SOBRE A POTÊNCIA DOS MELANCÓLICOS
Eduardo Rodrigues Peyon
Mestre em Psicologia pela PUC-Rio. Doutorando em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela Universidade Veiga de Almeida, UVA. Psicólogo da Petrobras. E-mail: dudapeyon@hotmail.com
Resumo: O objetivo deste artigo é articular um certo saber que os indivíduos melancólicos possuem acerca da condição humana com a noção nietzschiana de último homem, costurando essas ideias a partir de uma interpretação do filme Melancolia de Lars von Trier. A arte emerge aqui, no caso o cinema, como possibilidade de relançar os temas excluídos pelo discurso científico o qual Nietzsche criticou de forma enfática.
Palavras-chave: Último homem. Melancolia. Arte. Cinema.
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ON THE POTENCY OF MELANCHOLICS
Abstract: The purposeof this articleis to articulatea certain wisdom thatmelancholic subjects have on human’ condition with theNietzschean’snotion of the last man, weaving theseideasfrom aninterpretation of the filmMelancholiaby LarsvonTrier. Artemergeshere, in this casecinema,as a possibility torelaunchthe topicsexcludedbyscientific discourse, which Nietzschecriticizedemphatically.
Keywords: Last man. Melancholy. Art. Cinema.
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Sobre a Potência dos Melancólicos
O objetivo deste texto é discutir e, se possível, reverberar caleidoscopicamente uma entrevista relação entre o deslocamento empreendido por Nietzsche, no que diz respeito à centralidade do ser humano no universo, e o filme Melancolia (Lars von Trier, 2011) o qual nos remete diretamente à nossa pequenez e à absoluta imprevisibilidade dos acontecimentos da vida, do nosso existir na Terra.
Como Copérnico deslocou a Terra do centro do universo e Darwin nos retirou o alento de uma origem divina, Nietzsche aponta com toda sua potência poética não apenas nossa insignificância, mas a origem da nossa vontade de verdade como uma via para o engodo, como uma astúcia covarde de um ser que não suporta as condições de seu existir, e, que forjando formas de construir a tal suposta verdade, nega, vela, limita sua relação com as coisas, com o ser no mundo, com a sua mais originária e mais vigorosa potência. Ele nos diz logo no início de Sobre a Verdade e a Mentira:
Em algum remoto recanto do universo, que se desagua fulgurantemente em inumeráveis sistemas solares, havia uma vez um astro, no qual animais astuciosos inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais audacioso e hipócrita da “história universal”: mas, no fim das contas, foi apenas um minuto. Após alguns respiros da natureza, o astro congelou-se, e os astuciosos animais tiveram que morrer. Alguém poderia, desse modo, inventar uma fábula e ainda assim não teria ilustrado suficientemente bem quão lastimável, quão sombrio e efêmero, quão sem rumo e sem motivo se destaca o intelecto humano no interior da natureza; houve eternidades em que ele não estava presente; quando ele tiver passado mais uma vez, nada terá ocorrido. Pois, para aquele intelecto, não há nenhuma missão ulterior que conduzisse para além da vida humana. Ele é, ao contrário, humano, sendo que apenas seu possuidor e gerador o tomam de maneira tão patética, como se os eixos do mundo girassem nele. (Nietzsche, 2008 [1873], p.25-6).
No Prefácio escrito a posteriori para O Nascimento da Tragédia, obra na qual um dos intentos é mostrar que, com a ascensão do racionalismo socrático ocorre uma ruptura com uma forma de estar no mundo, de existir, que era muito mais íntegra e mais próxima da verdade da vida: a forma grega sintetizada no encontro trágico entre o apolíneo e o dionisíaco; e que os caminhos da religião judaico-cristã e da ciência moderna cujo nascedouro foi a referida ruptura socrática , seriam, cada qual ao seu modo, trilhas de engodos, de apelações, de uma grande construção discursiva para amenizar a verdade do existir em toda sua intensidade, potência e eventual horror. Nesse sentido, Nietzsche pergunta: “É a cientificidade talvez apenas um temor e uma escapatória ante o pessimismo? Uma sútil legítima defesa contra – a verdade? E, moralmente falando, algo covardia e falsidade? E, amoralmente, uma astúcia? (Nietzsche, 1992 [1871], p.14).
Freud, cuja obra em seus momentos mais retumbantes ecoa uma ruptura com a Modernidade, especialmente quando desloca e descentra o sujeito cartesiano, inserindo no âmago do eu pensante forças e causas absolutamente desconhecidas e inconscientes, dando-nos uma pista muito interessante sobre a melancolia a qual tenta compreender a partir da situação do quadro de luto:
No luto verificamos que a inibição e a perda de interesse são plenamente explicadas pelo trabalho do luto no qual o eu é absorvido. Na melancolia, a perda desconhecida resultará num trabalho interno semelhante, e será, portanto, responsável pela inibição melancólica. A diferença consiste em que a inibição do melancólico nos parece enigmática porque não podemos ver o que o está absorvendo tão completamente (…) No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio eu. (Freud, 1974 [1915], p. 278).
Assim, Freud (1915) indica que no processo do luto existe uma perda (uma morte, uma separação, um adoecimento, uma demissão, etc) e esse fato leva um tempo para ser assimilado, simbolizado, digerido pela pessoa, por meio de um processo de retessitura simbólica, para que ela possa seguir em frente com a sua vida. Já na melancolia, a perda, que não é claramente perceptível, recai sobre o eu de forma enigmática, por meio de uma identificação com o objeto perdido causando uma falta de vontade, uma lamúria infame por meio da qual o eu dividido entre uma parte identificada com o objeto perdido é recriminada pela outra em função da raiva que a perda ocasionou. A autorecriminação do melancólico decorre, portanto, de uma identificação com o objeto perdido que acentua a divisão do sujeito. Nas suas colocações sobre a melancolia, porém, Freud afirma que “o melancólico dispõe de uma visão mais penetrante da verdade do que outras pessoas que não são melancólicas” (Freud, 1974 [1915], p. 278).
Essa hipótese freudiana é importante porque nos parece que cabe ao melancólico um saber sobre a vida que o homem moderno perdeu: um saber sobre nossa insignificância no universo, sobre nossa fragilidade e nossas fraquezas, e até sobre nossas vilanias em face da miséria humana. E se, ao longo da história, coube à melancolia ser compreendida muito mais como um estilo de ser do que como uma patologia, cada vez mais esse quadro tornou-se psicopatológico na modernidade, situando-se contemporaneamente mais próximo do que a nosologia psiquiátrica nomeia como transtorno bipolar.
O que o melancólico sabe? Como isso se relaciona com a crítica nietzschiana ao homem moderno, o último homem? E como isso se articula ao filme de Lars von Trier?
II
No Prólogo de Assim Falou Zaratustra, Nietzsche nos dá algumas indicações acerca do último homem. Ele afirma de início (Nietzsche, 2009, p.17) que falará “do que é mais desprezível: ou seja, do último homem”. Prossegue afirmando que o último homem é aquele que não sabe mais desprezar a si mesmo, é aquele que não sabe mais “dar luz a uma estrela dançante”, e insinua que esse homem adormeceu o caos originário por meio do qual brota a poesia. Afirma: “A terra se tornou pequena, então, e nela saltita o último homem, que tudo apequena. Sua espécie é inextinguível como o pulgão; o último homem é o que tem vida mais longa.” (Ibid, p. 18).
Além de ser o mais desprezível, semelhante a um inseto de corpo mole com uma vida longa, o último homem, conforme Nietzsche, inventou uma forma de felicidade e, como afirma em seguida, o último homem é bom e justo (cf Ibid, p. 204). Essa felicidade e essa bondade, porém, são cegas para as potências mais primordiais do ser humano, para o Real do existir, para a vontade de potência que nos anima. O último homem, com toda sua felicidade, nada sabe da vida. Toda verdade alcançada pela ciência do homem moderno revela-se um grande engodo, um grande desvio que afastou o homem daquilo que a Tragédia grega teria vislumbrado por meio da articulação entre a individuação apolínea e o transe unificador dionisíaco. A sensibilidade primordial do homem grego, e a elaboração trágica do existir por meio de uma síntese dionisíaca-apolínea, teriam se perdido com o nascimento da filosofia socrática sob o véu das verdades racionais, lógicas, e depois científicas. Assim, o percurso que culmina na modernidade, é um percurso adoecedor que serve aos medos humanos apenas, reduzindo a potência poética dos seres humanos e criando uma crosta antropocêntrica e racionalista que apenas fez do homem, esse último homem, um inseto narcisista dotado de uma couraça de verdades enganadoras.
III
Melancolia é um filme poético. Como toda poesia é rica em possibilidades interpretativas. Arriscamo-nos aqui a fazer uma rápida interpretação, mas antes apresentaremos um resumo das impressões gerais causadas pelo filme e pelo enredo.
O filme se inicia com uma cena poética e apocalíptica que culmina na colisão do planeta Melancolia com a Terra. A primeira imagem é da bela e exaurida Justine (vivida por Kirsten Dunst) que ao longo do filme revelar-se-á a personagem melancólica. O grande pano de fundo da trama é, portanto, a aproximação do planeta Melancolia, o qual trava uma dança, um ballet trágico de aproximação e afastamento com a Terra, como um vigoroso jogo de sedução, como um jogo de vida e morte. Sabe o ser humano avaliar esta dança entre o Melancolia e a Terra? Pode a ciência cartesiana e positivista compreender os mistérios do Universo? Encontrarão conforto no Deus cristão (ou em outro) os fiéis?
O filme começa: Justine, uma bela e bem sucedida mulher está se casando. A caríssima festa patrocinada pelo cunhado John, porém, revela-se um acontecimento patético, no sentido mais pleno da comoção emocional trágica. Ao seu redor estão um chefe que demanda trabalho em plena celebração, um marido que, fraco, faz sonhos e compra uma casa para eles sem consultá-la, um pai que parece viver embriagado, mas numa embriaguez torpe e leviana, uma mãe que é puro ressentimento e rancor, e uma irmã e um cunhado que são aparentemente as pessoas mais equilibradas e bem sucedidas: ele é rico e estudioso, ela é boa e justa.
A sequência de acontecimentos na festa de casamento, iniciada com um embate entre os pais da noiva e culminada na fala de John sobre o quanto aquela festa fora cara e como Justine deveria estar feliz por isso, são o estopim da crise depressiva dela. Em sua sensibilidade, ela já sentia algo estranho relacionado à aproximação do planeta Melancolia, como se soubesse algo que os cálculos complexos e os modernos telescópios do cunhado não podiam compreender. Justine sabia do horror, conhecia o trágico e sua depressão ressoa como uma recusa dessa vida dissimulada e cínica levada pelo casal John e Claire. John e Claire são últimos homens no sentido da realização da felicidade burguesa, da aceitação das verdades científicas, do predomínio da neurose hegeliana de acreditar-se apto a compreender e desvelar toda natureza, penetrando-a falicamente com os conceitos e experimentos.
Quando, porém, o otimista e presunçoso John, que a todo instante reafirmava que o Melancolia não se chocaria contra Terra – não sem fazer um estoque de víveres, just in case – percebe que o Real se manifestará com pleno vigor e que toda sua riqueza e conhecimento de nada lhe servem, é o primeiro a abandonar o navio. Suicida-se. Um pouco como Goebbels diante da derrota, mas de forma ainda mais covarde, sem matar a esposa e o filho, abandonando-os. John revela por meio de seu ato o quanto estava distante da verdade da vida, de sua mais profunda potência e de seu mais derradeiro horror. Inseto narcisista, achava-se proprietário do bem e do mal. Claire, como uma típica histérica, tenta negar (no sentido da Verneinung freudiana) até o último instante a verdade que ela em algum lugar já conhece – o não saber era na realidade um não querer saber... Chega um momento em que, não podendo mais negar o que está diante dos olhos, a insignificância do homem diante das forças do Universo, ela se desespera e tenta fugir em busca de abrigo. Não consegue, porém, encontrar esse bunker.
Nesse instante de vis à vis com o fim, é Justine, a melancólica, a desajustada, quem consegue fazer florescer a fantasia, quem se deixa atravessar pela potência poética. Diante do inevitável, Claire propõe que fiquem juntos na hora final, Justine, ela e seu filho. Propõe que estejam no terraço, bebendo vinho. Justine, irônica, quase mórbida, mas potente, afirma: que tal também uma música, a Nona de Beethoven! Claire diz que ficaria feliz e que seria bom se fosse assim, mas Justine diz que o plano da irmã é uma droga e se recusa. Diante do medo do sobrinho, contudo, Justine, a “Tia Invencível” inventa a caverna mágica e com essa poesia, esse recurso heroico, que evoca a força dos mitos e não a força do conhecimento tecnológico, os três enfrentam-no face a face com a verdade, com o real de nossa finitude, de nossa pequenez, mas também de nossa coragem e de nossa capacidade criativa.
IV
Se John e Claire representam o ser humano moderno, capturado por jogos imaginários, preso no incessante avanço tecnológico, crente na soberania do Eu racional, Eu que se pensa senhor não apenas da própria casa, mas da natureza transformada por ele em instrumento, Justine vive sem apelações, nega festejos vazios, mas ergue um mito para enfrentar seu existir finito. O melancólico é severo consigo e com o mundo, pois sabe algo sobre o horror, enfrenta de olhos abertos Gorgó, reconhece suas mesquinharias; enfim, sabe desprezar a si mesmo. Nos diz Freud:
Quando, em sua exacerbada autocrítica, ele [melancólico] se descreve como mesquinho, egoísta, desonesto, carente de independência, alguém cujo único objetivo tem sido ocultar as fraquezas de sua própria natureza, pode ser, até onde sabemos, que tenha chegado bem perto de se compreender a si mesmo; ficamos imaginando, tão somente, por que um homem precisa adoecer para ter acesso a uma verdade desse tipo. Com efeito, não pode haver dúvida de que todo aquele que sustenta e comunica a outros uma opinião de si mesmo como esta (opinião que Hamlet tinha a respeito tanto de si quanto de todo mundo), está doente (Freud, 1974 [1915], p. 278-9).
A passagem de Hamlet a que Freud se refere, indicada por ele em nota de rodapé é: “dê a cada homem o que merece, e quem escapará do açoite” (Ato II, Cena II). Nietzsche, porém, tem uma percepção bem diferente acerca de Hamlet:
(...) o homem dionisíaco se assemelha a Hamlet: ambos lançaram alguma vez um olhar verdadeiro à essência das coisas, ambos passaram a conhecer e a ambos enoja atuar; pois sua atuação não pode modificar em nada a eterna essência das coisas, e eles sentem como algo ridículo e humilhante que se lhes exija endireitar de novo o mundo que está desconjuntado. O conhecimento mata a atuação, para atuar é preciso estar velado pela ilusão. (Nietzsche, 1992 [1871], p. 56)
Nesse ponto, Freud e Nietzsche se afastam. Se o primeiro vê em Hamlet sintomas de um adoecimento melancólico, pois saber a verdade não deveria conduzir a um quadro que o psicanalista nomeia de adoecimento, para o segundo, Hamlet é alguém que, como a Justine de Melancolia, não suporta mais atuar, não aceita mais o jogo imaginário da vida feliz, do bom e do justo soberanos – seja qual for a Soberania! O ponto principal dessa análise é que, diante da verdade, o último homem não suporta o peso da existência, ele precisa encontrar novos engodos, poderíamos dizer outras maquiagens, tecnologias e espetáculos; por outro lado, Hamlet e Justine, apesar do enorme sofrimento, diante do desvelamento da absoluta falta de sentido da vida, são corajosos como os gregos e fazem poesia atravessar a fenda intransponível que se abre. Poesia entendida como criação originária diante do caos e do absurdo, não necessariamente obra de arte. Hamlet, em face do enfrentamento final, afirma corajosamente:
Not a whit. We defy augury. There is a special providence in the fall of a sparrow. If it be now, 'tis not to come; if it be not to come, it will be now; if it be not now, yet it will come. The readiness is all. Since no man of aught he leaves knows, what is 't to leave betimes? Let be. (Hamlet, Ato V, Cena II)
Assim, diante do planeta Melancolia, Justine não aceita vinho com música no belo terraço, pois seria uma negação hipócrita e não um encontro com o primordial. Ela poetisa e cria uma caverna mágica. Não se trata de um espetáculo tecnológico ou de um conhecimento capaz de suturar a morte que emerge no Real, mas uma integração criativa com a Physis. O medo está presente no enfrentamento final, mas quem disse que nos “transportes dionisíacos, por cuja intensificação o subjetivo esvanece em completo auto-esquecimento” (Nietzsche, 1992 [1871], p. 30) os quais marcavam o transe da audiência da tragédia e a reintegração com o uno primordial, não havia medo? Para poetizar é preciso ter a lucidez de reconhecer o absurdo e ainda assim deixar a vida fluir para anelar mais que a vida eterna:
Aqui, neste supremo perigo da vontade, aproxima-se, qual feiticeira da salvação e da cura, a arte; só ela tem o poder de transformar aqueles pensamentos enojados sobre o horror e o absurdo da existência em representações com as quais é possível viver: são elas o sublime, enquanto domesticação artística do horrível, e o cômico, enquanto descarga artística da náusea do absurdo. (Nietzsche, 1992 [1871], p. 56).
REFERÊNCIAS
FREUD, S. Luto e Melancolia. Rio de Janeiro: Imago, 1978 [1915].
______. Uma dificuldade no caminho da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1976 (1917).
NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Cia das Letras, 1992 [1871].
______. Sobre a verdade e a mentira. São Paulo: Hedra, 2008 [1873].
______. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Cia das Letras, 2009 [1883-85].
SHAKESPEARE, W. Hamlet. New York: WSP, 1992 [1603].
Von TRIER, L. Melancholia. Magnolia Pictures, 2011.
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Recebido: 07/01/2015.
Aceito: 12/03/2015.
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