deste irmão de Matheus através da mãe reclusa, uma vez que estava especialmente preocupada com o menino de dois anos abrigado e concebido no cárcere. Os dois irmãos foram abrigados em diferentes abrigos. O mais novo teve uma passagem sob os cuidados da avó paterna que veio a falecer esfaqueada pelo tráfico da comunidade onde morava e o menino estava abrigado naquele momento em local desconhecido pela mãe. Esta sempre me pedia para obter notícias dos irmãos e seu pedido constante era para que os dois ficassem num mesmo estabelecimento de acolhimento. Não consegui informações do menino de dois anos, entretanto localizei Matheus.

Matheus era um menino negro, bastante magro com aproximadamente um metro e meio de altura. Ao visita-lo não falei do meu contato com a mãe presa a pedido das psicólogas que acompanhavam o menino no abrigo, já que o mesmo, segundo as psicólogas, sofria muito quando o tema era sua mãe. Segundo informações obtidas no abrigo, Matheus nunca havia sido levado para fazer vistas a sua mãe na prisão e também não recebia visitas de ninguém. Entregue a própria sorte, era mais um menino abandonado dentre os muitos do abrigo em que estava, todavia não estava apto à adoção pois sua mãe ainda respondia legalmente pelo menino, não havia sido realizada a destituição do poder familiar.

Entrei no abrigo e meu interesse por Matheus foi explícito. Este, sem entender a situação me disse assertivamente: “Eu não posso ser adotado não, eu tenho mãe”. A assertividade de sua voz se contrastava com a mão trêmula a segurar um copo de plástico. O medo de ser adotado ficava claro na truculência e no medo que Matheus sentia por mim. Me aproximei dele cuidadosamente e tentei travar uma conversa com aquele menino que tentava me amedrontar dizendo que iria me encher de “porrada” e que eu não era a mãe dele. A fragilidade do pequeno menino o fez urinar na bermuda velha e rasgada, talvez a única que ele tinha. Provavelmente, naquela noite e durante outras tantas Matheus iria dormir no chão com aquela bermuda urinada. Afinal, não só sua mãe havia sido condenada, mas ele também.

 

Os muitos Matheus e a maternagem no cárcere

A vida e sua potência de encontros, se maus, diminui a potência de ação frente à vida; se bons a potência de agir aumenta e sentimos afetos de alegria. Assim é a interpretação que Gilles Deleuze faz de Espinosa (MACHADO, 1990). Se considerarmos o aleitamento materno um encontro, nesta perspectiva, podemos também afirmar que tal encontro pode potencializar ou não, tanto o bebê quanto à mulher que o aleita. São encontros de corpos, afetos e afecções. E tais afetos regados de instituições (afetivas, sociais, culturais, históricas) permeiam o aleitamento realizado por mulheres, no cárcere ou não.  

O capitalismo contemporâneo apresenta muitas visibilidades: focos de luz nas fluidas e efêmeras relações cujo norte é a lógica do consumo e a sociedade do espetáculo (DEBORD, 2003). Em contraposição, ganha sombra e esquecimento todo e qualquer grupo social que não se comunique com a lógica de consumo. Como se só algumas dores ganhassem legitimidades em detrimento de outras, esquecidas e silenciadas. Enquanto a maternidade é exaltada e o aleitamento é um dos pilares dos discursos das políticas públicas no Brasil, pouco se fala de mulheres que aleitam no cárcere. Nem tão pouco das experiências vividas por tais mulheres no climatério. São corpos esquecidos. Tão esquecidos como o são os aleitamentos realizados dentro do sistema penitenciário feminino, em especial no Presídio Feminino Talavera Bruce, no Sistema Penitenciário de Bangu, RJ.

Ao chegar neste estabelecimento prisional, em 2002, o primeiro espaço que me foi apresentado foi a dita creche da prisão que ficava, naquela época, atrás de um prédio nomeado como Igreja Católica. A chamada creche tratava-se de um alojamento conjunto de mães e filhos com menos de um ano de vida. Consistia em uma casa ampla com vários quartos, nestes quartos havia inúmeras camas, berços e armários de madeira. Os armários eram pequenos de tamanho comum a mobília infantil, móveis já bastante envelhecidos, assim como todos os objetos que os circundavam. Apesar da empobrecida aparência, a presença daquela mobília pretendia descaracterizar aquele espaço do contexto do ambiente prisional. Havia ali camas de madeira com cabeceiras, elementos raros no sistema prisional. Outros objetos também quebravam a tão massificada estética prisional: fraldas, brinquedos velhos e quebrados, chupetas, dentre outros.

No momento da minha visita, o alojamento não estava cheio, havia apenas treze mães com suas respectivas crianças. A agente penitenciária que me acompanhava assinalou que a maioria das que ali estavam havia parido dentro do sistema carcerário e a prisão ocorreu quando estavam grávidas: “Elas aproveitam que estão grávidas para fazer besteira, aí colocam um inocente aqui”.

Na manhã da minha visita, uma mulher havia chegado da maternidade, estava deitada com seu bebê ao lado em uma das camas de madeira com cabeceira. Outras transitavam com seus bebês ao colo e outras duas conversavam enquanto as crianças engatinham próximo, no chão. Uma das mulheres cujo bebê estava no carrinho perguntou a agente penitenciária que me acompanhava:

Você sabe se vai ser amanhã?
Não, não será amanhã. (Respondeu a agente penitenciária)

O filho desta presa já não estava mais aleitando e deveria ser afastado da mãe. Ao conversar com a mesma, esta me transpareceu muita inquietação já que não tinha nenhum parentesco no Rio de Janeiro, todos moravam no interior do Maranhão.

Naquele momento não pude aprofundar o estudo no espaço da dita creche do sistema prisional, já que não consistia nesse meu objetivo da pesquisa, todavia pretendo destacar a importância desta teia de cuidados com a criança dentro do sistema penitenciário feminino. Sabemos que cada cultura estabelece um campo de relação entre um bebê recém-nascido e o mundo em que este vai viver. Inserindo o bebê dentro de registros culturais que vão nortear a vida e o significado deste novo sujeito no grupo a que pertence. Conforme Luís Claudio Figueiredo (2007):

Há, por exemplo, procedimentos ritualizados de “salvação” que retiram o infante das trevas do “não-ser” para colocá-lo entre os vivos e os humanos. Batizados, circuncisões, por exemplo, fazem parte deste arsenal. (p. 122).

Alguns dispositivos de recepção e reposicionamento no mundo são bastante comuns em diferentes culturas. Tais dispositivos têm por objetivo um (re)ligamento a uma outra condição, seja através de elementos religiosos ou por dispositivos presentes nas ditas técnicas científicas, tais como hábitos alimentares, puericultura, higiene, técnicas de bem estar do bebê, dentre outros.

Contudo, um infante, uma criança ou adolescente (ressalvando-se que estas categorias são ocidentais e modernas, não universais, mas que as mudanças de idade na vida nunca puderam ser ignoradas) sempre foram objetos de prescrições e interdições voltadas para assegurar ou promover a sua integridade física e mental e seu ingresso e participação na comunidade dos homens. (FIGUEIREDO, p. 122).

Esta entrada no campo de crenças e valores desta ou daquela cultura, deste ou daquele grupo ou segmento da sociedade, evoca muitos agentes que se entrelaçam e se atualizam através da memória social e familiar. Já que, conforme Walter Benjamim: “[...] as crianças não constituem nenhuma comunidade separada, mas são partes do povo e da classe a que pertencem” (p. 248).

Este pertencimento pressupõe uma integração a sistemas de sentido. A esta integração chamaremos “cuidado”, já que busca inserir o bebê numa teia de experimentações sensíveis (abraço, calor, toque, cheiro, vozes, etc) que a partir da figura de alteridade (mãe ou outro que exerça a maternagem) vão compor o reconhecimento de si, dos outros e do mundo. Pensamos então o cuidado a partir de sua dimensão ética/estética e política porque estabelece uma forma de existência e agencia inúmeros afetos e afecções. Política porque gera e é gerada por diversas práticas de perpetuação ou não de instituições familiares e sociais e ética porque elabora forma de existência e reconhecimento de si.

 

Conclusão: Matheus como rastro da prisão no mundo

A prisão enquanto máquina disciplinar tem muitos tentáculos e Matheus era um destes muitos a serem capturados por muitas e diversas teias. Na estrita e perversa roda dos sentimentos, Matheus permanecia a espera da sua mãe. Talvez a espera já fosse um lugar. Nesta repetida cena, a maternidade e o sentimento de infância e cuidado apareciam, fosse no discurso das mulheres presas, no alojamento conjunto das presas com seus filhos ou em outras tantas engrenagens do sistema penitenciário feminino.

Nas prisões, no entanto, o poder não se esconde, ele é deliberadamente reconhecido nas práticas cotidianas, das mais sutis às mais truculentas. Se a prisão deixa rastros nas vidas das mulheres, estas mulheres deixam rastros na prisão e Matheus era um rastro, não só na prisão mas na vida e no mundo.

A esta altura, Matheus já se transformou num homem, espero que não tenha sido capturado pelas teias do poder que antecede uma mesma e recorrente história para a população pobre, negra e cuja origem é chancelada com as marcas da exclusão.

Em meus sonhos, Matheus é feliz, trabalha dignamente, possui o tão esperado afeto de sua mãe. Recuso-me a pensar que Matheus seguiu os passos de sua mãe e entrou no tráfico, recuso-me mais ainda acreditar que está preso ou morto. Prefiro vê-lo numa roda de capoeira: grande, forte e alegre. Prefiro acreditar que Matheus participa da plasticidade de muitas lutas.

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Referências

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Recebido: 29/01/2017.
Aceito: 30/03/2017.

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