INTERCULTURALIDADE E A COMUNIZAÇÃO DO CAMPO EDUCATIVO

 

 

Lúcia Ozório
Pesquisadora laboratório EXPERICE, França - universidades Paris 8 e Paris 13-Nord; Laboratório LIPIS - Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social, PUC.


Resumo: Refletimos sobre uma potência criativa no campo da educação que porta um questionamento vigoroso da reprodução das desigualdades sociais. As histórias orais de vida em comum de crianças da França e do Brasil, com relatos de diferentes modos de ser, estar e agir, enriquecem esta discussão. São emergências da infância em devir que encontram ressonâncias em entendimentos da interculturalidade como práxis de um comum, campo da heterogênese, sempre em vias de se fazer. Interessamo-nos por pontes interculturais que contribuem para uma educação comum como crítica em ato contra o silenciamento das diferenças.
Palavras-chave: comum, educação, interculturalidade, histórias orais de vida em comum.


INTERCULTURALITY AND EDUCATIONAL FIELD COMMUNIZATION

Abstract: We discuss a creative force in the education field which criticize vigorously of reproduction of social inequities. The oral life stories in common of the France and Brésil children, with narratives of different ways of being, of acting allows to deepen this perspective. They are childhood emergencies in becoming which can find resonances in interculture understandings as a common práxis, a heterogenesis field, always to be constructed. We  have interests for intercultural links that contribute for a commun education as a critique and an act against the silencing of the diversity.
Keywords: common, education, interculturalism, oral life stories in common.

 

Introdução

Todos os dias eu vou à Igreja porque eu sou uma cristã. Meu prato preferido é estrogonofe. Quero ser astronauta, quero conhecer os planetas e viajar na lua. Meu sonho é conhecer a França, Paris e Nova York e a Lua”. (Maria Eduarda da escola Marechal Trompowsky, Papo de Roda, nov. 2015)

Eu não queria ser imortal. Viver para sempre, a vida seria muito chata, chegaria uma hora que eu não teria nada mais a fazer, já fiz tudo”. (Artur, Papo de Roda, nov. 2015, liceu Molière).

Nós que gostamos de crianças, devemos fazer uma pergunta a elas e a nós: o que elas querem? E outra a nós mesmos: o que queremos com elas?

Com a primeira consideramos sua capacidade disruptiva, a sua singular capacidade de vir a ser, de devir (DELEUZE; GUATTARI, 1980; OZÓRIO, 2005). A criança é uma máquina de desarranjar e convida-nos a construir uma arte de viver dando expansão a práticas de liberdade. Foucault (1977), diria, construir uma vida não fascista.

Com a segunda pergunta estamos entrando numa dimensão ética do viver, a de nossa implicação com o que fazemos e somos (LOURAU, 1997). Ser e fazer se constroem de maneira íntima. Processualmente. As crianças podem ser nossas companheiras desta empreitada, nossas aliadas. Importante falar de como entendemos uma aliança. Aliança não é uma filiação. Esta é da ordem do imaginário, das correspondências, dos modelos, das descendências (DELEUZE; GUATTARI, 1980, 291-292). A aliança é da ordem do devir, através do qual as diferenças se exprimem como elementos criativos. A aliança se dá entre heterogêneos. Assim, não se trata de que a criança deva ser nossa cópia e nós, também cópias, alimentando um processo de reprodução social.

Conectando a primeira com a segunda pergunta, lembramos de Lazzarato e Negri (2001), ao dizerem que a “política do desarranjo” leva em conta o corte e não a cópia.

Problematizando: quantas vezes acabamos propondo modelos, incentivando cópias, convivendo tranquilamente com uma teoria crítica e uma prática adaptacionista, não nos faltando a denúncia, o que, aliás, não nos diferencia de muitos que criticamos.

Vale propor uma praxis, ou melhor, redutos de resistência à uma des-realização evidente por que passa a infância (SCHÉRER, 2002), sujeita a disposições redutoras, pedagógico-protetoras que reforçam o controle, reproduzem formas que tentam aprisionar o devir, subordinando a infância a uma significação única.

Neste artigo trazemos um trabalho de pesquisa que aposta na não-sujeição da criança, que busca intervir nestas disposições redutoras que sofre, trabalho que aposta na educação como campo de batalha e que exige uma entrega: considerar a capacidade da criança para alçar devires, para fazer/ transitar por territórios insurrecionais com caminhos e movimentos múltiplos com coeficientes de chance e perigo.

Sabedores da nossa não neutralidade, admitimos a dimensão político-desejante desta pesquisa. Importante dizer que ele carrega a chama de sua inconclusão, num processo em permanente se fazer, não dispensando assim uma coletivização de análises – que justifica a escrita deste artigo – sabendo das avaliações, realinhamentos e ressignificações contínuas e necessárias. 

O projeto se intitula Sonhar com a interculturalidade através das histórias de vida das crianças da França e do Brasil, e é um dos desdobramentos da pesquisa Perspectivas da pesquisa biográfica e seus diálogos com a formação. Histórias de Vida na Escola.

Como parceiro, temos o liceu Molière, localizado no bairro de Laranjeiras, que tem a língua francesa como referência e com crianças de classes privilegiadas do Rio de Janeiro e do mundo. Muitas famílias destas crianças mostram interesse em projetos na escola que contribuam para que seus filhos tenham preocupação em intervir nas desigualdades como fonte de privilégios no mundo.

Outra parceira é a escola Marechal Trompowsky da Secretaria de Educação do Municipio do Rio de Janeiro, que serve à comunidade de Mangueira e outras comunidades pobres do entorno. A diretora desta escola é filha da grande sambista da escola de samba da Mangueira, da comunidade da Mangueira, D. Neuma, mostrando a potência da cultura fazendo suas viagens (BHABHA, 2003).

A terceira parceria é com a Oscipe Biblioteca da Mangueira, uma biblioteca desta comunidade aberta ao público em geral, com interesse nos trabalhos das crianças. Neste projeto a parceria tem como objetivo estimular a presença da criança na biblioteca. Trata-se de uma biblioteca pobre, de comunidade pobre, com estrutura precária, mas que trabalha afinada  ao conceito de biblioteca viva, aberta aos devires da criança e da educação.

 Contamos com o apoio do Laboratório LIPIS – PUC-RJ e do Laboratório EXPERICE – Universidades Paris 8 e Paris 13, França, para a realização deste trabalho cujos atores principais são as crianças destas escolas. Suas experiências de vida contadas através de suas histórias orais são nosso dispositivo de trabalho.

A problemática da diferença é elemento a ser analisado (NEGRI, 2003; 2006; DELEUZE; GUATTARI, 1980). Crianças e jovens de países diferentes, classes sociais e culturas diferentes, línguas diferentes, experiências de vida muito diferentes, inclusive proporcionadas pelas condições das próprias escolas, se encontram e trocam suas experiências de vida, através de suas histórias. Através destes encontros, destas trocas, buscamos possibilitar uma experiência intercultural entre as crianças, em que um comum trabalha o convívio com as diferenças. Sabemos que isto não é fácil. 

A experiência intercultural e a problemática da diferença que portam, pode favorecer no campo educativo novos devires com as crianças como atores importantes. Queremos intervir nas segregações das crianças e jovens das comunidades pobres, na criminalização da pobreza, nos racismos, que explicitam a urgência de ações contra as desigualdades em escala local/global. No local/escola, o mundo se movimenta. E é importante intervir nesta perspectiva da imundialização, como diz Jean Luc Nancy, no imundo, in-mundo.

A interculturalidade como práxis do comum na educação

O Brasil de Fato, em matéria do professor Otaviano Helene (2015), analisa a educação como reprodutora das desigualdades sociais. Não só o acesso à escola pública, mas a dificuldade da escola em não só situar, mas estimular o aluno de classes menos favorecidas, para que fique e aprenda com a escola, mostram ainda uma grande distância entre o processo educativo e as classes sociais menos favorecidas.

Carlos Brandão (1981; 1984), Paulo Freire (1983; 2001), Anísio Teixeira (1989; 1989a; 1990) sempre fontes de inspiração da educação brasileira, muito fizeram para que a educação se tornasse do oprimido e não contra o oprimido.

A necessidade da crítica de como as contradições da ordem social capitalista são operadas na educação, leva Carlos Brandão (1983) a refletir sobre os ardis da Ordem, que se por um lado contribuem para se analisar as complexas relações entre Estado e sociedade, por outro, demandam análises da implicação dos diversos atores do processo educativo em suas diferentes práticas (LOURAU, 1997).

Importante dizer que um dos ardis da Ordem é manipular a diferença, midiatizada como negativa, buscando esvaziar a potência que porta. 

Vale então perguntar: como ressignificar a diferença, vista como negativa? Como fazer para que a educação possa reinventar suas coordenadas de enunciação que se aliem às urgências de um comum no presente (OZÓRIO, 2016)? 

Buscamos problematizar este debate com uma práxis: favorecer trocas interculturais entre crianças, relevando um entendimento da interculturalidade como práxis do comum que aposta na potência da diferença.

O comum diferencia, diz Antonio Negri (2003; 2006), o que evita confusões e indiferenciações ambíguas. Nele pode-se localizar um entre-diferenças que se opera, num campo de multiplicidades que não busca o universal, a totalidade, mas, ao contrário, regenera as singularidades. Se nele pode-se antever a hegemonia de determinadas forças e formas institucionalizadas, percebe-se também uma espécie de novo vigor de outras forças e formas que apostam mais na invenção. E como práxis, é processo que não se julga pelo resultado final, mas pela qualidade do seu curso e pela sua potência. Trabalha através de agenciamentos, os mais inusitados, e como rede de agenciamentos porta uma continuidade aberta que se opõe às densificações do controle (NEGRI, 2006; OZÓRIO, 2014; 2014a).

O comum nos convida a pensar na problemática da diferença e seus  nexos sócio-político-interculturais. Interessante esta compreensão do comum que leva em conta as diferenças, do comum como “reservatório” de heterogênese, com suas linhas de fuga, suas resistências e sua potência de criação. Negri (2006) inspira-se em Deleuze (1988), na sua tentativa de exaltar a diferença contra a repetição, de afirmação da singularidade contra a abstração universal. Enquanto tal, se constrói com ingredientes - singularidades, trazendo no seu bojo uma rejeição à lógicas identitárias, essencialistas.

Deparamo-nos com um horizonte de possibilidades, de reaprender o mundo segundo o registro da criação. Com a heterogeneidade, tem-se a liberdade para misturar o que estiver disponível e improvisar linguagens as mais diversas. Não é processo fácil, ou melhor, não  pode ser entendido por simples explicações. Digamos que distâncias e ressonâncias entre as diferenças, estranhamentos, ritmo peculiar, cadenciam um processo com composições inusitadas.

O comum autoriza a falar de um processo de engendramento nos interstícios culturais. Como diriam Deleuze e Guattari (1980), a fronteira é entendida como  linha de fuga, como entre-dois, entre-culturas, em que movimentos de desterritorialização “sustentam”  componentes moleculares, com pontos deste processo indiscerníveis. Não deixa de ser interessante pensar num modo de subverter certas concepções da fronteira - Estado e seus comprometimentos com a fabricação da miséria e da riqueza. Ou de subverter concepções que respaldam a industria cultural hegemônica. Importante lembrar de Bhabha (2003) com sua ideia de uma nação disseminada – disseminação -, em outras espécies de fronteiras com seus hibridismos culturais, emergentes de momentos, acontecimentos que marcam o ato insurgente da tradução cultural. O entendimento de fronteira como linha de fuga trabalha a potência da disseminação em que um comum intervém em identitarismos que querem esvaziar a potência da diferença. Quando falamos de linhas de fuga não nos referimos a fugir de algo mas de se fazer de outro modo, de se maquinar outros modos existenciais, pautados nas experiências de vida que se agenciam. Nestas pode-se localizar a intensidade da experiência fenomenológica como criadora da diferença ontológica. A diferença, fulgurante, afirma sua capacidade de resistência, afirmando a crítica ao ato de silenciamento da diferença, mostrando que é possível não estar irremediavelmente capturado nas malhas do poder.

Paulo Freire (1983), no livro Pedagogia do Oprimido, dá elementos para compreensão de perspectiva política da educação, que este entendimento da interculturalidade como práxis do comum porta. A ditadura de 1964, que assolou o Brasil, não perdoou a pedagogia ousada de Freire. Nas Primeiras Palavras deste livro, na 12a edição em 1983, já nos seus 5 anos de exílio, esclarece que o trabalho da educação é político, radical. Concordamos com este autor que compreende a radicalização como criação alimentada pela criticidade, necessária à transformação da realidade.

Em Educação e Atualidade Brasileira, outro livro de Freire (2001), publicado muito tempo após sua morte, abrem-se mais compreensões caras à educação comum.  Este autor, à maneira de um après-coup, critica a verticalidade e o autoritarismo da educação brasileira. Nada mais interessante do que ter as crianças, como se propõe a nossa pesquisa, como aliadas para intervir nos centralismos da educação.

Nesta discussão, há um vetor ético que revigora a alma. Na educação, como campo do comum, germinam culturas diferentes, conexões entre o valor da liberdade e o valor da igualdade na afirmação da diversidade e do pluralismo.

Histórias orais de vida em comum e a importância da experiência intercultural

Há quem diga que o comunismo de Deleuze e Guattari (1980) se fez nos mil platôs da prática transformadora. Penso no comunismo que se faz com as histórias de vida em comum, um comunismo na educação que vive quando se rompe o que permite a medição das coisas e pessoas segundo os critérios da equivalência geral, quantificante e abstrata. Benjamin (2000) falava de uma história, a contrapelo; podemos falar de uma educação aliada a esta história, indo na direção contrária à esperada.

Trazemos para a educação a importância do compartilhar experiências de vida, contadas através das histórias orais de vida em comum das crianças, em que se depreendem seus mais diferentes modos de ser, estar e agir no mundo. Nosso dispositivo nesta empreitada é o Papo de Roda, lugar onde acontecem estas histórias. 

São histórias orais, são histórias orais de vida em comum. São histórias das crianças da escola Marechal Trompowsky na sua grande maioria moradores da comunidade da Mangueira, que vêm de muitos Brasis. São histórias orais de vida em comum das crianças do liceu Molière, com grande comunidade francófona e de outros países, inclusive o Brasil. A arte de contar das crianças traz pistas da condição fronteiriça da tradução cultural, com a imigração e seu potencial diaspórico. Pela ótica afetiva da criança. E pela potência da história oral na sua versão biográfica e comunista, marca indispensável no século XXI, como diria Portelli (2002), aliada para afirmar uma crítica em ato ao silenciamento da diferença, como guia para a redescoberta do tempo do devir.

Importante aqui dizer que este trabalho tem singularidades, passando por dois momentos importantes que se conectam. No primeiro, as crianças de cada escola têm a oportunidade de contar suas histórias entre si, resgatando a potência da narratividade da criança que tece um comum na escola, na educação. No segundo momento, as crianças das duas escolas se encontram e narram suas histórias em comum. Se no primeiro momento a potência de um comum, intercultural, acontece na sala de aula, no segundo momento, com o encontro das crianças das duas escolas, este comum, intercultural, que se faz no momento da narração em comum das suas histórias de vida, aprofunda suas práxis de questionar fronteiras e rediscutir limites. As fronteiras enunciativas entre-culturas que se fazem na narração das histórias, na sua heterogeneidade, expõem a importância das experiências de vida das crianças, seus diferentes modos de ser, agir. Pode-se falar de uma trama cultural, com diferenças não hierarquizadas, que busca intervir na indiferença à diferença ou em algum movimento que busque colocar alguma diferença como centro, favorecendo um processo que permita que suas conexões sejam mais operacionais. Assim, reivindica-se uma atitude disposta a atualizações sensíveis mesmo à coisa minúscula de onde se pode tirar maravilhas.

A compreensão da narração como experiência, que se abre ao mundo, abriga uma exigência, a da diversidade e multiplicidade, e uma suspeição pois há os que vêm como alternativa à modernidade líquida, a hipertrofia da diferença (OZÓRIO, 2008; NOUDELMAN, 2003).

As experiências narradas, as significações dadas, podem ter relação com um sentido de comunidade (Gemeinsamkeit), entendido como um compartilhar que é exteriorizado sob a forma de signos comuns (DELORY-MOMBERGER, 2003). Podem exprimir momentos de solidariedade única, um entendimento tácito (BAUMAN, 2003) muito diferente de um consenso que justo implica num acordo no qual as diferenças são subsumidas. A narração em presença supõe uma comunicação possível que Levi (1997) denomina comunidade de comunicação, enfatizando o ato dialógico na interpretação do material biográfico.

Por outro lado, a narração em presença do outro é um momento das histórias de vidas, supondo a diversidade e das intensidades em jogo, da vida que é contada em comum. Narrar histórias de vida em presença do outro são transmissões possíveis pela via do compartilhamento, na diversidade. Se neste há uma dimensão subjetiva da experiência que escapa à pura objetividade, há também a experiênciahibridizada pelo comum, intercultural, que se faz no momento da narração, sem preocupação de produzir a unidade dos antagonismos e das contradições (OZÓRIO, 2008).

Aliás, é oportuno dizer que nosso dispositivo de trabalho, o Papo de Roda, foi proposto pela comunidade de Mangueira em 2003, quando lá começamos a realizar com esta comunidade um campo de pesquisa que já dura 13 anos.¹ A denominação Papo de Roda tem analogia com a Roda de Samba, cultura da Mangueira que tem mostrado como a cultura viaja e faz seus devires. Como diz Carvalho (1987), a cultura subterrânea das comunidades pobres se afirma na cultura sobreterrânea das elites².

No início deste artigo, há dois fragmentos de histórias das crianças, Maria Eduarda com 9 anos, da escola Marechal Trompowsky, moradora da comunidade da Mangueira, e Arthur, do Liceu Molière, com 8 anos, de família francesa. São fragmentos de histórias de vida narradas em comum, no Papo de Roda que aconteceu na Biblioteca da Mangueira, campo de encontro das crianças das duas escolas. Esta biblioteca, como biblioteca viva, se apresenta como um lugar aberto às experiências, matriz do saber democrático, como diz Freire (2001). A experiência precisa ocupar o lugar que tem educação.  

São fragmentos de histórias que relevam a intensidade da narração das crianças hibridizada pelo comum no processo. São fragmentos que mobilizaram muito esta experiência narrativa.

Deleuze e Guattari (1980) consideram as crianças espinozistas, que se movimentam sem fórmula prévia, com um compromisso básico com a alegria. Incrível a capacidade destas para os afetos, ou seja, sua capacidade de afetar e ser afetada, de efetuar uma potência que subverte, faz o eu vacilar.

Maria Eduarda e Arthur fazem-nos experimentar a força de suas histórias de vida, a força da narração em comum, seus interstícios compondo um devir intercultural. Nas suas histórias expressa-se a força não mensurável do devir-criança no campo educativo, convidando que a educação dê asas ao desejo de invenção de um outro mundo.

As crianças de Mangueira, como Maria Eduarda, inúmeras vezes mostraram sua sensibilidade com os céus, com suas pipas neles fazendo suas circunvoluções (OZÓRIO, 2008a). O desejo de Maria Eduarda de alçar voos estabelece alianças com a história de Arthur que explora a riqueza da vida nas suas mutações existenciais. Arthur, de família francesa, explora possíveis da experiência numa ética prospectiva.

Os céus e a terra, a lua e a terra, Brasil, França, New York (como Maria Eduarda já escreve, mostrando a presença da cultura americana no Brasil), se aliam numa magia intercultural. Seus fluxos favorecem a exploração de invisíveis e indizíveis, trazendo outras sensibilidades para o campo da educação.

Interessante relevar os humores, risos, sorrisos, silêncios, profundidades, irreverências das crianças quando do processo narrativo que não exige aferições no olhar, comporta a eloquência da criança em devir, os encantos com conhecimentos desconhecidos.

Foucault (1982) analisa a historicidade de nossos dias, muito beligerante. Pensamos no comum, intercultural animado pelas crianças, proposta bastante provocante no mundo atual. Ela afirma o paradoxo, a contradição, os impasses e a riqueza da relação entre, mas também a presença de um calor vivo da práxis na/da diversidade que um comum provoca. Neste processo está a criança cartógrafa, experimentadora, artesã ímpar, que na sua liberdade intersticial, acessa um meio em movimento feito de qualidades, potências, substâncias, uma multiplicidade em equilíbrio, matéria fluida. Ela acessa uma educação chamada vida, parafraseando Paulo Freire e Frei Beto (1985).

 


NOTAS:

(1) A pesquisa na comunidade da Mangueira vem fazendo seus devires. Este artigo é um exemplo. É pesquisa – processo, cartografado pela comunidade, trabalhando diversas temáticas, respondendo a muitas das diversas demandas comunitárias. Tem tido parcerias entre o Departamento de Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Programa de Pós-Graduaçăo em Psicologia Social - Mestrado e Doutorado – e a FAPERJ (Fundação Carlos Chagas de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro), de 2003-2004; 2005-2006; 2010-2011. Também estabeleceu parcerias com os laboratórios LAMCEEP ( Laboratoire d’approche multiréférentielle et clinique de l’expérience et de la formation permanente) em 2004-2005 da Universidade Paris 8. Tem parceria com o Laboratório EXPERICE (Centre de recherche interuniversitaire, Expérience Ressources Culturelles Éducation, Paris 8– Paris 13) na França, a partir de 2006 e com o Laboratório Lipis – Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social.  Pontifícia Universidade do Rio de Janeiro – PUC, a partir de 2007.

(2) No Papo de Roda a comunidade tem afirmado suas experiências, resistindo à violência quotidiana, sua midiatizaçăo/segregação. O Papo de Roda foi demandado em 2003, num momento em que a Mangueira enfrentava uma conjuntura político-social local e no Estado do Rio de Janeiro, violenta. Enfrentava o programa Tolerância Zero do Governo do Estado do Rio de Janeiro, à época, que com esta denominação mostra a intolerância dos biopoderes do Estado do Rio de Janeiro para com insurreições na cidade, que guardavam relação com uma sociedade injusta, desigual e uma tolerância para com a perpetuação destas desigualdades (Ozório, 2008).

 

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Recebido: 24/04/2016.
Aceito: 06/06/2016.
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