AS BARBIES DO VAREJO: UM ESTUDO SOBRE OS PADRÕES ESTÉTICOS DO PROCESSO DE SELEÇÃO DO COMÉRCIO DA MODA CARIOCA

 

Bruna de Sousa Madureira
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Mestre em Psicologia Clínica do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC-Rio. Pesquisadora Associada do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social da PUC-Rio. e-mail: bruna.madureira@hotmail.fr.

Joana de Vilhena Novaes
Professora do Programa de Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida. Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-Rio. Pós-doutora em Psicologia Médica e em Psicologia Social pela UERJ. Coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza da PUC-Rio. Pesquisadora e psicoterapeuta do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (LIPIS) da PUC-Rio. Pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine- Université Denis-Diderot Paris 7 CRPM-Pandora.

Junia de Vilhena
Psicanalista. Membro efetivo do CPRJ. Doutora em Psicologia Clínica. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio. Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social – LIPIS, da PUC-Rio. Pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine, CRPM-Pandora. Université Denis-Diderot Paris VII. Investigadora-Colaboradora do Instituto de Psicologia Cognitiva da Universidade de Coimbra.


Resumo: Partindo da premissa que o corpo é um importante lócus de investimento e de formações identitárias nos dias atuais, neste artigo buscamos destacar o papel da aparência como um capital valioso, também no universo de varejista. Para tal, ancoramos a nossa discussão no caráter determinante que a aparência assume como critério de seleção para candidatas à diversas vagas no comércio relacionado à moda. Buscou-se, igualmente, analisar a percepção das mesmas diante do exaustivo processo de seleção e recrutamento.
Palavras-chave: Beleza. Corpo. Seleção. Varejo.

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THE RETAIL’S BARBIES: A STUDY ABOUT THE ESTHETICS STANDARDS OF SELECTION PROCEDURE ON CARIOCA FASHION TRADE

Abstract: Starting from the assumption that the body is an important locus of investment and identity formation in present days, with this article we seek to emphasize the role of appearance, as a valuable capital also in the retail business universe. For this, we have harbored our discussion in the determining feature that appearance takes as a selection criterion for candidates for several positions inthe fashion-related business. We also sought to analyze their perception in face of the exhausting recruiting and selection process.
Keywords: Beauty. Body. Recruitment. Retail.

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INTRODUÇÃO

 Da filosofia, perpassando pelas artes e adentrando nos domínios da ciência, a beleza é refletida e admirada há séculos, sendo apontada como composição de partes iguais de carne e imaginação (ETCOFF, 1999). Diversas são as ponderações sobre a beleza, sendo a mesma compreendida de maneiras variadas: beleza enquanto sistema monetário de legitimação da dominação masculina; beleza enquanto manifestação do sagrado e do profano, bem como beleza enquanto estratégia de adaptação biológica (BATTEN, 1995) etc.

No campo científico, as perspectivas ora complementam-se, ora divergem, devido à experiência subjetiva que faz interlocução com fatores extrínsecos e intrínsecos que influenciam na percepção de beleza. Enquanto Andrieu (2006) define-a como uma qualidade advinda de um indivíduo ou sociedade para com um corpo que agrade a um grupo, que passa a reproduzi-lo, a perspectiva evolucionista compreende-a como um propósito reprodutivo: o belo como recurso para atrair parceiros para a cópula e reprodução (BATTEN, 1995). Para Sones (2004), o conceito de beleza relaciona à forma que a atração influencia o modo como as pessoas percebem e pensam sobre umas as outras. A beleza tende a fazer com que as pessoas sintam-se interessadas mutuamente, levando-as a serem consideradas mais sociáveis e inteligentes, associando-as ao moralmente bom, influência social e sucesso em relações amorosas (DION, BERSHEID, & WALSTER, 1972).

Para a psicologia social, a beleza física é compreendida como um dos atributos pessoais que influenciam na gênese das relações interpessoais, mais especificamente na atração interpessoal (JESUS, 2011; RODRIGUES, 1973), tendo em vista que o corpo seria um objeto que contém a beleza, requerendo, em diversos casos, às técnicas de embelezamento para a sua ampliação (ALFERES, 2004). Vala e Monteiro (2006) apontam que a consciência da própria beleza física e do outro interfere diretamente nas interações sociais, influenciando na forma como se lida com o corpo enquanto corpo individual (físico e psicológico) e corpo social (sendo este a essência da imagem corporal, ditado pela sociedade).

Segundo Jodelet, Ohana, Bessis-Moñino e Dannenmuller (1982) a imagem externa do corpo apresenta-se como um mediador do espaço social no qual o indivíduo está inserido. Também atua como mediador do conhecimento do outro e de si, no qual se estabelece através das relações sociais (JODELET, 1994).  Atualmente, a beleza pode ser associada a uma tríade composta por saúde, juventude e corpo definido, sendo tais fenômenos associados mutuamente. Hoje, a mídia difunde que a beleza está disponível a quem desejar, podendo ser comprada e inventada. A indústria publicitária e cosmética, visando sustentar tais perspectivas, apresenta padrões de beleza a serem seguidos: a imagem de modelos. Tais indivíduos são apresentados como símbolos da estética, sendo sua beleza a forma mais segura de se alcançar o sucesso e a felicidade, mediante a imagem da perfeição física, associada à juventude e saúde (VILHENA, MEDEIROS & NOVAES, 2005).

Esta pesquisa faz parte de um projeto realizado ao longo do mestrado de uma das autoras, cuja finalidade foi avaliar a percepção das candidatas frente ao macro-processo de recrutamento e seleção das empresas de moda varejistas. O procedimento envolvia quatro etapas: (1) divulgação da vaga, (2) recebimento e triagem dos currículos, (3) seleção e (4) resultado final. Analisamos de que maneira as moças que concorriam às oportunidades do varejo em geral, tais como supervisoras, gerentes, vendedoras, caixas e estoquistas, assimilavam a importância da imagem e do corpóreo enquanto inexoráveis para a sua aprovação ou reprovação frente à vaga disponível (MADUREIRA, 2013).

O presente artigo objetiva analisar de que maneira a estėtica entra em cena como uma exigência impiedosa nos processos de seleção e de recrutamento das empresas de varejo que trabalham diretamente com moda. Isto é, buscamos compreender a forma com a qual as lojas selecionam pessoas do sexo feminino para ocuparem os cargos de estoquista, vendedora, caixa ou gerente em suas empresas.

Visitando os bastidores das bonecas

Entendemos que o segmento do varejo fashion é assustadoramente severo e radical no tocante à beleza, o que faz com que os processos de recrutamento e seleção nesta área adquiram contornos ainda mais tirânicos e cruéis do que os métodos seletivos de organizações que não trabalham diretamente com o mundo da moda. Não queremos dizer, com isso, que o capital erótico (HAKIM, 2011), que envolve, além da beleza física, virtudes como charme, desenvoltura, elegância e sensualidade, não seja exigido como critério, ainda que implícito, nos processos de seleção em ambientes empresariais. Com cada vez mais freqüência, notamos que indivíduos que destoam do padrão exigido, seja por apresentarem um peso acima do descrito enquanto saudável, seja por terem uma idade considerada avançada, são imediatamente excluídas das etapas de recrutamento. Vistos como extremamente honerosos, em função dos inúmeros problemas associados à saúde, são colocados porta à fora das tradicionais dinâmicas de grupos, entrevistas coletivas e testes psicológicos. Para melhor compreensão da estrutura de funcionamento do modelo seletivo, destacamos quatro dos principais pilares do macro-processo: (1) recebimento e a triagem dos currículos; (2) convocação para o processo de seleção; (3) seleção em si; (4) resultado final da seleção.

A grande maioria dos currículos é enviada online para o RH e contém imagens de rosto e de corpo das candidatas. Nesta etapa, as fotos são importantes porque funcionam como requisito pré-seletivo. Se o corpo, o cabelo ou o rosto não estiverem dentro dos padrões físicos da empresa, o currículo é, imediatamente, deixado de lado (muitas vezes com destino direto à lata de lixo) e a candidata, descartada como um objeto que não tem qualidades suficientes para ser adquirido. As ditas qualidades englobam o formato do rosto, o tipo do cabelo e a forma corpórea. Sublinhamos que o número do manequim da candidata prescinde as suas características psicológicas, bem como as suas competências técnicas. Inferimos, com isso, que, do ponto de vista comercial do comércio de varejo fashion, o envelope corporal agrega muito mais valor às lojas do que a capacidade intelectual das moças. Constatamos que, já na fase inicial, a questão da beleza como inexorável coloca-se muito em evidência, de modo a autorizar ou a proibir a entrada da candidata já no processo seletivo.

Apresentar um modelo corpóreo que destoe dos padrões vigentes significa ter o passaporte negado para este segmento. Mais do que nunca, é determinante “estar sempre em dia com o rosto, o cabelo e o corpo, como se todos os dias você acordasse para ser linda e maravilhosa”. Observamos, de modo muito intenso, que as candidatas não devem, ou melhor, não podem, demonstrar o que é nomeado como defeitos físicos. Cabelo desgrenhado/descontrolado, unha por fazer, gordura em evidência, rosto ausente de maquilagem etc. são avaliados enquanto imperfeitos e defeituosos. Isso quer dizer que, candidatas que apresentem alguma das características mencionadas anteriormente ao longo das fases seletivas adquirem a característica de ser menos mulher ou menos feminina. Com isso, ela não é associada à feminilidade, o que impossibilita representar a marca referida. Sua beleza não condiz com o padrão de beleza feminina valorizado no âmbito social. Para o mundo fashion varejista, este é o verdadeiro significado de estar em dia consigo mesma, que assinalamos acima.

A finalidade deste artigo é analisar de que forma as mulheres que trabalham neste segmento - gerentes, vendedoras, caixas e estoquistas - percebem o quanto a imagem adquire contornos fundamentais, sobrepujando as suas características intelectuais ou o seus backgrounds. Sublinhamos este ponto a partir da declaração de uma delas: “eu tenho medo desse olhar que me olha e que só vê as minhas medidas (…) eu não quero ser só um rostinho bonito, eu sou muito mais do que isso”. Retomaremos este tema ao longo do artigo a partir dos diversos depoimentos colhidos no decorrer da pesquisa para, desse modo, explicitar a relação que se criou entre o corpo do sujeito feminino e o universo de trabalho varejista.

O lugar da mulher na história da civilização

Para que possamos investigar o lugar destinado à estética corporal da mulher neste segmento específico, o mundo fashion do varejo, faremos um percurso histórico no tocante ao espaço ocupado pelo feminino no âmbito social que, como veremos, sempre esteve associado à beleza.

Para o filósofo italiano Umberto Eco (2004), belo sempre foi um adjetivo usado para indicar aquilo que agrada aos olhos do espectador. Empregado para designar expressões similares ao gracioso, bonito, sublime, justo ou soberbo, nota-se o estreito laço entre belo e bom. Em geral, o que é belo é contemplado como bom e gracioso, enquanto feio é visto como defeituoso e mau. Essa afirmação também nos auxilia na compreensão do fenômeno social de moralização da beleza, tal qual cunhado por Baudrillard (1981 [1970]), naquilo que identificou como sendo uma transformação ética do contemporâneo: de direito, a beleza tornou-se um dever, tendo como resultante o fato de qualquer desvio estético dos ditames ser decodificado como transgressão moral, passível de duras críticas, preconceito e exclusão socialmente validada. Na medida em que a noção de beleza atravessa diferentes culturas, séculos e povos, a concepção de feminino jamais foi única ou universal. Longe de ser imutável ou absoluta, a beleza sempre assumiu diferentes tipos e facetas de acordo com o período histórico na qual é inserida e abordada.

Para a mitologia grega: “quem é belo é caro, quem não é belo, não é caro”(ECO, 2004, p.37). O Oráculo de Delfos, por exemplo, define “o mais justo é o mais belo”(p.37). Platão, por sua vez, entende que a arte, a poesia e a beleza são capazes de encher de alegria a mente e o olhar. Para o poeta lírico Teógnis de Megna, a palavra kalón, traduzida para o português como o termo belo, é aquilo que agrada, levando à admiração e, principalmente, atraindo o olhar. As palavras “aquilo que é belo é amado; e o que não é belo, não é amado” (p.39) saíam dos lindos lábios das musas gregas.

Na Idade Média, o poder político, econômico e social se concentrava exclusivamente nas mãos da Monarquia e da Igreja Católica. Essa união conduziu a uma exagerada rigidez no que tange ao corpóreo, visto o rigor e a severidade instituídos pela religião, excessivamente impassível e inflexível em seus valores morais. O resultado é uma nova edificação da concepção de corpo. O catolicismo institui a fé e a devoção ao corpo de Cristo, convertidos no pão e na hóstia, capazes de salvar corpos impuros. A abordagem religiosa do corpo entende que este é pecador por natureza e, por isso, deve ser depreciado. Não é à toa que era visto como abominável veste da alma (CORBIN, COURTINE & VIGARELLO, 2008 [2005], p. 20). O medo do corpo pecar e, sobretudo, o medo do corpo feminino (principal fonte do pecado) era predominante, visto que o pecador é sinônimo de desordem e aviltamento, pois não consegue controlar suas paixões e opõe-se ao harmonioso. Em contrapartida, o corpo sábio é isento de todo o desejo sexual e, assim, habita o universo paradisíaco.

O corpo não passa de uma carcaça humana, um oceano de miséria e uma cloaca que resulta da condição de pecador: corpo imundo receptor de vícios. Visto como um saco de imundícies, o corpo jamais pode desejar as doçuras e os prazeres da vida. Domar a própria carne implica infringir-se ferozmente disciplina, imaginando e aplicando-lhe coações das mais dolorosas. Dormir no chão duro, vestir roupas com tecido grosseiro preenchidos internamente com cilícios que corroem a carne e aplicar a si mesmo chibatadas e coites, refletem o verdadeiro penitente que pretende superar os desvios de seu corpo. A doença conduz o doente penitente a aproveitar-se de sua debilitação da carne para fortificar o espírito, já que o que enfraquece o corpo, fortalece a alma. Enfim, o corpo religioso é o corpo desprezado (PELLEGRIN, 2008 [2005]).

Na bruxaria, por exemplo, o satanás dominava o corpo feminino com o objetivo de se apropriar da alma dos homens. A Santa Inquisição foi responsável por enforcar e queimar incontáveis mulheres acusadas de bruxaria durante o período da Idade Média. Se o corpo da mulher era vinculado ao sexo, cuja finalidade era tentar o homem, era porque o demônio dirigiu seu olhar para o corpo e para a sexualidade feminina, marcando-a com o estigma do mal e apontando-a como a única culpada pelo pecado original. Ao longo da Idade Média, a beleza feminina é vista como uma grande tentação do diabo e uma armadilha do pecado. Assim, a mulher bela é percebida como um encobrimento enganoso de uma essência impura e vil. Dizia-se que nenhuma mulher era bela impunemente, havendo sempre uma razão leviana para isso. Nas vertentes mais fundamentalistas, a pele feminina, por exemplo, ocultava um interior viscoso, frio e asqueroso. A mulher bela era vista como uma arma mortífera contra o homem. No imaginário cristão, apenas a Virgem Maria não recebia essa representação negativa, tida como a única mulher bela, pura e inocente na história da humanidade (BULFINCH, 2006).

Desde sempre, à mulher foi destinado o lugar das trevas e da noite, enquanto ao homem coube o espaço da luz e do dia. O lado nobre, sagrado e precioso está localizado no sexo masculino, enquanto o profano, o fraco e o passivo do lado feminino (LE BRETON, 2009 [1953]). Constatamos o quanto o corpo, enquanto símbolo da sociedade, reproduz uma escala de poderes e de lugares. A estrutura social é metaforizada pelo corpóreo, pois ao órgão e à função corporal são atribuídas distintas representações e valores.

O francês Perrot (1984) cunha o conceito de ortopedia mental para afirmar que, nos dias atuais, as mulheres vivem uma ditadura estética muito mais severa do que todas vivenciadas até então. O autor indica os diversos procedimentos essenciais para a produção e a manutenção do aspecto físico da mulher. Nada mais cruel do que lutar com um inimigo implacável e inexorável: o tempo. Tentando manter-se sempre jovens e belas, elas consomem compulsivamente todo o tipo de produto que promete retardar o envelhecimento e manter a sua beleza intacta. Isso faz com que se comportem de maneira frenética e enlouquecida na busca insaciável pela manutenção de sua beleza. Elas lutam contra o limite de seus próprios corpos e perdem-se no espelho à procura de si mesmas. Se antes eram os espartilhos que as aprisionavam, agora é o seu próprio envelope corpóreo, já que estão presas na justeza de suas próprias medidas.

Nas sociedades ocidentais do início do século XX, a obediência às regras da moralidade cristã era bastante rígida. Aqui, o embelezamento denotava uma moral verdadeiramente duvidosa, na medida em que colocava em risco a dignidade e a honra das ‘moças de boa família’. A feminilidade era, até então, associada ao aparelho reprodutor feminino, segundo o ponto de vista médico. As mulheres, portanto, deveriam embelezar-se apenas com roupas e acessórios, tais como jóias, chapéus e luvas. Na moralidade cristã, havia uma convicção de que a verdadeira beleza era fornecida única e exclusivamente por Deus. De fato, até os anos 1950, a aparência feminina ideal deveria revelar, sobretudo, uma alma pura e livre de máculas ou de sujeiras. Sendo assim, era preciso denotar um corpo compatível, limpo, belo e fecundo. Sendo decorrência de uma obra puramente divina, a beleza física era percebida como um dom e, portanto, suas razões permaneciam envoltas por mitos e gestos celestiais. Como bem aponta Sant’Anna (2005), “a beleza é um ‘presente dos céus’, enquanto que sua falta é o resultado de uma arbitrariedade celeste” (p.125).

Em uma época na qual a Natureza era escrita como um substantivo próprio havia um enorme risco de realizar qualquer tipo de intervenção no próprio corpo em nome de um objetivo pessoal, uma vez que a obra natural era prodigiosa. Sob a luz da moralidade cristã, revogar linhas, cores ou volumes corporais, como definidos originalmente pela Natureza, seria cometer um pecado. Manipular o próprio corpo em nome dos ideais de beleza não era um direito legítimo das pessoas, especialmente das mulheres. Agir desta forma seria ir de encontro às expectativas vigentes no tocante às mulheres de boa família. Maquiar o rosto, algo tão comum nos dias de hoje, era visto como um artifício para imitar a Natureza, uma arte de dissimular, pois sua substituição era considerada irrealizável.

O que a publicidade tem a ver com a construção da identidade feminina?

A partir da década de 1950, as revistas ocidentais começaram a reproduzir imagens de mulheres-mitos. Nas páginas impressas via-se um verdadeiro desfile de ideal de beleza feminina, representado nas musas de cinema e nas misses, nas vedetes de teatro e nas rainhas de rádio. Pela primeira vez na história observavam-se explicitamente mulheres belas aconselhando didaticamente outras mulheres a embelezarem-se. Técnicas eram reveladas abertamente: “como é bom, fácil e importante se fazer bela, dia após dia” (SANT’ANNA, 2005, p.128). As receitas das atrizes hollywoodianas enalteciam a beleza, reforçando um caminho sem fim em busca da perfeição. Era o início de uma época aonde não valia mais a pena sofrer por falta de beleza. Produtos estéticos já não eram mais vendidos como remédios. A publicidade passou a exercer um poder até então impensável, influenciando no jeito de pensar da mulher e estimulando-a não somente a ser cada vez mais bela, como também a estar feliz e satisfeita com ela mesma o tempo todo. Esta nova beleza é ausente de tristeza ou de deformidades e, principalmente, sem passado (ou sem marcas do tempo).

A questão do embelezamento feminino atravessa uma transformação radical nos anos 1950, com a difusão da ideia de que a beleza é um direito irrevogável de toda mulher. O cuidado diário com a pele, o corpo, o cabelo, as unhas e as partes íntimas passa a ser não apenas naturalizado, como estimulado pela publicidade. Tudo é válido para manter o bem-estar e a aparência bela. Os segredos de beleza já não existem mais, pois as informações são disseminadas abertamente para quem quiser seguir. Com efeito, uma nova mentalidade apresenta-se: só é feia quem quer. A partir deste momento, ser bela depende apenas do aprendizado de técnicas específicas que, segundo a publicidade, são abertas a todas as mulheres.

Ser e estar bela agora depende unicamente da mulher que, com suas habilidades, pode, ou melhor, deve metamorfosear-se. Tal ideia é reforçada pelo discurso de uma das nossas entrevistadas: "toda e qualquer imperfeição tem que ser tapada com a maquiagem, porque ela, seja vendedora, caixa ou gerente, tem que estar perfeita e a maquiagem ajuda a esconder o que não deve aparecer". Isso mostra que conviver com um defeito virou uma espécie de desleixo, como se a mulher fosse conivente com a postura de descuido ou abandono de si própria. Consequentemente, a correção do modelo feio, que jamais deve ser seguido, é indicada e legitimada socialmente. A sua imagem serve como um contraexemplo, como aquilo que se é antes do produto anunciado, visto ser o resultado da degenerescência da raça e de uma vida viciosa e doente (op. cit., p.128).

Denise Sant’Anna, historiadora da PUC-SP, trabalha com a noção de corpo como uma (re)construção infinita. A autora evoca a ideia de que, nos dias atuais, há um radicalismo das metamorfoses corporais, já que este é alvo de inúmeros testes e experimentações. Exposto das formas mais diversas, o corpo é múltipla e intensamente olhado e, com isso, extremamente monitorado pelo outro (SANT’ANNA, 2001). Esta referência da alteridade funciona de maneira a regular o seu corpo, de modo que possa aferir julgamentos acerca de seu formato e tipo. Realiza-se, assim, uma verdadeira classificação deste corpo. Na trama social carioca contemporânea, se o corpo é malhado e tonificado, por exemplo, está incluído dentro da categoria daqueles que cuidam de sua beleza, sinônimo de saúde.

Em outras palavras, o imaginário social entende que somente os sujeitos que cuidam de sua estética corporal, prezam por seu bem-estar e por sua saúde. Se, por exemplo, o corpo estiver acima do peso (por menor que seja a diferença em relação aos padrões vigentes) ou com uma cor lânguida que não se ajuste ao bronzeado dos frequentadores da praia carioca, é, então, visto como um mal cuidado, o que é próprio de um sujeito desleixado (NOVAES, 2006).

O contemporâneo dá o direito e estimula a exibição, encontrando nas novas tecnologias de comunicação o espaço ideal para sua propagação. Se neste novo mundo, interconectado e interativo, onde se é possível permanecer online, on time, full time e compartilhar instantaneamente qualquer coisa que se desejar – fotos, vídeos, ideias, opiniões – por que o corpo teria um tratamento diferente?

Segundo Sant’Anna (2001), na contemporaneidade, “a vontade de ser mulher livre rima com o dever de ser fotogênica para os outros e para si mesma, em todas as circunstâncias(p.66). A grande maioria das revistas de beleza em circulação transmite às suas leitoras a necessidade radical de se manterem belas em qualquer idade e em todas as horas do dia: “ser bela aqui é ser bela da cabeça aos pés” (p.66). O corpo, sujeito a essa demanda tirânica, precisa responder à altura se quiser ser avaliado positivamente pelos olhares sociais. A procura pela beleza e pelo bem-estar é ilimitada, assim como a leitura do corpo, contínua e inesgotável. Ocupar-se com a beleza física não é mais, via de regra, um tabu, o uso de cosméticos não indica necessariamente um caráter duvidoso, a cirurgia plástica livrou-se da ameaça de ser considerada um pecado ou um desrespeito à obra divina (p.68).

Principal marca identitária dos sujeitos contemporâneos, o corpo é, constantemente, exposto aos holofotes midiáticos, submetendo-se, dessa forma, às intermináveis leituras e interpretações. A publicidade exacerba o imperativo moral de ser fotogênico, como se fosse uma espécie de dever como cidadão a ser seguido e transmitido às gerações seguintes. Predomina, ainda, uma ideia na qual os corpos são libertos, na medida em que, agora, podem ser moldados, modificados e manipulados esteticamente. Eles podem ser esticados e comprimidos. Tirando-se um pouco daqui e colocando-se um pouco ali, aproxima-o, cada vez mais, do que é ditado como perfeito.

Maravilhosa liberdade instigada pelos meios de comunicação, que oferecem incontáveis produtos e tratamentos estéticos, cuja promessa é aperfeiçoar o corpo, removendo especialmente as cruéis marcas do tempo. Vive-se uma corrida intensa em busca da reaquisição contínua da juventude, que jamais deve ser perdida, custe o que custar (NOVAES, 2006). Não importa o preço, a mulher deve manter-se sempre bem cuidada, isto é, o mais jovem possível. Para Sant’Anna (2001), “a corrida rumo à juventude é hoje uma maratona que alcança jovens e idosos de diversas classes sociais, embora não consigam ver o pódio, já que se trata de uma corrida infinita” (p.70).

Para a historiadora Mary Del Priore (1995), uma sociedade estrutura-se sobre um sistema de representações e de símbolos convencionados globalmente e unidos por algum tipo de correspondência, calcados numa lógica interna de funcionamento. O corpo é um espaço constitutivo de laços sociais. Suas práticas, gestos e atos são elementos essenciais de uma cultura. Retratam valores e símbolos específicos de uma civilização e organizam todo um modo de ser de uma vida. Além disso, o corpo é construído e desconstruído, num complexo jogo de equivalências, correspondências, nivelamentos e transbordamentos, por meio de palavras e signos. Há uma semiologia do código corporal que atravessa cada época, correspondendo a um ideal estético específico: formas, cheiro, cor etc.

O corpo nos dias de hoje recebe novas significações, transformando-se em objeto de desassossego e mal-estar e, por isso, de cuidados excessivos. Questões como ideais estéticos, juventude e felicidade estão intimamente ligadas a esse corpo, que recebe todo esse conjunto como um projeto de libertação. O corpo, “na sua aparente identidade, imobilidade e finitude, ele é processo, resultado de gestões sociais e culturais, fruto de representações e de imaginário, agente de movimento, fragmentos de desordem” (DEL PRIORE, 1995, p.22).

A falta de cuidados com relação à estética é analisada de forma distinta pela sociedade em função do gênero do sujeito. Se para os homens a ausência de esforço para manter-se belo está vinculada à falta de tempo e ao ritmo atribulado da vida profissional, para as mulheres, o não cultivo da beleza está associado à escassez de vaidade, qualitativo depreciativo da moral. Assim, a imagem masculina é valorizada quanto mais bens sociais e conquistas econômicas ele tiver. Já o feminino é valorizado a partir de seu embelezamento. De um lado, traços agressivos são sinônimos de virilidade, do outro, atenção e cuidado com o corpo são sinônimos de feminilidade. Com isso, a feiura é índice de menos ser para a mulher (NOVAES, 2006).

Desta maneira, a beleza feminina coloca-se na forma de trabalho sobre o corpo. Na sociedade contemporânea, para ser bem sucedido profissionalmente é fundamental ter um físico em forma, uma vez que a boa aparência equivale à boa gestão de todos os âmbitos da vida do sujeito. Não à toa, pessoas acima do peso são vistas como sujeitos desleixados com o próprio trabalho, além de produzirem pouco e lentamente, o que, certamente, não se coaduna com a lógica do discurso da eficiência e da performance tão em voga nos diais atuais. Tudo isso reforça o imaginário social de que ter um físico em forma é pré-condição para ser bem sucedida profissionalmente.

Assim sendo, a feiura assume um peso extraordinário na percepção feminina. Um pequeno descuido é considerado um enorme desleixo. Duras críticas emergem com relação à sua imagem caso a mulher apresente uma maquiagem fora do tom ou uma depilação sem fazer, tenha um pequeno descascado no esmalte ou uma raiz mal feita, ou use uma roupa fora da moda.

O filósofo francês Gilles Lipovetsky (2000) lembra que faz parte da história do corpo feminino ser educado para ser belo. A mulher deve se fazer feminina, bonita, delicada e sedutora, ou seja, ser o ‘belo sexo’. Ter responsabilidade sobre a beleza do seu corpo é uma característica do sujeito moderno. Há todo um ritual para tornar-se bonita. De maneira espetacularizada, observa-se uma supervalorização da beleza do corpo da mulher. O embelezamento a qualquer custo, fortemente veiculado na mídia e sustentado por todo um mercado de produtos e serviços estéticos (reforçado pelos mercados de cosméticos, produtos farmacêuticos que auxiliam no emagrecimento, academias de ginástica e cirurgias plásticas), permite que todas as pessoas possam modificar sua aparência.

Através do olhar das Barbies

Observamos que os quesitos juventude e beleza funcionam como exigências inexoráveis àquelas mulheres que almejam trabalhar no comércio de moda varejista. A feiura é sempre comparada à beleza das candidatas para que, no fim, apenas as que se aproximam do ideal estético adotado pela loja tenham a permissão de fazer parte do time de funcionários. Há um perfil a ser encontrado e quem não se encaixa no modelo imposto está fora do jogo. Abaixo listamos os pontos principais que são avaliados na seleção deste segmento.

O manequim das candidatas, ao lado do cabelo e do tom da pele, é minuciosamente analisado pelas analistas de seleção. A justificativa alegada é frequentemente de ordem prática: é preciso saber se as roupas produzidas pela marca poderão vestir esses corpos, ou melhor, se os corpos vão caber nas roupas. Não são as roupas que deveriam cair bem nos corpos? Seguindo esta linha de raciocínio, indagamos sobre os tamanhos disponibilizados às clientes de cada estabelecimento. Obtivemos a resposta de que a questão do manequim é essencial, uma vez que não há distinção entre o uniforme que elas usam e a roupa que disponibilizam para as clientes. As peças são as mesmas. As vendedoras vestem a roupa da vitrine, sendo assim, a encarnação viva da vitrine da marca.

Por isso, os tamanhos das peças vestidas pelas vendedoras devem ser os mesmos daquelas comercializados na loja. A maior parte das mulheres respondeu que dificilmente recebem manequins maiores do que o número 42, que corresponde ao M em alguns lugares e ao G em outros. Disso, inferimos que a quantidade de mercadorias destinadas a estabelecimentos cuja numeração é maior (42 em diante) é bastante inferior se comparada ao abastecimento das numerações menores (40 para baixo). Para as moças, o ideal é vestir 36. Com isso, percebemos que a mulher que veste do número 44 em diante é classificada como gorda.

É interessante observar o biótipo da clássica mulher brasileira, cujo corpo em geral tem a característica de ser avantajado em termos de busto, cintura e quadril. A partir de medidas que abarquem corpos volumosos é perfeitamente natural a diponibilização de indumentárias cuja etiqueta é superior da que relaciona-se ao padrão-Barbie de ser, excessivamente estimulado pelas ações publicitárias. Nas palavras de uma das vendedoras

“eles não definem, tipo, ‘oh, gente, aqui é loja de gente magra’, não definem, de jeito nenhum. Mas eles também não facilitam pras gordinhas. E olha que vão muitas gordinhas lá na loja e saem todas insatisfeitas, porque não tem o que elas querem e é difícil pra elas encontrarem. Elas mesmas falam que conseguir roupa diferente pra elas é quase impossível”.

Além da maior quantidade de mercadorias destinadas ao corpóreo esguio, a valorização do corpo fino fica muito em evidência em virtude dos tamanhos vestidos pelas vendedoras. Todas, sem exceção, vestem entre 36 e 40, ou estão fora do time. Mais uma vez, observamos que os padrões estéticos defendidos pelas marcas de varejo são incompatíveis com a genética da carioca mediana. A seguinte entrevistada reforça ainda mais essa ideia:

“Acho que com relação ao corpo, tem que ser uma menina relativamente magra, porque eu acho que eles querem mostrar como a roupa fica no corpo ideal, que é um corpo magro. A referência deles é essa. Tanto que, quando chega numeração de roupa, o que mais chega é36, 38 e 40. Mais 36 e 38. 40, pra eles, já é um nível acima. E chega muito pouco tamanho grande e é o que mais acaba porque brasileira tem bunda, tem uma barriguinha”.

A quantidade restrita de tamanhos acima de 40 disponíveis nas lojas parece ser um recado para as consumidoras. Como diz esta vendedora, menos de 10% do quadro geral de funcionárias veste acima de 42. Consideramos que esse resultado não é sem sentido: um mercado muito rígido no que tange ao corpo que entra, que adquiri o visto permanente (e que só é permanente se as medidas são mantidas) e ao que deve sair de cena. Constatamos, também, que se a vendedora ingressar na loja com um corpo magro e adquirir contorno delgado ao longo do seu trabalho, ela corre um sério risco de ser demitida, como afirma a entrevistada a seguir: “Já tiveram outras gerentes que tiveram que desligar a vendedora e não falaram que era esse o motivo, claro, né, até por questões jurídicas e éticas. E desligaram porque elas engordaram”.

Acentuamos, ainda, que o tamanho informado na etiqueta das peças comercializadas é ligeiramente menor se comparado ao padrão universal de numeração. Isto nos leva a concluir que se os cortes das roupas são progressivamente reduzidos, manter-se magra significa ter que afinar cada vez mais o corpo. Neste sentido, o depoimento seguinte é revelador: “O P lá é tipo um PP. O M lá é um P. Eu, que visto P, lá normalmente eu só consigo usar M”. O tamanho reduzido, descrito no depoimento anterior, é ratificado pelo da vendedora seguinte:

“A loja X tem uma modelagem de calça bem complicada. Ela realmente não veste uma pessoa gordinha. A X tem umas coisas, assim, o tamanho 38 [na etiqueta], é menor do que o 38 mesmo. Então, mesmo que você tenha um corpo que vista 38, lá você veste um número a mais, o que deixa a pessoa [se sentindo], no mínimo, esquisita”.

Notamos, no entanto, que alguns lugares disponibilizam tamanhos diversificados. O curioso, porém, é que a roupa tem o objetivo de afinar o corpo da cliente, deixando-o com a aparência de mais magro e mais fino. Isso nos mostra o quanto o referencial ainda permanece sendo o do protótipo magro, ainda que os tamanhos comercializados sejam mais igualitários.

Além disso, pudemos constatar que tanto o formato do corpo quanto a numeração estão associados a faixas etárias específicas. Os tamanhos G e GG são vinculados às mulheres mais velhas, enquanto os P e PP são ligados ao universo jovem.

Frisamos, ainda, que a redução do número real da etiqueta faz com que as pessoas sintam-se desconfiadas e acima do peso. O sentimento de estranheza e de desconfiança com relação ao seu próprio corpóreo passa a rondar o seu psiquismo, fazendo com que entrem em um círculo de depreciação de seus próprios corpos.

O mais esquisito é que, embora as próprias vendedoras tenham plena consciência de que o tamanho da etiqueta não corresponde à numeração universal, esforçam-se o máximo para vestir o 38 que, na realidade, equivale ao 36, já que “o importante é entrar no jeans, porque caber no jeans traz felicidade e satisfação”.

Concluímos que o rosto, assim como a numeração da roupa, o tipo de cabelo e a cor da pele, é mais um requisito avaliado ao longo no processo de seleção deste nicho específico de mercado. As analistas de seleção procuram estudar se o tipo de pele é razoável e se é possível apagar marcas impróprias, de modo a valorizar sua pele e deixá-la mais bonita e apresentável, como apontam as próprias entrevistadas.

“ser uma menina relativamente bonita é importante quando está lá na entrevista. Não precisa ser ‘nossa, uma modelo’, mas uma menina bonita, que tenha uma pele OK. Se for uma pele ruim, que dê pra tapar com uma maquiagem, porque é o que eles falam, tipo, a gente é a cara da marca. Então, se você tiver desgrenhada na loja, isso vai testemunhar contra a marca. Então, uma pessoa que consiga se arrumar direitinho”.

Acrescentamos que a vigilância em torno da maquiagem, assim como do peso corporal ou do estado do cabelo, é significativa. Uma das entrevistadas, que já foi gerente de loja, explica de que modo cumpria sua função de agente regulatório da imagem de sua equipe:

“você tinha que olhar se as unhas estavam feitas, você tinha que ver como que estava a maquiagem. Era tudo de uma forma sutil, ‘ah, acho que você pode passar um pouquinho mais de blush, e esse cabelo, não tá muito legal, você foi pra praia hoje e tá meio ressecado, vamos prender num coque ou fazer uma trança, o que você acha?’. Era muito sedutor, ‘vamos te ajudar a fazer uma maquiagem pra você ficar bonita, porque eu sei que hoje você vai sair’”.

Como a própria gerente sublinha, o discurso era sedutor, fascinante e envolvente. A argumentação estimulava a funcionária a investir em sua autoprodução, de modo a se “sentir linda e maravilhosa todos os dias”. O discurso cativante era como feitiço, cuja finalidade era fazer com que as mulheres aprendessem a tornarem-se belas, o que conferiria a elas amor próprio, honra e, com isso, poder: “a gente aprende a se produzir como se fosse sair para se divertir e arrasar”. Além do rosto maquiado, a unha precisa estar frequentemente impecável. Algumas lojas, inclusive, disponibilizam um kit-unha, assim como um kit-maquiagem e um kit-cabelo, de modo que nenhuma funcionária se deixe descuidar:

“olha, aqui a gente nem tem como ficar feia, porque temos uma caixa lá no estoque com tudo o que a gente precisa, tipo esmalte, acetona, secador, creme e maquiagem; então não tem desculpa, se chegar feia ou desarrumada, é só se arrumar lá mesmo, o ruim é que isso pode levar um tempo, que é precioso pra venda”.

Outras empresas, ao invés de disponibilizar os kits salva-vidas, providenciam o vale-salão. Uma determinada quantia é concedida às funcionárias em épocas de lançamento de coleção para que seus corpos, cabelos e rostos fiquem adequados. Inferimos que essa é uma forma, ainda que muito sutil, já que sempre disfarçada por um discurso sedutor e fantasioso, de manter as mulheres dentro da malha de controle do ideal de beleza. O kits funcionam de modo a não deixar escapatória ao desleixo.

As gerentes, ainda que agentes reguladoras, são vigiadas, assim como as vendedoras e as caixas. Todas estão sob o olhar que disciplina e formata a sua beleza, que precisa estar necessariamente em dia. A declaração seguinte ratifica o nosso pensamento: "a cada 3 meses, quando troca a coleção, a gente precisa estar impecável por aqui, o lema é o seguinte: você precisa tá sempre muito bonita, já que eles querem ressaltar sempre a sua beleza”.

Cada funcionária, independente do cargo que ocupa ou se está na linha de frente ou por trás, nos bastidores, é vista apenas como um simples corpo que desfila pelo salão de vendas, recheado de espelhos, cuja função é aumentar ainda mais o domínio da sua própria beleza. Atentamos para o fato de que, ao adquirirem gordura, são automaticamente descartadas sem nem aviso prévio. Notamos, ainda, que a justificativa que se dá é constantemente de ordem produtiva ao invés do real motivo: ganho de gordura. Consideramos esse tipo de atitude como uma verdadeira falta de consideração e de respeito com o sujeito que trabalha para sobreviver em uma sociedade capitalista.

Vejamos de que forma o seguinte depoimento ratifica o que foi dito anteriormente:

"a gente sabe que não pode engordar de jeito nenhum, o ideal é que vc chegue com 36/38 e continue com essas medidas porque senão vc vai ser mandada embora; todo mundo já sabe disso; não é algo dito explicitamente pela gerente, mas a gente sente pela maneira como ela conduz a demissão; e a desculpa é sempre porque a venda tá baixa, eles nem tem coragem de dizer que é porque a pessoa engordou, porque eles sabem que isso é errado e que pode pegar mal pro lado deles né”.

Finalizamos reafirmando o atravessamento político que marca os corpos, sobretudo o feminino. Mesmo sabendo  que todos os corpos são construções sociais, parece-nos que na contemporaneidade os mesmos encontram-se cada vez mais atrelados à sua dimensão estética, vinculada aos ideais de uma sociedade de consumo que prega a juventude como um valor e não como uma etapa da vida. Indagamos-nos, assim, como se dá a construção da subjetividade feminina nos contextos onde, além de excluídas do "mercado da sedução" veem-se, tantas vezes, privadas também de suas oportunidades de trabalho.

Faz-se desnecessário enfatizar o quanto esse cenário puramente imagético, tirânico e injusto influencia no sentimento de autoestima. Se é ele quem dita as regras de feminilidade, é ele quem vai se responsabilizar por fortalecer e assegurar o contorno egóico do sujeito. Desta forma, o corpo, anteriormente a mais primitiva morada do sujeito, transforma-se em sua mais cruel prisão.

 


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Recebido: 07/01/2015
Aceito: 12/03/2015
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