“Podemos" A Emergência de uma nova Ferramenta Político-Social em Espanha
Henrique Garcia Pereira
Instituto Superior Técnico, Lisboa. E-mail: henrique.pereira@ist.utl.pt
Resumo: Neste texto, que pretende dar uma contribuição sóbria para a análise crítica do movimento-partido “PODEMOS”, defendo que estão a emergir novas configurações político-sociais capazes de deflagrar uma eficiente ação que transforme, do interior, as instituições capitalistas existentes. Sublinho, com base no exemplo do “PODEMOS”, que a constelações de poder inéditas decorrentes dessa ação correspondem de facto aos desejos e aspirações do amplo conjunto de cidadãos agredidos, de uma maneira ou de outra, pelas medidas postas em prática pelo establishment, sob a égide de uma ‘austeridade’ (mal distribuída).
Palavras-chave: Movimentos Anti-Capitalistas: Europa; Crise Financeira; Occupy; Recursos Comuns.
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“PODEMOS” THE EMERGENCE OF A NEW SOCIO-POLITICAL TOOL IN SPAINAbstract: The movement/party “PODEMOS” is critically assessed, trying to transpose/generalize its achievements in Spain into new socio-political configurations deemed to foster an efficient anti-capitalistic set of actions, aimed at the radical transformation of the status quo from inside. Based on the “PODEMOS” case study, a critical analysis of these socio-political configurations that are emerging in Europe to challenge the old institutions is performed. This analysis makes the point that power is to be claimed on the grounds of people’s rights deteriorating as a consequence of an ill distributed ‘austerity’.
Keywords: Anti-Capitalistic Movements; Europe; Financial Crisis; Occupy; Common Resources.
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INTRODUÇÃOPor todo o mundo (globalizado) estão a surgir uma miríade de campanhas – sob diferentes modelos – de contestação de vários aspetos do capitalismo (globalizado). Entre os movimentos que aglutinam essas campanhas, destaca-se, quantitativa e qualitativamente, o “PODEMOS”, que – ao transformar-se em partido – abalou os alicerces do poder bicéfalo em Espanha, com intenções de voto nas sondagens superiores a 20 %, o que supera o PP (conservador) e o PSOE (socialista), os dois partidos que têm alternado no governo desde a queda do franquismo. Apresenta feixes de propostas originais, adaptadas de um background constituído por um amplo espetro da esquerda mais ou menos radical, que pretendem transformar os órgãos de governo “por dentro” (e nas suas interações).
Antecendentes e as características singulares do “PODEMOS”
O “PODEMOS” emerge no contexto da crise do capitalismo financeiro internacional¹ desencadeada pela falência do Lehman Brothers, no Outono de 2008. Tal crise tomou os contornos de um “efeito de dominó” (à maneira do caos determinista que rege os sistemas dinâmicos não-lineares), estendendo-se (pelo menos) até 2014, e dando origem à primeira recessão econômica desde o pós-guerra de 1945.
Esta recessão – em que a banca internacional teve uma dolosa intervenção – lançou milhões de trabalhadores no desemprego (e numa pobreza extrema), e afetou até o rendimento (e a habitação) das “classes médias”, as quais eram, até esta crise financeira, uma acquis intocável, em especial nos países ditos desenvolvidos. No que toca à esperança de um bem-estar crescente por parte dessas classes médias, essa “vantagem” em relação aos agricultores e aos trabalhadores indiferenciados (e precários) desapareceu de um momento para o outro (e a vida dos “pequeno burgueses” – moldada pelo sistema bancário – resumia-se a trabalhar para pagar os seus empréstimos, pedir mais empréstimos, e continuar a trabalhar cada vez mais para satisfazer a avalanche de dívidas cujo pagamento era exigido todos os meses pelos especuladores responsáveis por este “plano financeiro”, que fazia parte da chamada “modernização” da banca, aplaudida pelos media).
O establishment, para combater a crise a favor dos poderosos, adotou uma forma peculiar de keynesianismo (ajustado, evidentemente, aos seus objetivos conjunturais), injetando nos bancos privados dinheiros públicos, e promovendo severas medidas de austeridade que atingiram a quase totalidade da população (“somos os 99%²”, é um expressivo slogan do movimento Ocupy, que organizou manifestações de massas de dimensão comparável às dos anos 1960, nos Estados Unidos, em especial em Wall Street).
Por um conjunto singular de circunstâncias peculiares que se conjugaram no final da primeira década do século XXI, emergiu na Espanha – o mais forte dos elos mais fracos do capitalismo na Europa – uma série de campanhas específicas em que um grupo muito vasto de indivíduos e pequenas associações com fins distintos puseram de lado as suas diferenças e aproximaram-se, através das redes sociais, num corpo amiboide definido apenas pelo consenso de que era necessário exprimir, na rua, a indignação contra o sistema. Esta série de pequenas campanhas culminou numa gigantesca manifestação na Puerta del Sol, no dia 15 de Maio de 2011.
E assim nasceu o 15-M (15 de Maio), que foi uma espécie de catarse em grande escala, desprovida de qualquer ideologia subjacente. De fato, para além de grupos não sectários de esquerda, como “DEMOCRACIA REAL, YA!”, surgiram conservadores de todos os matizes entre os manifestantes (inclusivamente os horrorizados com a corrupção no seio do PP), e também “apolíticos”³ que nunca – até aí – tinham descido à rua para expressar qualquer tipo de descontentamento em relação às suas condições de vida.
Centrando-se nos dois problemas fundamentais da Espanha atual – o desemprego e a emigração –, o 15-M (que se espalhou por mais de 50 cidades em todo o país) cedo enfrentou outras questões que afligiam a sociedade espanhola como um todo, como por exemplo o medo de perder a casa, de ver o salário (ou o rendimento, ou as pensões) cortados, o terror de perder o trabalho precário (ou seja, a sensação de existir como um “ser descartável” a todo o momento).
O movimento 15-M – que abordou estas questões de uma forma nova (mesmo antes do Ocupy Wall Street, que recebeu inputs de Madrid), enquadrando-as numa teoria consensual que tirasse as devidas lições das derrotas da esquerda tradicional – preconizava a ‘felicidade’ que St. Just anunciava há séculos como uma “ideia nova na Europa” e a cooperação entre indivíduos autônomos(4). Dessa forma de encarar a política, surgiu uma organização de tipo novo em que todas as hierarquias se esfumavam num rizomahorizontal baseado na inteligência coletiva da multidão, cuja cólera se dirigia contra os ‘magos financeiros’ (outrora objeto de inveja pública) e contra os políticos corruptos (outrora venerados como probos ‘dirigentes’).
Quando as ‘forças da ordem’ tentavam desalojar os ‘indignados’ que mantiveram a ocupação dia e noite durante mais de um mês(5), surgiram alguns problemas logísticos que tiveram algumas implicações no futuro desenvolvimento da praxis inovadora do movimento, por exemplo, a urgência em organizar o abastecimento com base na troca direta, a necessidade de resolver questões ‘triviais’, como a limpeza, o aquecimento, a provisão de infraestruturas sanitárias… (e outras menos prosaicas, como a instalação de redeswi-fi para assegurar as comunicações).
A ruptura com a tradição revolucionária do século XX – baseada em vanguardas ‘iluminadas’ de revolucionários profissionais(6) – levou também à criação de conceitos novos, como por exemplo a noção de ‘casta’, para significar a elite dirigente (feita de uma mescla dos políticos do regime com os dirigentes das multinacionais e da alta finança), de gente, para denominar os 99%, ou o ‘círculo’, para nomear as assembleias de debate de ideias (algumas das quais têm poder deliberativo, por consenso), ou o ‘empoderamento’ (empowerment), para designar o ato de estimular o poder da multidão através de ações teórico-práticas que tendessem a tornar visível o seu poder potencial (por exemplo, através de comportamentos pacíficos de massas visando ‘envergonhar’ publicamente os membros da casta, denunciando ruidosamente – caso a caso e face a face – as suas mentiras, fraudes e embustes(7). Um aspeto interessante destas denúncias refere-se ao confronto comparativo, ponto por ponto, entre aquilo que o poder anuncia que está a acontecer (queda no desemprego, aumento do poder de compra, e outros benefícios manipulados pela propaganda) e aquilo que a gente vê acontecer (mostrando à evidência que o poder nega a realidade).
Houve também a necessidade de ensaiar soluções novas para velhos problemas teóricos, como por exemplo, a pesquisa de:
- um feedback positivo entre ‘ideologias’(8) muito díspares, e a aproximação a formas de solidariedade esquecidas em que a troca de serviços desempenha um papel crucial, incluindo a questão da ‘dádiva’ [don, no sentido de Mauss (1950)], e excluindo todo o tipo de ‘jogos de soma nula’;
- uma conciliação harmoniosa entre o protesto e as posturas lúdicas (e entre o dissenso e a festa), a partir da criatividade coletiva emergente de grupos híbridos (PEREIRA, 2012);
- um aproveitamento da interdependência entre recursos para favorecer a ‘economia de aglomeração’ (é evidente que a noção de ‘economias de escala’ – de que o capitalismo tanto gosta para diminuir o custo de produção e aumentar o output – pode ser detournée no sentidode beneficiar as pequenas comunidades alternativas);
- consensos, a propósito de tudo e de nada, mas especialmente desse atributo de todo o agregado humano que DeLanda (2006) designa por group beliefs, expresso num ‘discurso’ coerente resultante de uma convergência emergente;
- modos simples para a eliminação drástica de todos os problemas que ‘não existem’, aqueles que são forjados pelos 1% para criar controvérsias enganadoras que escondem as formas menos palpáveis de exploração;
- um certo improvement na democracia representativa, baseado num mecanismo de alerta – o chamado panic botton – que permita a qualquer grupo de cidadãos interromper o mandato de um certo ‘representante’, e convocar um referendo para o substituir;
- métodos para permitir a votação, pela Net, das propostas de lei submetidas ao Parlamento.
Todos os approaches anteriormente listados a título de exemplo podem ser vistos como fragmentos de uma ontologia social que se demarca claramente das totalidades hegelianas, com base – em certa medida – na teoria das assemblagens complexas de Deleuze e Guatari (1980), criada com vista a estabilizar uma ‘identidade coletiva’ a partir de um processo emergente resultante da interação entre indivíduos singulares, cuja togetherness e solidariedade são elos de acoplagem fundamentais que promovem a ‘dignidade’ (essa dignidade que já apoquentava Kant). Por outo lado, as assembleias de discussão permanente despertavam, nos seus participantes, o prazer que se pode tirar da sensação de pertença a qualquer coisa de ‘global’, como se o agora da Grécia clássica não ficasse confinado a Atenas, mas se espalhasse pelo mundo inteiro.
De entre os cartazes emanados do movimento 15-M, apresentam-se alguns na Fig. 1.
Figura – 1: Alguma iconografia do 15M
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Na cultura pós-15 M despontaram alguns espaços de confluência não institucional dirigidos a aspetos particulares da vida em sociedade (hortas urbanas, bancos de tempo, grupos de consumo social….). Em particular, surgiram assembleias com poder deliberativo em resultado de campanhas com propósitos restritos, mas importantes para a ‘multidão’(9), como por exemplo a “PLATAFORMA DE AFECTADOS POR LA HIPOTECA” (PAH), criada com o objetivo preciso de difundir os êxitos alcançados na luta contra os despejos, e assim transmitir alguma confiança aos moradores dos bairros mais desqualificados, criando sociabilidades solidárias entre vizinhos (Fig. 2). Ainda no domínio da habitação, os indignados ocuparam alguns prédios devolutos, para aí instalarem as famílias mais carenciadas. Também a chamada “MARÉ BRANCA” conquistou algumas melhorias no sistema de saúde pública, fortemente ‘blindado’ contra os protestos que possam vir a ter implicações na vida das pessoas (mesmo se essa vida tendesse a tornar-se cada vez mais desalentada, e dirigida – em ultima instância e a custos públicos mínimos – para instituições de “ortopedia social”). A “MARÉ VERDE”, dirigida para os problemas da Educação e Ciência nas Universidades, conseguiu (em certos casos) obter um sucesso funcional, ao criar comissões paritárias de professores, alunos e bolseiros, encarregadas da gestão das Instituições de Ensino Superior e de Investigação Científica.
Figura – 2: Campanha contra os despejos
No decorrer destas campanhas de ordem ‘prática’, em que surgiu, por exemplo, o slogan “No somos mercancía en manos de políticos y banqueros”, os objetivos iam-se alargando, de acordo (aproximadamente) com o modelo proposto por Richard Rorty, quando o filósofo americano teoriza a passagem das ‘campanhas’ a ‘movimentos’, segundo uma estrutura bottom-up (RORTY, 2007) em que o internacionalismo (e algum cosmopolitismo) acaba fatalmente por emergir, no nosso mundo globalizado.
Em algumas assembleias dos movimentos contra os 1%, os ‘oradores’ não eram designados pelo sistema (antigo) de ‘inscrições’ (para que não fossem sempre os mesmos a falar). Ressuscitou-se – adaptando-o à tecnologia contemporânea baseada numa amostragem aleatória estratificada – um sistema (muito mais antigo) de tiragem casual usado pelos atenienses do século V a.C. para selecionar os seus ‘representantes’ (obviamente entre os cidadãos de pleno direito), e que consistia em usar um mecanismo designado por Kleroterion, representado na Fig. 3. Os ‘elegíveis’ colocavam aleatoriamente a sua identificação em cada uma das incisões da Fig. 3, e era então lançado um conjunto de esferas colorida com um pigmento diferente, em número igual ao número de cidadãos a selecionar para um determinado cargo, cujo mandato não era renovável. Por um sistema de correspondências entre as cores das esferas e as incisões no Kleroterion, eram escolhidos os cidadãos para o cargo em disputa (aleatória).
Figura – 3: Mecanismo para selecionar representantes na democracia ateniense do século V a.C.
Noutro registo histórico (mais recente), sabe-se que os ‘indignados’ usavam (e usam ainda) a célebre máscara da Fig. 4 , que evoca Guy Fawkes, um soldado inglês católico (simpatizante dos espanhóis, e que por isso mudou o nome próprio para Guido) que participou na Gunpowder Plot, a rebelião contra o rei protestante Jaime I de Inglaterra e os membros do Parlamento, ocorrida em 1605.
Figura – 4: A máscara dos indignados
A importância das ‘redes sociais’
É uma trivialidade dizer que, sem as ‘redes sociais’, os indignados nunca poderiam ter atingido um ‘alvo’ tão vasto como o que afluiu às praças de todo o mundo, durante o ano de 2011. Quando o PC (já ligado à Net) se liga aos tablets e telemóveis, torna-se um utensílio poderosíssimo de comunicação horizontal (many-to-many), de que os revoltosos não podem de modo nenhum prescindir.
A rede mais usada pelos ativistas insurgentes é a WIKIA (www.wikia.com), lançada em 2004 por Jimmy Wales e Angela Beesley com o intuito de pôr gratuitamente à disposição de todos um motor de busca copyleft (isto é, um software que qualquer pessoa pode utilizar for free, desde que distribua pela rede o respetivo código, depois de o ter aperfeiçoado, se essa for a sua apetência). Para este tipo de software, há um extenso número de utilizadores e programadores jovens (habituados a procedimentos híbridos e experimentais) que constituem a camada social mais disponível para usar a WEB contra os 1%, retomando – aliás – a tradição do Open Source Movement.
Por outro lado, é possível – no contexto da contracultura hacker – combater de uma forma não violenta os aparelhos repressivos que os 1% montaram para enfrentar os indignados. Por exemplo, nos riots de 2011, em Londres, os centros informáticos da polícia ficaram inoperantes pela intrusão de três milhões de tweets relacionados com os motins, lançados pelos revoltosos contra as ‘forças da ordem’. A criatividade (digital) da multidão passou a ser uma séria ameaça para os chiens de garde do capitalismo.
A atitude de alguns grupos pertencentes aos 99% que consiste em difundir a informação pelos meios que têm à disposição pode ser vista como uma forma nova do desejo de tornar ‘comum’ aquilo que é privado, através de uma decisão coletiva. Neste contexto, a WEB é um recurso comum, como sustentam Hardt e Negri (2012). Etimologicamente, o ‘comum’ define-se pela igualdade de acesso a uma certa atividade, combinada com a escolha dos objetivos dessa atividade. A partir desta semântica, poder-se-á talvez dizer que o ‘comum’ é o princípio estruturante de uma verdadeira democracia, em combinação com um outro significado da palavra common, no domínio da economia(10), referente aos recursos naturais de que qualquer indivíduo (ou grupo) se pode apropriar gratuitamente para uso próprio [por exemplo, o stock de peixes em águas internacionais, como exemplifica Hardin (1968)].
Através de um uso inteligente do recurso comum que é a WWW – não só para convocar a multidão, mas também para auscultar online as tendências que nela surgem e disseminá-las urbi et orbi –, os participantes no movimento 15-M foram aumentando numericamente, de uma forma continuada durante os primeiros anos da segunda década do nosso século, fundindo-se com outros grupos que lutavam pelos mesmos objetivos de uma forma isenta de qualquer espécie de sectarismo, e ‘recrutando’ cada vez mais indivíduos isolados que sofriam com as medidas de austeridade, decretadas top-down pelo governo, em concertação com a UE (União Europeia) e com a finança internacional.
O êxito eleitoral do PODEMOS nas europeias de 2014 e suas consequências a curto prazo
Como seria de esperar, o aumento quantitativo atrás referido levou a uma modificação qualitativa: a partir de um certo threshold («Tipping Point», na nomenclatura de Gladwell (2000), em que se reassume – alargando o seu âmbito – a ideia de Marx), as características do movimento alteraram-se: cem dias antes das eleições europeias de 2014, o movimento passou a ‘partido’, segundo as regras eleitorais em vigor em Espanha, constituindo-se numa alternativa real ao arranjo bipartidário que vigorava desde a queda do franquismo.
Embora não concordasse com a lei eleitoral, PODEMOS teve de se sujeitar a ela para entrar na cena política institucional da Europa, abandonando algumas posições mais ‘anarquistas’ a favor de uma – eventual – intervenção no Parlamento Europeu que pudesse – eventualmente – levar a uma transformação política no sentido da democracia, transparência e expressão da vontade da gente.
Obviamente que esta passagem de movimento a partido (ou ”da metamorfose da indignação em mudança política”, segundo as palavras do próprio PODEMOS) não se fez sem alguma fricção (entre indivíduos e grupos). Mas o intenso debate que possibilitou essa passagem permitiu encontrar consensos capazes de ultrapassar todo o sectarismo e erodir as diferenças entre as diversas correntes que se manifestavam no seio do movimento (para além de encontrar um modus vivendi com os sindicatos tradicionais), procurando uma espécie de plataforma mínima, expressa num manifesto em 50 pontos, aceito por todos.
Entre esses pontos, salientam-se os seguintes:
- Incremento do poder do Parlamento Europeu como órgão eleito, em detrimento da Comissão Europeia, nomeada pelos governos em função de uma correlação de forças hegemonizada pelos estados de mais forte economia.
- Divulgação mais extensa das decisões da UE, dirigida em especial aos povos (e não aos governos).
- Ampliação da capacidade do ‘europeu comum’ em intervir na política europeia.
- Incremento do salário mínimo e estabelecimento de um salário máximo, indexado ao primeiro.
- Proibição de despedimentos em empresas que dêem lucro.
- Proibição de transferências de fundos para os ‘paraísos fiscais’.
- Criação de uma empresa pública de rating na UE.
- Eliminação do ‘segredo bancário’.
- Aplicação da taxa Tobin (menos de 1% sobre as transacções financeiras) de modo a cobrir os custos da atribuição de uma renda básica a todo o cidadão, “pelo mero direito a sê-lo”.
- Devolução ao setor público de todos os hospitais privados.
- Direito à interrupção voluntária da gravidez (sem quaisquer restrições), e direito a uma morte digna.
- Criação de um modelo federal de Estado.
- Ensino secundário universal e gratuito, e limitação das propinas da universidade com o estabelecimento de bolsas de estudo que garantam o acesso à universidade a quem o pretender.
- Consolidação da investigação científica como alavanca de mudança ao serviço da população (e não das empresas capitalistas), através de um aumento de 200% em 10 anos no seu financiamento público.
A partir desta plataforma – onde se podem encontrar feixes de reivindicações adaptadas a partir dos ‘programas’ de uma série de movimentos da esquerda alternativa –, o PODEMOS alcançou 1.25 milhões de votos (8%) e elegeu cinco deputados para o Parlamento Europeu. Como ‘cabeça de lista’, aparece Pablo Iglesias Turrión, de 36 anos, professor de ciência política na Universidade Complutense de Madrid e figura midiática que sabe usar o ‘espetáculo’ – principalmente o televisivo – a favor da multidão(11).
Os votos no novo partido, segundo uma ‘fonte’ do PODEMOS, distribuir-se-iam (aproximadamente) de acordo com a seguinte repartição: 30% provém do PSOE, 20%, de IU (PCE), 10%, do PP, e os restantes de abstencionistas e votantes pela primeira vez. A significativa percentagem atribuída aos trânsfugas do PP (e outros conservadores) parece indicar uma diluição da fratura entre a esquerda e a direita tradicionais, o que pode levantar a hipótese de que as crises tendem a modificar, de algum modo, a ‘identidade’ plástica dos povos.
Nos dias seguintes a este êxito (só comparável com o do Syriza na Grécia, que foi o primeiro partido, com 26.5% dos votos) desenvolveu-se, nos meios contraculturas de todo o Globo, uma intensa agitação de ‘aplauso’ ao PODEMOS. Por exemplo, 30 ‘intelectuais’, entre os quais se contavam Chomsky, Hardt, Negri, Cocco, Zizek, Judith Butler, Noami Klein, Jacques Ranciére, assinaram um manifesto de apoio ao partido, contendo asserções como esta: “É sinal de grande esperança que surjam alternativas dispostas a batalhar pela democracia, pelos direitos sociais, e pela soberania popular”.
Não se pense que o PODEMOS, apesar (ou em consequência?) do seu êxito eleitoral, não teve de ultrapassar os inevitáveis obstáculos que sempre surgem quando emerge um movimento NOVO na cena política tradicional. Desde a acusação de ‘populismo’ (que levou a ‘equipará-lo’ à FN francesa, e mesmo ao poujadisme – que teve o apoio do PCF nos idos de 1953 –, e que depois ficou soterrado – e esquecido – sob várias camadas de movimentos sociais mais interessantes), até aos opróbrios mais torpes(12) por parte do PSOE (o partido tradicional que perdeu mais votos para o PODEMOS) e das injúrias que emanaram copiosamente de outros setores dependentes dos 1%, passando pelas dificuldades em lidar com o contexto político específico de Espanha (dividida num patchwork extremamente complexo de ‘regiões’, cada uma das quais reivindica um maior grau de autonomia(13)), PODEMOS teve de ir superando as contrariedades com que se deparava, à medida que ia fazendo o seu “caminho, caminhando”, e usando profusamente a ‘lentidão’ característica dos povos do Sul, que é um trunfo não despiciendo numa época de fulgurante aceleração(14) em todas as componentes da vida, levando uma acrítica ‘fuga para a frente’ (ROSA, 2010).
As ‘críticas’ (acríticas) ao PODEMOS parecem indicar que “el miedo mudó de bando”, como afirmavam já os indignados. Um sinal inequívoco de medo por parte da direita pode ser visto na primeira página (em 10.08.2014) do diário “LA RAZÓN”(15). Nessa portada (e em 5 páginas interiores dedicadas a denegrir o novo partido) afirma-se, por exemplo, que “a maioria” dos espanhóis não confia no PODEMOS para participar no governo, apelidando-o de “movimiento demagogo de izquierda radical”, e insinuando, num editorial, que PODEMOS pretende eliminar a política antiterrorista. Esta última boutade visa evidentemente ‘assustar’ os leitores através dos fantasmas do atentado da Atocha, em 1977 - perpetrado pelos neofascistas - , e principalmente, fazer reviver no seu espírito o massacre de 11 de Março de 2004 (atribuído a grupos islâmicos fundamentalistas), em que morreram cerca de 200 pessoas em consequência do rebentamento de bombas nos comboios suburbanos de Madrid. Para além destas insinuações, o referido número de “LA RAZÓN” faz um paralelo (obviamente abusivo) entre PODEMOS e o Chavismo venezuelano (e liga-o às FARC da Colômbia e às “recetas bolivarianas”), não faltando obviamente a ‘ameaça’ da atitude retaliatória dos países mais poderosos da UE, que – em face de uma politica NOVA em relação à dívida soberana espanhola – exerceriam ferozes represálias que afetariam de um modo indiscriminado toda a população. Na mesma linha de difamação por parte das forças mais reacionárias, a alcaldesa de Madrid (PP) acusou o PODEMOS de apoiar a ETA e de receber fundos da Venezuela(16). Em menos de quatro horas, cerca de 1000 pessoas reuniram 13000 euros (pelo sistema de crowdfunding, através do Twitter) para que PODEMOS pudesse iniciar uma batalha judiciária contra a direita (Le Nouvel Observateur, 14 de Agosto de 2014).
Mas o que é certo é que, numa sondagem do Centro de Investigaciones Sociológicas (CIS) realizada em Agosto de 2014, PODEMOS surge com 15% de intenções de voto, tornando-se assim a terceira força política do país. No que diz respeito à Andaluzia, um baluarte do PSOE, um inquérito da CADPEA (Centro de Documentación Política y Electoral de Andalucía), realizado nos finais de julho do mesmo ano, revela que a erupção do PODEMOS impedirá a maioria PSOE+IU que tem governado a região nos últimos anos (com alguns sobressaltos, como as acusações – provadas – de corrupção que atingiram ambos os partidos, ao longo do ano de 2014).
O PODEMOS continuou a subir nas intenções de voto durante o Outono de 2014 e quando Pablo Iglesias foi eleito Secretário Geral do Partido, uma sondagem do CIS colocou o NOVO partido-movimento em primeiro lugar (com mais de 20% de votos, igualando a ‘proeza’ do Syriza grego).
Este êxito nas sondagens desencadeou uma tal onda de difamação (e falsidades) por parte dos partidos institucionais (principalmente do PSOE(17), cujo eleitorado se vem deslocando em massa para o NOVO partido-movimento), que o PODEMOS se viu ‘obrigado’, num gesto de fina ironia, a ‘sossegar’ o status quo através daqueles argumentos usados habitualmente por quem está a perder nas sondagens (“sondagens são sondagens, no voto é que se vai ver”….)
Mas os principais inimigos do PODEMOS são obviamente os membros da CASTA, cujos súditos da Câmara de Comercio (Associação de Empresários) condenam severamente o novo partido-movimento, aliás em consonância (já esperada) com os consultores internacionais de “Risco Político” (EURASIAN GROUP), que – nos finais de Novembro de 2014 – afirmam com todas as letras que os populismos (leia-se PODEMOS) são mais perigosos para o investimento estrangeiro do que a turbulência causada pelos nacionalismos catalão e basco.
Ao fazer sair, em Dezembro de 2014, um draft do seu plano econômico para o governo de Espanha (dito ‘social-democrata’), o PODEMOS sentiu necessidade(18) de afirmar a sua força na rua, agendando uma (provavelmente gigantesca) manifestação para 31 de Janeiro de 2015, comemorando um ano de existência.
NOTAS
(1)É espantoso que, na segunda década do século XXI, a chamada ‘economia real’ seja responsável por apenas 2% das transações efetuadas em todo o mundo, o que dá uma ideia (surpreendente) do domínio das finanças globais.
(2)Segundo Freeland (2014, p. 14), estes 99% viram o seu rendimento crescer em 0.2% de 2009 para 2010, enquanto que – para os 1% – esse crescimento cifrou-se em 11.6% no mesmo período.
(3)Estes são designados em Arriaga (2014, p. 2) pela curiosa expressão colectiva “I-don’t-belive-in-politics-ist” (como se se tratasse de uma ideologia cujo nome acaba em ist, como communist)
(4) foi um cartaz que surgiu a 15 de Maio de 2011 na Puerta del Sol, e que exprime bem a ideia de que a cooperação pode levar à felicidade, quando integrada num movimento em que a democracia se exerce todos os dias [“Si hacer el amor cada cuatro años no es tener vida sexual, votar cada cuatro años no es democracia”, proclamam os indignados, cf. Álvarez et al. (2011, p. 13)]
(5) A ‘ocupação das praças’ – transformando-as em “Zonas Autónomas Temporárias” – contraria de um modo claro (e com um pesado conteúdo físico, que logo toma contornos simbólicos) os diktats do capitalismo, sob todas as suas formas (desde a autoritária proibição de “ajuntamentos de mais do que uma pessoa” até à receita neoliberal que leva à ‘circulação permanente’ de indivíduos, bens e capitais em fluxos cada vez mais rápidos). Ao abandonarem a Puerta del Sol, os contestatários deixaram um cartaz que dizia: “NOS VEMOS EN LOS BARRIOS”, num détournement da saudação habitual “nos vemos en los bares” (despedida dos concertos rock, em Espanha).
(6)Segundo Arriaga (2014, p. 39): “Politics is the rare sport where the amateur is better than the professional”.
(7)Estas ações políticas, com raiz na Argentina da década de 1990, designam-se por “escrache” e visam assinalar e apupar os culpados que a justiça formal ‘absolve’. Estudos psicológicos realizados nas universidades dos Estados Unidos demonstram que a denúncia pública (face a face) de um cheater faz diminuir em 30% (em relação ao anonimato) a sua propensão para enganar os outros em atitudes autoritárias e competitivas.
(8)O tema da ‘ideologia’ aplicada a movimentos espontâneos de autoemancipação que se formam contra a ideologia hegemónica da ‘Sociedade do Espetáculo’ é controverso. Para Debord (1967), este conceito está de tal modo ‘contaminado’ pelo sistema dominante que é ‘preferível’ abandoná-lo nas mãos do poder, e cingirmo-nos à noção de ‘teoria’ como um somatório articulado de opções políticas, revogável a qualquer momento (em sintonia, aliás com a praxis da exoneração imediata de qualquer ‘representante’ de um movimento, sempre que ele deixe de o representar de facto, segundo o juízo das assembleias populares que o elegeram).
(9)Aqui é ‘indispensável’ tomar em conta o trabalho de Antonio Negri sobre o conceito de ‘moltitudine’ (Hardt & Negri, 2004).
(10)No sentido económico, a privatização – no século XV, em Inglaterra – dos commons (terras de pasto, rios, florestas) por parte dos senhores feudais deu origem às enclosures, os espaços onde Marx faz nascer a acumulação primitiva do capital.
(11)Se a ‘sociedade do espetáculo’ pode recuperar todas as iniciativas da multidão para as transformar em mercadoria, porque não admitir que a multidão se aproprie – sempre que possível – dos meios de que o sistema dispõe, para difundir as suas mensagens?
(12)Baseados na estafada sentença de que o PODEMOS “está a fazer o jogo da direita “, ‘esquecendo’ os pactos com o PP que sempre regeram a política do PSOE.
(13) O problema da Catalunha – onde PODEMOS alcançou apenas 4.66% dos votos – é extramente delicado, tendo-se agravado em Agosto de 2014 com a ‘descoberta’ de uma série de crimes económicos atribuídos a Jordi Pujol, o capo da Generalitat durante décadas. Segundo o seu modelo de estado federalista, o Podemos tende mais tarde a implantar-se de um modo mais sedimentado nas regiões onde o nacionalismo é mais ativo (Catalunha, País Basco e Galiza) através de uma ideia simples: cada região tem o direito de decidir qual o caminho que quer tomar…
(14)Em oposição a essa aceleração cada vez mais intensa (e extensa) que chega a criar algumas patologias ao nível pessoal (e a impelir algumas decisões sociopolíticas ‘urgentes’, que – com o tempo – se revelam contraproducentes), tem emergido – principalmente nos países da periferia Sul da Europa (precisamente aqueles que são acusados pelos próceres do capitalismo ‘luterano’ de “viverem acima das suas possibilidades”) – uma tendência para valorizar a ‘lentidão’ como estilo de vida [e do slow food, rapidamente se passou às slow cities e à slow science, cf. André (2014b)]. Como seria de esperar, o capitalismo tentacular também tentou ‘recuperar’ esta tendência, fomentando o estilo cool e incentivando os trabalhadores cognitivos “a perderem tempo” [para que a criatividade – ao serviço das multinacionais – tenha ‘espaço’ para emergir, cf. McGonigal (2014)].
(15)Este jornal, pertencente ao grupo Planeta, é distribuidor de uma súmula de “L’OSSERVATORE ROMANO” em Espanha. Foi alvo de enorme campanha de repulsa por parte de “Le Monde”, quando identificou – pelo nome e fotografia – alguns estudantes que participaram numa manifestação legal contra os ‘cortes’ no financiamento da Educação.
(16)Pablo Iglesias sustenta que as diatribes contra o PODEMOS resultam do facto de que os partidos tradicionais “no se atreven a discutir de política con nosotros”. E acrescenta: “su odio, nuestra sonrisa” (RIVERO, 2014, p. 81).
(17)O “número dois” de tal partido escreveu em EL PAÍS de 30 de Novembro de 2014 (aproveitando um provérbio popular): “aunque se vista de seda, el populismo extremista se queda”, a propósito do PODEMOS (sem o nomear).
(18)Talvez para fomentar o tão interessante “pensamento duplo”, que consiste, segundo George Orwell, em ter duas ideias contraditórias em mente, e acreditar em ambas.
REFERÊNCIAS
ALVAREZ, K.; GALLEGO, P.; GÁNDARA, F.; RIVAS, Ó. Nosotros, los indignados. Barcelona: Destino, 2011.
ANDRÉ, C. “Pouvons-nous redevenir maîtres de notre temps?”. Cerveau &Psycho, nº 61, p. 29 – 33, 2014b.
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DELANDA, M. A new philosophy of society. New York: Continuum, 2006.
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Recebido: 06/03/2015
Aceito: 28/03/2015
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