MASOQUISMO: HISTÓRIA, TEORIA E SUBJETIVAÇÃO

 

Suéllen Pessanha Buchaúl
Psicanalista. Especialista em Psicanálise Clínica e mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. E-mail: sbuchaul@yahoo.com.br.

Leonardo Câmara
Psicanalista. Mestre e doutorando em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. E-mail: lcpcamara@gmail.com.

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Resumo: Pretendemos neste artigo realizar um estudo crítico sobre como a figura do masoquismo foi trabalhada na teoria freudiana. Começamos pela explicitação de seus antecedentes, quer dizer, a literatura de Sacher-Masoch e a fabricação da categoria de masoquismo no campo da medicina legal por Krafft-Ebing. Depois, investigamos o conceito de masoquismo na obra de Freud, mostrando como tal conceito protagonizou certas reflexões teóricas importantes sobre a pulsão e, posteriormente, sobre o eu. Para finalizar, indicamos de que forma a psicanálise entende que o masoquismo, longe de ser uma patologia ou uma aberração sexual, é uma forma de o sujeito evadir-se do estado de desamparo.
Palavras-chave: Masoquismo. Desamparo. Psicanálise.

MASOCHISM: HISTORY, THEORY AND SUBJECTIVITY

 

Abstract: In this article, we intend to perform a critical study on how the figure of masochism was composed on Freudian theory. We start it by explaining its predecessors, that is, the literature of Sacher-Masoch and the fabrication of the masochism category in the field of legal medicine by Krafft-Ebing. Later, we investigate the concept of masochism in Freud’s works, showing that such concept was prominent in certain important theoretical reflections on the instinct and, subsequently, on the ego. Finally, we indicate that the way psychoanalysis understands masochism, far from being a pathology or sexual aberration, it’s a manner by which the subject can evade a state of helplessness.
Keywords: Masochism. Helplessness. Psychoanalysis.

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Introdução

Desde seu surgimento no final do século XIX, o masoquismo suscita curiosidade não apenas no interior do campo científico, mas também entre o público leigo (FERRAZ, 2008). A possível articulação da dor com o prazer causa perplexidade, já que abrange duas modalidades de experiência que são, ao menos aparentemente, opostas. Somando-se a estas duas modalidades, outras emoções – como aflição, sofrimento, amor, crueldade, paixão, luxúria, submissão, admiração, voluptuosidade – podem se combinar a tal ponto e de tal maneira que sua coexistência, mesmo que tida como contraditória, se torna indispensável na relação sexual do sujeito com o objeto amado (SACHER-MASOCH, 1870/2008).

Em 1886, Krafft-Ebing publicou uma enciclopédia com o intento de catalogar uma coleção exaustiva de comportamentos sexuais que se desviavam daquilo que era considerado normal e natural (KRAFFT-EBING, 1886/1895). Dentre estes comportamentos, o psiquiatra vienense descreveu uma prática que denominou “masoquismo”, apoiando-se na literatura do escritor austríaco Sacher-Masoch (DELEUZE, 1967/2009; MICHEL, 1989/1992). Poucos anos mais tarde, Freud tomou parte neste assunto e foi mais além: se poderia, de fato, se configurar como uma perversão – ainda que a partir de critérios distintos daqueles estabelecidos por Krafft-Ebing –, o masoquismo poderia ser considerado ainda como uma manifestação possível e legítima da sexualidade humana (FREUD, 1905/1996). E não apenas isso: o masoquismo foi se tornando também um conceito fundamental para a compreensão do psiquismo ao longo do percurso teórico de Freud. Em outras palavras, de sintoma patológico, o masoquismo, dentro do pensamento freudiano, passou a ser complexificado: seja sendo entendido como uma forma de perversão, um elemento integrante da sexualidade humana (FREUD, 1905/1996), ou, ainda, como uma função estruturante do eu a partir da segunda teoria das pulsões (FREUD, 1924/1996). Acrescente-se, para finalizar, que certas leituras pós-freudianas concebem o masoquismo como um modo de subjetivação do qual o sujeito lança mão para lidar com o estado de desamparo (BIRMAN, 1999; FORTES, 2007).

Nosso interesse pelo tema surgiu a partir de algumas observações clínicas derivadas de nossa experiência profissional. Dentre essas observações, dois elementos nos chamaram atenção no discurso dos pacientes atendidos. O primeiro é um estado de desamparo que eles se defrontam constantemente em suas vidas: quer dizer, a ameaça de desamparo parece espreitá-los a todo momento (FREUD, 1926/1996; ANDRÉ, 2001; BESSET, 2002; RUDGE, 2009). O segundo elemento, ponto fundamental deste trabalho, é a “solução”, não obstante permeada de sofrimento, que eles encontram para evadirem da posição de desamparados: a ameaça do abandono é tão temerosa e antecipa consequências tão catastróficas, que estes sujeitos se submetem e se subjugam ao outro afim deste não os abandonarem. É neste sentido que entendemos o masoquismo como uma medida de proteção contra o desamparo (BIRMAN, 1999; 2009; FORTES, 2007).

Outro ponto que tem chamado a nossa atenção e que expressa uma analogia com este tema é o fato de existirem certas práticas masoquistas na contemporaneidade que adquirem contornos particulares. Grupos de pessoas se reúnem, por exemplo, em festas privadas para terem relações sexuais sadomasoquistas, estabelecendo entre si um contrato que assegura o sigilo e que limita a margem de ação tolerada na prática dos participantes. Ademais, é digno de nota observar que atualmente certos livros que tocam no tema do masoquismo têm conquistado enorme sucesso no mercado editorial, e filmes – sejam eles adaptações de tais livros ou não – têm invadido as salas de cinema e mexido com o imaginário, ou melhor, com as fantasias íntimas do público. Aliás, até mesmo em manifestações artísticas que se encontram à margem da (e que resistem ativamente à) cultura de massa é possível detectar fortes ressonâncias do masoquismo. A este respeito, temos em mente certas performances da body art. Enfim, ainda que estes fenômenos – práticas masoquistas e a body art – não se confundam com a questão do masoquismo conforme trabalhada pela psicanálise (seus campos epistemológicos são distintos), a analogia que pode ser traçada entre todos os elementos citados é suficientemente interessante para considerarmos o masoquismo um tema relevante e, com toda certeza, polêmico, para se pensar a contemporaneidade.

A origem do conceito de masoquismo

Propomos explicitar neste item a origem da palavra e do conceito de masoquismo, que é utilizada tanto de forma corriqueira para descrever o prazer no sofrimento – sendo efetivamente aplicada nas mais variadas situações da vida cotidiana – quanto empregada como conceito no interior de campos de saber como no da psiquiatria e da psicanálise. Compreendido a princípio como perversão, seu significado girava em torno do erotismo dissoluto, da libertinagem, do sórdido e do imoral (KRAFFT-EBING, 1886/2001). Com a psicanálise, o masoquismo adquiriu a cidadania de conceito e ganhou os sentidos de passividade, submissão e vulnerabilidade (FREUD, 1915/1996; BIRMAN, 1999). Assim, pode-se dizer que prazer, sofrimento e submissão são alguns dos elementos que se atrelam ao masoquismo.

A palavra masoquismo surgiu pela primeira vez no terreno científico como aberração sexual. Mais especificamente, o termo foi cunhado pelo famoso psiquiatra da Universidade de Viena, Richard Von Krafft-Ebing, em Novas investigações no domínio da Psychopatia Sexualis (KRAFFT-EBING, 1886/1895), obra científica que gozou de grande repercussão em todo mundo europeu no final do século XIX (FERRAZ, 2008). Esta produção consiste em um compêndio classificatório de sintomas patológicos que inclui e descreve as mais diversas práticas sexuais que fogem ao que se concebe como o objetivo principal do ato sexual dito normal. Krafft-Ebing (1886/2001) utiliza-se de um parâmetro exclusivamente biológico, a reprodução, para definir os comportamentos sexuais desviantes. Em outras palavras, sua concepção é de que todo prazer natural deve corresponder à preservação da espécie; o comportamento que escapa a esse propósito deve ser considerado uma patologia sexual (PEREIRA, 2009; FERRAZ, 2008). Se, na leitura do psiquiatra alemão, o sujeito apresenta tais modos de comportamento, é por decorrência de uma degenerescência moral.

É a partir dessa lógica (segundo a qual a perversão é um desvio da função reprodutiva devido a uma degenerescência) que o conceito de masoquismo aparece em sua obra categorizada como prática sexual aberrante, sendo perfilada em vizinhança ao sadismo. Ambas as nomenclaturas propostas – tanto masoquismo quanto sadismo – foram explicitamente derivadas do nome de dois escritores: Sacher-Masoch e Marquês de Sade. Mais do que isso, Krafft-Ebing não apenas se apropriou do nome deles como também incorporou, em seu livro, as descrições de comportamentos sexuais que se encontram ao longo da narrativa das obras dos dois autores citados. Estas revelam de forma detalhada as cenas caricatas do sadismo e do masoquismo, envolvendo um alinhamento surpreendente entre prazer e dor (BUCHAÚL, 2015). Em outros termos, Krafft-Ebing constrói as categorias de sadismo e de masoquismo correlacionando de modo indissociável, no interior da prática sexual de certos sujeitos, as experiências de prazer e de dor. Enquanto a primeira (sadismo) caracteriza-se pelo ato de incidir dor e humilhação ao outro, a segunda (masoquismo) é definida pelo prazer de se fragilizar e se submeter ao objeto amado (KRAFFT-EBING, 1886/1895; MICHEL, 1989/1992; PEREIRA, 2009).

Freud, que leu Krafft-Ebing e que inclusive o cita em seus Três ensaios, considera o sadismo e o masoquismo como “as mais frequentes e significativas das perversões” (FREUD, 1905/1996, p. 149). Ele se apropria destas duas figuras para apresentar a configuração dupla da perversão segundo suas formas ativa e passiva. É justamente aí, no primeiro dos Três ensaios (intitulado As aberrações sexuais), que Freud lança a hipótese de que haveria: de um lado, um “componente agressivo autonomizado” na sexualidade humana na qual o sadismo seria o representante mais claro; e, de outro lado, um comportamento passivo perante a vida e o objeto sexual, cujo arauto seria o masoquismo. Nestas circunstâncias, tanto a atividade quanto a passividade constituiriam características universais da vida sexual – vale dizer, tanto o sadismo quanto o masoquismo seriam elementos integrantes da vida pulsional (FREUD, 1905/1996). Portanto, Freud discorda de Krafft-Ebing a partir do momento em que este postula a perversão sexual como um desvio da função reprodutiva, dado que esta função, para Krafft-Ebing, é a única meta legítima do instinto sexual. Pelo contrário, o que vai configurar o sadismo ou o masoquismo como uma perversão, para Freud no contexto de sua teoria pulsional, será antes a evidência de características de “exclusividade e fixação” no ato ou no objeto substituindo integralmente o alvo sexual normal¹ (FREUD, 1905/1996, p. 153). 

O leitor atento terá notado que, sub-repticiamente, adicionamos o sadismo em nossa discussão e o colocamos em uma posição paralela em relação ao masoquismo. Isto não é incidental. De fato, para Krafft-Ebing (1886/1985), a categoria de masoquismo aparece atrelada à de sadismo, assim como Freud coloca esta última associada àquela ao longo de sua teorização (FREUD, 1915/1996). Porém, conforme já indicado, ambas tiveram sua gênese em obras e autores incontestavelmente diferentes. Ora, a concepção de complementariedade entre os dois conceitos/categorias será fortemente censurada somente décadas depois por, dentre outros autores, Gilles Deleuze (1967/2009), para quem sadismo e masoquismo pertencem a “universos estéticos e eróticos completamente distintos e autônomos” (PEREIRA, 2009, p. 383).

É um dado histórico comprovado, aliás, que a apropriação do nome dos romancistas por parte de Krafft-Ebing foi energicamente criticada por Sacher-Masoch (BUCHAÚL, 2015). Com efeito, ele protestou o fato de sua obra e seu nome terem sido reduzidos a uma patologia sexual: conta-nos Michel (1989/1992) que ele “recusou com indignação ser posto de lado (...); não podia admitir que tudo isso fosse rebaixado ao nível de uma doença mental” (p. 7). Apesar das manifestações do escritor, o termo masoquismo se consolidou de vez no vocabulário da psiquiatria, enquanto que seu inspirador caiu no esquecimento: as obras de Sacher-Masoch dificilmente são lidas e, mesmo, publicadas; seu único romance acessível e reeditado é o célebre A Vênus das peles, publicada em 1870 (MICHEL, 1989/1992).

Enfim, depois dos protestos e das críticas de Sacher-Masoch dirigidas à Krafft-Ebing, este último replicou, afirmando que aquele não somente descrevia o comportamento masoquista em seus livros, como ele próprio era atormentado por esta “anomalia sexual”. Aos olhos de Krafft-Ebing, portanto, o próprio Sacher-Masoch era um masoquista. O psiquiatra alemão se baseou não apenas no conteúdo dos romances para justificar seu diagnóstico, mas coletou também os relatos de Sacher-Masoch a respeito de sua vida amorosa particular (FRANÇA & MACHADO, 2012). Aliás, o modo extremamente verossimilhante de como o escritor explanava em seus romances situações de sua vida privada era ponto atrativo para seus leitores. O grande escritor austríaco pintava com intensidade a sua obra, de modo que seus romances particulares eram transpostos de forma poética para as páginas de seus livros – obras literárias famosas por desvendar os mistérios das relações proibidas, em uma linguagem bastante descritiva e voluptuosa, acenando uma mistura entre prazer, sensualidade, submissão, domínio e crueldade (BUCHAÚL, 2015).

E todos os meus romances, quando não tratam de um assunto histórico, nasceram de minha vida, banharam-se no sangue do meu coração (...) em cada uma de minhas narrativas há um nervo que é meu, há motivos que são extraídos de minha vida. Mesmo quando a fábula é inteiramente inventada (...). Na minha obra a pintura é sempre propriedade do poeta, mas a tela em que nasceu assim como sua impressão pertence à minha pessoa, à minha vida. (...) houve uma época em que a pálida Olga deitava ternamente em meu peito a cabeça cansada da vida e uma outra época em que, realmente, fui o escravo de uma mulher bela e cruel (...) (SACHER-MASOCH, 1879 apud MICHEL, 1989/1992, p. 8).

Sacher-Masoch trazia para o plano fictício dos seus romances aquilo que ele buscava efetivamente representar em sua vida: a fantasia de colocar-se como escravo, servo de sua senhora amante. É nesse jogo de relação de poder (além da experiência de dor) que o prazer se torna possível para o masoquista, desde que ele possa ordenar e dirigir toda a cena, exigindo ser tratado de forma cruel e violenta (MICHEL, 1989/1992; DELEUZE, 1967/2009; FRANÇA & MACHADO, 2012). Em outras palavras, a condição para a satisfação é a relação de dominação entre os personagens da cena. Conforme se encontra em uma das páginas de A Vênus das peles: “fui seriamente maltratado pelo chicote e encontrei a cura” (SACHER-MASOCH, 1870/2008, p. 31). Há que se notar, contudo, que este aspecto não foi negligenciado por Krafft-Ebing (1886/1895): “O indivíduo (...) é obcecado com a ideia de ser submetido incondicionalmente a uma pessoa do sexo oposto, para ser tratado pela sua altivez a sofrer humilhação e tortura” (KRAFFT-EBING, 1886/1895, p. 121-122).

O masoquismo é polvilhado, em suma, por uma miríade de características que acabam por torná-lo um fenômeno envolto em mistério. Não foram apenas Sacher-Masoch, Krafft-Ebing e Freud – cada qual ao seu jeito – que miraram para este mistério. Deleuze também se lançou em um mergulho profundo no masoquismo e, mais precisamente, na obra de Sacher-Masoch. Ele buscou, a partir deste empreendimento, resgatar o autor do esquecimento e, assim fazendo, estabelecer uma visão crítica e inédita sobre o masoquismo. O resultado deste trabalho foi o importante ensaio Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Deleuze coloca aí que Sade e Masoch foram autores originais, “à maneira daqueles que sabem incluir em suas obras toda uma concepção de homem, da cultura e da natureza (...) à maneira daqueles que sabem extrair novas formas e criar novos modos de sentir e de pensar” (DELEUZE, 1967/2009, p. 18). O filósofo defende, neste sentido, que o sadismo e o masoquismo não são doenças; pelo contrário, referem-se a um sentimento de vida. Ele procura trazer, portanto, uma noção estética e autônoma de ambos os conceitos. Deste modo, seu trabalho coloca em cheque não apenas a concepção categórica de Krafft-Ebing, mas também as considerações desenvolvidas por Freud ao longo de sua obra. Entretanto, apesar das críticas de Deleuze, o masoquismo passou a ocupar um novo lugar na teoria freudiana. É o que veremos no próximo item.

O masoquismo na teoria freudiana

A figura do masoquismo aparece cedo na teorização freudiana e, coincidentemente, na mesma obra em que o conceito de pulsão é inaugurado: são em seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), com efeito, que ambos os elementos são introduzidos na teoria psicanalítica. Conforme já assinalado, o masoquismo é apresentado ao lado do sadismo, sendo considerado o seu avesso, o seu negativo, o seu polo de oposição. Esta concepção de complementaridade é herdeira das observações de Krafft-Ebing, atravessará toda a obra freudiana e só conhecerá críticas a partir de Deleuze (BUCHAÚL, 2015). Se esta concepção não sofre modificações na teorização freudiana, o mesmo não pode ser dito em relação a outras formulações concernentes ao masoquismo. Em um primeiro momento da teorização freudiana, por exemplo, o sadismo será entendido não apenas como um processo que antecede o masoquismo, como dará o tom das pesquisas sobre esta questão. É apenas a partir de 1920 e, efetivamente em 1924, que o masoquismo, pelo contrário, será entendido como primário em relação ao sadismo.

De qualquer maneira, de início o masoquismo e o sadismo serão pensados segundo a relação que eles mantém entre prazer e dor e, mais que isso, serão decompostos em dois movimentos psíquicos fundamentais: a passividade e a atividade. Tanto a passividade, que o masoquismo manifesta, quanto a atividade, que o sadismo apresenta, serão entendidas como um par de opostos das pulsões parciais presentes na vida psíquica. Desta forma, sadismo e masoquismo são introduzidos na psicanálise como componentes fundamentais da pulsão sexual: “[ambos] são duas vertentes de uma mesma perversão, cuja forma ativa e cuja forma passiva se encontram em proporções variáveis no mesmo indivíduo” (LAPLANCHE & PONTALIS, 1982/2001, p. 466).

Como se vê, desde sua entrada na teoria psicanalítica o masoquismo participa das reflexões de Freud sobre o conceito de pulsão. Isto não mudará nos anos posteriores, principalmente nos textos Pulsão e seus destinos (1915) e O problema econômico do masoquismo (1924). Por isso, será importante nos determos um pouco sobre a pulsão, quando isto se fizer necessário. Em 1905, Freud lança mão da teoria do apoio para dar conta da origem da pulsão sexual: de início, a experiência de prazer é indissociável da experiência de nutrição, isto é, de autoconservação. Aos poucos, a criança descobre que é capaz de manejar seu corpo de maneira a repetir uma experiência de prazer, mesmo não estando com fome ou recebendo comida. Através destas explorações do seu próprio corpo em busca de prazer, o organismo se transforma em corpo erógeno. Este corpo erógeno não é regulado por processos fisiológicos, se bem que deles se aproveita; o corpo erógeno é unicamente orientado pelo desejo e para o prazer. Se em um primeiro momento a criança descobre que há partes do corpo que são facilmente excitáveis – as zonas erógenas (boca, ânus, genitais) –, posteriormente o atributo de erogeneidade se estende a todo o corpo. Tendo isso em conta, Freud concebe que toda tensão que ocorre no organismo contribui para a excitação sexual, até mesmo o sofrimento e a dor (FREUD, 1905/1996; BIRMAN, 2009). Portanto, até mesmo o sofrimento e a dor podem provocar prazer. O masoquismo está aí para comprovar isso.

Ora, se na clínica a conjunção entre prazer e dor é constatável de maneira flagrante no masoquismo, sua adequação no edifício teórico da psicanálise é, não obstante, complicada. Não à toa, serão necessários vinte anos para Freud sair deste apuro. Mas por que há esta dificuldade? Simples: conceber que a dor pode provocar prazer é colocar em xeque a noção do primado do princípio do prazer, o qual define que todo o movimento do aparelho psíquico é orientado a fim de se livrar de toda e qualquer fonte de desprazer, visando unicamente à obtenção do prazer. Por desprazer, Freud entende uma elevação do nível de tensão intrapsíquica, enquanto que o prazer é o alívio deste acúmulo de energia. Portanto, sob regência do princípio do prazer, o aparelho psíquico seria obrigado a se aliviar do acúmulo de energia a fim de ter prazer, e, contudo, a dor, mormente o fato de provocar desprazer, ainda assim gera a sensação de prazer. Aloja-se aí o que será considerado por Freud o problema econômico do masoquismo.

É só a partir de 1920, no ensaio Além do princípio do prazer, que, com a introdução da noção de pulsão de morte, o princípio do prazer vai ter sua hegemonia restringida. Esta mudança de paradigma lançará as condições para se legitimar, na teoria psicanalítica, a formulação de que um grande nível de desprazer pode produzir uma experiência de prazer no sujeito. Sustentando a hipótese dada em 1905 segundo a qual todos os processos corporais – aí incluindo a dor – poderiam contribuir para a excitação sexual, Freud vai reafirmar, em 1924, que a excitação sexual independe do nível maior ou menor de tensão: Nada de considerável importância ocorre no organismo sem contribuir com algum componente para a excitação do instinto sexual”, inclusive, acrescentemos, o sofrimento e a dor (FREUD, 1924/1996, p. 180).

Percebe-se que o masoquismo marca sua presença em alguns problemas metapsicológicos importantes já em 1905. À medida que a teoria psicanalítica atinge novos graus de complexidade e a trama conceitual adquire novos arranjos, o masoquismo impõe-se como problema a ser pensado (BUCHAÚL, 2015). Em Pulsão e seus destinos (1915), artigo metapsicológico no qual Freud se dedica novamente a trabalhar com o conceito de pulsão, o masoquismo e o sadismo voltam à cena. Neste texto, o sadismo é entendido como anterior ao masoquismo, quer dizer, este último é concebido como um desdobramento daquele primeiro. Mais ainda, o masoquismo é formulado como sendo um sadismo voltado não contra o outro, mas contra a própria pessoa.

O sadismo direcionado a outrem não apresenta, de início, qualquer relação com o prazer sexual, sendo entendido unicamente como uma manifestação da posição ativa (atividade). O masoquismo, por sua vez, porquanto seja a reversão da agressividade (isto é, voltando-a contra a própria pessoa), traz em seu bojo uma transformação da atividade para a passividade. É somente aí que o prazer sexual entra em jogo. Deste retorno agressivo contra si mesmo, Freud vai identificar duas etapas possíveis: a primeira em que o sujeito provoca a dor diretamente nele próprio, sendo o caso da neurose obsessiva; e a segunda na qual o sujeito convoca outra pessoa para que esta lhe provoque dor e sofrimento. É somente neste segundo contexto que se pode considerar como o masoquismo propriamente dito (FREUD, 1915/1996). Em tal caso, o sujeito se coloca como objeto e elege o objeto para tomar o lugar de sujeito (ASSOUN, 1996).

Se em Pulsão e seus destinos o masoquismo é entendido como um movimento secundário em relação ao sadismo, esta ideia começa a entrar em crise com a introdução dos conceitos de pulsão de morte e de compulsão à repetição na grade conceitual freudiana. Com efeito, se em Além do princípio do prazer esta crise começa a tomar forma, é em 1924, no texto O problema econômico do masoquismo (1924), que Freud conceberá explicitamente a tese de um masoquismo primário, refutando assim a hipótese anteriormente aludida. Para entendermos esta viragem teórica, será necessário percorrermos o texto de 1924, bem como passarmos em revista algumas questões. A primeira delas é o problema teórico da dor e do sofrimento que provocam prazer.

Conforme visto, o funcionamento dos processos mentais é, à primeira vista, organizado pelo princípio do prazer, cuja regulação se dirige tanto no sentido de evitar desprazer quanto no de obter prazer. Incompreensivelmente, o masoquismo foge a essa lógica, posto que seus objetivos se direcionem justamente à produção do sofrimento e da dor, contradizendo assim o princípio do prazer, já que aqueles produzem, necessariamente, incremento de tensão e, por consequência, desprazer. Deste modo, o masoquismo, ao contrário do sadismo, está sempre exposto ao perigo por fugir à lógica do prazer. Freud propõe a partir daí investigar a relação do princípio do prazer com as pulsões de vida e de morte a fim de apurar este problema a partir de uma nova perspectiva (FREUD, 1924/1996).

A dinâmica prazer-desprazer e sua influência sobre o curso dos eventos psíquicos adquirem uma nova inteligibilidade com a proposição da hipótese de um além do princípio de prazer, isto é, de algo que passa ao largo do princípio do prazer. O além do princípio do prazer opera pelo princípio de Nirvana, que consiste na tendência do aparelho mental em reduzir ao mínimo as somas de excitação. Este princípio estaria a serviço da pulsão de morte, cuja finalidade é conduzir o organismo vivo à estabilidade do inorgânico (FREUD, 1920/1996). Desse modo, o organismo é movido (ou “vivido”) por duas forças pulsionais, uma buscando a estabilidade e zero de excitação – a pulsão de morte –, e a outra sendo o representante libidinal – a pulsão de vida. Se a pulsão de morte se dirige no sentido de desunir, decompor e fragmentar, a pulsão de vida atua como agente de união e ligação. Devido a esta propriedade, a pulsão de vida acumula ainda outra função: a de amalgamar-se com a pulsão de morte.

Munido desta teoria das pulsões, Freud coloca em questão o seguinte: uma vez que a pulsão de morte leva o organismo à autodestruição com a finalidade de conduzi-lo ao estado inanimado, de que maneira este efeito é neutralizado? A resposta é que o efeito de destruição não pode ser suprimido, mas apenas redirecionado. Este trabalho é possível graças à pulsão de vida, que se funde à pulsão de morte. Ocorrendo isto, parte da energia é lançada para fora em direção aos objetos externos; outra parte, no entanto, fica retida como resíduo no interior do organismo. Este resíduo não é pura pulsão de morte: a fusão com Eros a tornou um componente da libido. Ora, a este resíduo que fica estacionado no sujeito e que não logrou ser lançado contra o objeto externo, Freud vai chamar de masoquismo originário (ou primário). O masoquismo originário é a prova da fusão mais antiga entre pulsão de morte e Eros; ao mesmo tempo, esta forma de masoquismo é anterior ao sadismo, fazendo assim com que, a partir da segunda tópica, o masoquismo se torne primário em relação ao sadismo (e não mais o contrário). Freud postula ainda a existência de um masoquismo secundário: se a energia que conseguiu ser lançada para fora configura o sadismo, ela pode eventualmente ser recolhida e direcionada para o sujeito, ocorrendo então o masoquismo secundário (que, no caso, se acrescenta ao masoquismo primário) (FREUD, 1924/1996).

Em O problema econômico do masoquismo, Freud descreve três formas de masoquismo, todas as quais haviam sido trabalhadas por ele ao longo de seu percurso clínico e teórico. O primeiro tipo é o masoquismo originário, também chamado de erógeno. Ele se apresenta como uma condição imposta à excitação sexual e, da mesma forma, é o pano de fundo através do qual o sujeito vai ser conduzido às outras duas formas de masoquismo, o feminino e o moral (FREUD, 1924/1996). O masoquismo feminino trata da expressão da natureza feminina, tendo sido muito explorado no texto Uma criança é espancada (1919). Freud vai correlacioná-lo com a questão do complexo de castração, vendo nas fantasias masoquistas uma busca pela posição feminina (FREUD, 1919/1996). Por fim, o masoquismo moral é o que se manifesta como uma norma de comportamento (behaviour). Ele está intimamente articulado com o supereu e identificado com o sentimento inconsciente de culpa, conceitos explorados por Freud em O ego e o id (1923), e desenvolvidos amplamente em 1924 (FREUD, 1923/1996; 1924/1996).

É interessante observar que, em A Vênus das Peles de Sacher-Masoch, encontramos claramente essas três formas de masoquismo presentes e condensados no personagem principal do livro, Severin. A necessidade de se expor ao sofrimento, humilhação e precariedade e a forma pela qual isso é provocado estão relacionadas intimamente com a característica do masoquismo erógeno. Já o masoquismo feminino está presente no modo como Severin busca estar numa posição de passividade durante a relação sexual, sendo manipulado e dominado pela parceira. E no masoquismo moral, mediante o sentimento inconsciente de culpa, o personagem sofre o constrangimento provocado pelo adultério de sua senhora amante que ele próprio pedira para cometer (SACHER-MASOCH, 1870/2008; FRANÇA & MACHADO, 2012).

Se, na concepção de Krafft-Ebing (1886/1895), o masoquismo foi considerado um estado patológico, na segunda tópica da metapsicologia freudiana ele foi, pelo contrário, pensado como uma condição estruturante do eu (FREUD, 1924/1996). Seja como componente indissociável da vida pulsional, seja como característica insofismável do eu, o masoquismo, longe de ser algo patológico, é, para Freud, uma forma de subjetivação. Sua operação vai de encontro com o movimento do sujeito de se submeter ao outro como forma de impedir que seja abandonado. Nesta perspectiva, o masoquismo é entendido como uma moeda de troca: suporta-se o sofrimento exercido pelo outro para, em compensação, o sujeito conseguir lidar com o que de mais catastrófico lhe ameaça: o desamparo.

Masoquismo e desamparo

“Faça o que quiser de mim, mas não me deixe!” – eis a frase que parece sintetizar o modo de relação que certos pacientes exprimem em seus discursos. Entre o sofrimento e o abandono, o sujeito suporta sofrer a qualquer custo. O preço a se pagar para não ter que passar pela angústia do abandono é alto, mas ele parece estar disposto a isso. Na clínica da atualidade, o medo do abandono está cada vez mais presente no discurso de nossos pacientes, expressando um estado de extrema vulnerabilidade: “a fantasia de estarmos relativamente seguros é destruída por certos fatos que nos invadem (...), provocando uma sensação de vulnerabilidade” (RUDGE, 2009, p. 61). Algumas pessoas estão constantemente vivendo, portanto, a angústia relacionada à ameaça do desamparo. E tudo o que elas desejam é uma medida de proteção contra esse abandono: saem em busca de um amparo, de uma salvaguarda, de algo que possa lhes garantir que nunca serão abandonadas (BUCHAÚL, 2015). De onde vem esse medo? Por que certos pacientes estão vivendo constantemente na urgência de se prevenir contra essa ameaça do abandono, que se espraia pelo horizonte e cujas consequências prometem ser catastróficas?

Entendemos através da psicanálise que o estado de desamparo remete à sensação de morte e urgência de vida. O termo é enunciado por Freud como Hilflösigkeit, em alemão ligado à palavra Hilfe (quer dizer: ajuda). Laplanche e Pontalis (1982/2001) propõem a tradução francesa de état de détresse (situação de desamparo), para indicar um estado de impotência do recém-nascido de realizar qualquer tipo de ação motora apropriada para satisfazer suas urgências vitais. Este sentido específico, a que se refere o desamparo, foi elaborado por Freud em Projeto para uma psicologia científica (1895[1950]/1996), ao lançar a metáfora do recém-nascido. Neste momento de sua teorização, ele define o desamparo como o estado frágil do lactente que depende completamente do outro para satisfazer as suas necessidades específicas, sejam elas de sede ou de fome (LAPLANCHE & PONTALIS, 1982/2001). Quando, portanto, o bebê se encontra em estado de urgência e impotente para aliviar-se do aumento da excitação interna, ele necessita da ajuda de outra pessoa (a mãe), que irá assumir essa ação específica necessária à sobrevivência daquele recém-nascido (FREUD, 1985 [1950]/1996).

Deste modo, podemos perceber que Freud compreende dois elementos importantes que irão ganhar sentido ao longo da sua teoria (BUCHAUL, 2015). A primeira é a questão do desamparo como um processo fundamental pelo qual todo sujeito passa, sendo considerado desde 1895 como “a fonte primordial de todos os motivos morais” (FREUD, 1985[1950]/1996, p. 370). É na via de descarga realizada pelo choro do bebê direcionado à mãe, como forma de um pedido de socorro ou de ajuda, que se estabelece a comunicação efetiva de apelo contra o desamparo. O segundo elemento importante que se pode depreender da descrição de Freud relaciona-se à atenção que uma pessoa experiente cede ao bebê indefeso, bem como amor, cuidado, acolhimento e zelo. Estes cuidados indispensáveis à sobrevivência da criança é o plano de superfície sobre a qual emergem as vivências de desamparo e de angústia quando efetiva-se uma separação ou afastamento da mãe. Estaria aí a origem, para Freud, “[da] grande necessidade de amor que acompanha o homem por toda a vida” (RUDGE, 2009, p. 58). Ademais, é nesta primeira relação com o outro que se dá a estruturação do psiquismo; quer dizer, o aparelho psíquico começa a se constituir nos primeiros anos de vida a partir dessa relação de total dependência da mãe (ou de quem cuida) do vivente (LAPLANCHE & PONTALIS, 1982/2001).

Entre um elemento e outro encontramos a angústia como representante legítimo da pulsão de morte na vida psíquica. A angústia é desencadeada automaticamente pela sensação de desamparo, revelando-se como uma força cega, inflexível e repetitiva. Em 1926, ao reformular a teoria da angústia, Freud vai associar o estado do desamparo à sensação de urgência que o organismo humano sofre em seu nascimento. A angústia, em sua vertente automática, deixa de estar intimamente referida à sexualidade² e passa a estar associada à sensação de medo e ameaça de morte, como efeito do estado de desamparo (FREUD, 1926/1996; RUDGE, 2009). No caso da relação entre a criança e sua mãe, “tudo o que desagrada a mãe e poderia constituir uma ameaça de perda de seu amor também passa a ser motivo de angústia” (RUDGE, 2009, p. 58). Neste sentido, gradativamente a angústia associa-se também (e principalmente) a situações nas quais a criança sofre experiências de perda. Esta é uma das postulações mais importantes para se compreender o desamparo na teoria psicanalítica.

A perda adquire, desta forma, uma relevância inaudita na psicanálise: a teoria do desenvolvimento da libido, por exemplo, sofrerá modulações com a entrada em cena da questão da perda no livro Inibição, sintoma e angústia (1926). Segundo Freud (1926/1996), as diferentes etapas do desdobramento libidinal (oral, anal, fálica) teriam em comum a experiência de perda: os objetos parciais (seio, fezes, pênis) teriam assim uma equivalência simbólica com tal experiência, e esta última, por sua vez, traria em seu bojo ressonâncias do estado de desamparo. Toda questão giraria, neste sentido, em torno de como estas experiências de perda são elaboradas, do mesmo modo como o desamparo é submetido a tentativas de elaboração (FREUD, 1926/1996; LAPLANCHE & PONTALIS, 1982/2001). Estaria, neste processo, o movimento de estruturação do psiquismo.

O desamparo, conforme visto, é um momento muito particular, no qual o desespero da urgência de vida e da ameaça de morte se debatem no sujeito. A tendência é que essa sensação de ameaça de desamparo se repita ao longo de toda sua vida, principalmente em situações nas quais o sujeito se encontre em um estado de vulnerabilidade e fragilidade: é o “rochedo incontornável, no dizer de Freud, com o qual às vezes se tropeça” (BESSET, 2002, p. 208). Uma das formas pelas quais o sujeito busca fazer frente ao desamparo, e que nos interessa particularmente, é a de suplicar o amor e o cuidado do outro. Neste caso, o sujeito vive uma incessante angústia em busca do amor e cuidado que, não obstante, muitas vezes não encontra, pois nem sempre o outro está ali para lhe oferecer ou está disposto para tanto (BUCHAÚL, 2015). Para Jacques André, o desamparo, em sua vertente traumática, seria este desencontro, quer dizer, uma indicação de que “a vida psíquica permaneceu, que continua a ser vivida fora de si, na desesperada abertura sobre o outro, para o outro. Um outro que não responde (ou que responde mal)” (ANDRÉ, 2001, p. 105, grifo do autor).

As consequências disso que chamamos de “desencontro” são profundas. O sujeito se encontra em estado de desalento, sem garantia de perspectiva futura, em uma posição de fragilidade e vulnerabilidade na vida (BIRMAN, 1999). Como forma de escapar a isso, ele busca incessantemente estar à mercê do outro, custe o que custar. Se assim o faz, é para que tente assegurar que este outro esteja sempre ao seu lado, de modo a lhe dar garantia de proteção contra a experiência de desamparo. Esta posição de passividade diante do outro, na qual se troca submissão por amparo, é propriamente a maneira masoquista de proteger-se contra a desolação (BIRMAN, 1999; FORTES, 2007). Nestes termos, é possível entender que o que está em questão não é tanto a perda do objeto, mas a perda de uma posição libidinal, ou seja, a perda do lugar de ser amado (BESSET, 2002). É desta forma, portanto, que o sujeito lança mão do masoquismo a fim de recuperar esta posição e poder sentir-se novamente amado pelo outro, nem que seja através da mais completa submissão (BIRMAN, 1999; FORTES, 2007).

Enfim, não podemos finalizar este artigo sem antes ressaltar que a questão do desamparo aparece, com toda sua carga dramática, na obra de Sacher-Masoch e mesmo em sua vida particular (BUCHAÚL, 2015). Em outras palavras, este escritor trouxe a ilustração mais coerente e pungente do que é o masoquismo, considerando-o não como um estado patológico, mas como uma forma subjetiva pela qual o sujeito busca, na relação com o outro, evadir-se do estado de desamparo. E não foi, afinal, Severin, personagem principal de A Vênus das peles que, aos pés da amada, lhe suplicou, desesperado: “Faz comigo o que bem entender, só não me afaste de ti”? (SACHER-MASOCH, 1870/2008, p. 65).

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NOTAS:

(1)Considerando que, por alvo sexual normal, Freud entenderá, ao menos em 1905, como a “união dos genitais no ato designado como coito, que leva à descarga da tensão sexual e à extinção temporária da pulsão sexual” (FREUD, 1905/1996, p. 141).

(2)De 1895 a 1925, Freud considera a angústia como produto da transformação direta da quantidade pulsional em afeto, uma consequência do recalque. A partir de 1926, entretanto, a angústia passa a ser considerada anterior ao recalque e a causa do mesmo (FREUD, 1926; 1915/1996).


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Recebido: 30/07/2015.
Aceito: 28/10/2015.
DOI: 10.12957/polemica.2016.21337
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