Border Bordel: um coletivo em busca do sensível

 

Cecília Magalhães Clemente

Psicóloga, pós-graduada em Psicanálise e Saúde Mental pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-graduada em Terapia pelo Movimento: Corpo e Subjetivação pela Faculdade Angel Vianna. Integrante do coletivo Border Bordel.


Resumo: O presente artigo apresenta o processo de criação do coletivo Border Bordel e discute sua proposta performática inspirada na obra Estruturação do Self da artista Lygia Clark. O artigo pretende contribuir para o debate entre arte e clínica, corpo e subjetividade a partir de uma experiência de criação.
Palavras-chave: Coletivo. Arte. Clínica. Lygia Clark.


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Border Brothel: a collective in search of the sensitive

Abstract: This article presents the creative process of the Border Bordel collective and discusses its performative proposal inspired on Lygia Clark’s work Structuring the Self. The article aspires to contribute to the discussion of art and clinical work, body and subjectivity, from the perspective of a creative experience. 
Keywords:  Collective. Art. Clinics. Lygia Clark.


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INTRODUÇÃO

Border Bordel é um coletivo formado, inicialmente, por um grupo de alunas do curso de pós-graduação em “Terapia pelo Movimento: Corpo e Subjetivação” da Faculdade Angel Vianna e que teve sua origem em 2013. O processo de criação desse coletivo se deu a partir do interesse comum de suas integrantes pelas questões relacionadas ao corpo, subjetividade, performance, arte, clínica, política e poética.

Nosso interesse maior de pesquisa é o campo do sensível, campo das trocas afetivas. Investigamos maneiras de produzir um estado estético, de criar relações – a partir de ambientes e situações – entre nós mesmas e outros corpos que favoreçam o estado de criação, de transfiguração das coisas, do mundo, dos próprios corpos; que propiciem, enfim, o surgimento de novas percepções e novos significados.

O nome Border Bordel só surgiu após nossas primeiras experimentações e serviu tanto à prática que iremos discutir, como ao próprio coletivo. Pretendíamos, como coletivo, criar um espaço, um ambiente, essencialmente prazeroso, que pudesse acolher encontros fora de quaisquer convenções, abrigar a subjetividade em toda sua potência, as irrupções, as subjetividades desviantes, local de construção de “corpos-sem-órgãos” (DELEUZE & GUATTARI, 2008), de trocas afetivas, de criação artística, de bons encontros, de produção de conhecimento, de surpresa, de delicadeza, de alegria e, por que não, de clínica em seu sentido mais amplo. Entendemos que isso tudo só seria possível em um bordel que, por definição, é um local profano, à margem, amoral, que se situa nas bordas, nas margens e abriga os “borderers”, os que habitam as bordas, as fronteiras, os que não estão nem lá, nem cá, não se definem, ou essa é mesmo a definição que lhes cabe: inclassificáveis.

O borderline, categoria definida pela psiquiatria, refere-se a um tipo de personalidade “fronteiriça” entre a psicose e a normalidade, personalidade instável que alterna estados afetivos e de humor. Daí o neologismo “borderizar” usado jocosamente para dizer que alguém está tendo comportamentos estranhos, inadequados, incompatíveis com uma conduta socialmente esperada, com uma personalidade bem estruturada e bem definida. Optamos, no entanto, por tomar o termo border em toda sua potência e positivar – ampliando sua significação para além das descrições psiquiátricas – esse estado indefinido, no limiar entre a loucura e a sanidade, entre o caos e a organização, entre o corpo-sem-órgãos e o organismo. A ideia, então, era a de produzir um local para abrigar a “borderização”. Seria, então, nesse ambiente, nessa “zona” – como costumeiramente os bordéis são chamados –, nessa “bagunça” que faríamos nossa intervenção.

Após algumas propostas práticas que passaram pela paródia, pelo excesso, pelo cômico, percebemos a necessidade de realizarmos uma intervenção que primasse pelo sensível, pela delicadeza e cuidado com o nosso corpo e com o corpo do outro. Estávamos em pleno junho de 2013 em meio às manifestações que tomaram conta das ruas no Rio de Janeiro. Para que o coletivo se sustentasse e para fazer frente à violência desse período, optamos por um bordel menos barulhento e mais silencioso, onde as trocas afetivas se dariam sem palavras, mas a partir dos sentidos, principalmente aqueles menos privilegiados no cotidiano.

Lygia Clark: entre a arte e a clínica

Lygia Clark, artista brasileira (1920-1988), passou a ser nossa principal inspiração. Deixamo-nos atravessar por sua concepção de arte e vida, de arte e clínica, da criação a partir do encontro com o outro, da incorporação da obra de arte, da quebra de fronteiras entre espectador e obra.

A artista compreendia que sua obra se realizava apenas na interação entre esta e um outro, ou seja, que a obra não se encerrava no objeto em si, mas existiria apenas na relação que construísse com o “participante” ou “receptor”. Este deixava de ser considerado mero espectador, passivo diante de um objeto artístico, para ser convocado a fazer da obra algo vivo, produzir com ela um acontecimento. A corporeidade e a alteridade sempre foram a tônica do trabalho dessa artista.

O interesse maior de Lygia era pelo corpo atravessado pelo que a obra pode fazer nele irromper, inaugurar, revelar; o corpo que cria com a obra algo novo. Um corpo afetado e um corpo passível de afetação. “As propostas de Lygia Clark se relacionam assim, na temporalidade ilimitada da relação poética de seus receptores com os objetos que as compõem: elas se tornam acontecimentos” (ROLNIK, 2005, p.4).

O caráter essencialmente experimental das investigações da artista, convocando à participação tanto individual como coletiva, a concepção de obra que se realiza na ação, a busca pelo campo sensível, pelo campo afetivo e o que pode despertá-lo, fazem-nos pensar em um caráter profano de sua arte.

Profanar, de acordo com Agamben, significa tornar disponível, restituir ao uso comum algo que foi separado na esfera do sagrado: “Profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular” (AGAMBEN, 2007, p. 66). Significa também brincar, jogar, ampliar, subverter os significados de um objeto de um ritual.

A obra de Lygia apresenta um grande potencial profanatório na medida em que ela brinca com o que é considerado “sagrado”: a arte, a obra de arte, o objeto artístico e, posteriormente, a própria clínica. Ela retira a arte do privilégio de poucos, dos que se aproximariam da genialidade e a oferece a um público muito mais amplo, apresentando-a como possibilidade de ação e criação para qualquer um que queira ou se sinta provocado. É a possibilidade, portanto, de restituir à arte seu lugar de coisa pública, de compreendê-la como ação e intervenção no mundo e não como algo separado dele. É uma arte vivencial, experimental por excelência e que se abre ao outro o considerando figura essencial nesse processo.

Justamente em função do caráter relacional de suas obras, torna-se difícil pensar no ambiente tradicional do museu como um local próprio para a “realização da obra”: suas salas exigem silêncio, distância física dos objetos de arte, um comportamento passivo e distanciado do espectador.

Hélio Oiticica já dizia: "Museu é o mundo", que chegou a ser título de uma exposição sua. Podemos compreender essa frase como um convite para que percebamos e tenhamos uma experiência estética com as coisas que estão no mundo, as mais simples e mais corriqueiras, como ele fez. Encontramos aí uma concepção diferente do que seria museu, potencializando-o como lugar não só de apreciação, de contemplação, passividade, mas também de experiência, atividade corporal, de algo que passa pela afetação.

Uma outra maneira de pensar a frase de Oiticica é que ele realmente leva para o espaço do museu elementos do mundo vivo, vivido, convidando o espectador a sair do lugar de passividade e, a partir de uma relação com a obra, experimentar de uma outra maneira, esses elementos muitas vezes bem conhecidos. Experimentar pisar na terra, molhar os pés, mergulhar o corpo numa caixa d'água, empurrar um carrinho de mão, vestir-se com seus “parangolés” e dançar... Sem que isso sirva para alguma coisa. Não há, nessas ações, utilidade alguma; elas não servem para concluir a construção de uma casa, ou se limpar, por exemplo. Elas são pura experiência, são “puro meio”, “meio sem fim”, como nos diz Agamben: “Assim, a criação de um novo uso só é possível ao homem se ele desativar o velho uso, tornando-o inoperante” (AGAMBEN, 2007, p. 75).

Outra possibilidade, ainda, de compreensão da frase “Museu é o mundo” seria a de oferecer a um público muito acostumado a frequentar museus – e, por isso, a ter um certo comportamento frente à obra de arte – a possibilidade de uma experiência com elementos muito cotidianos para alguns e tão distante da realidade de outros. Vemos aqui uma possibilidade de jogar, de brincar com essas posições estanques, em uma atitude também profanatória, qual seja, a de trazer ao uso comum, usando para isso o dispositivo do museu (lugar "sagrado"), objetos que remetem a cenas de uma classe específica da população.

Lygia, assim como Oiticica, propõe que se viva a experiência. É o vivido, o que de fato importa. Ao propor uma experiência a partir do sensível, infrasimbólico, pré-verbal, Lygia aciona e investe outros modos perceptivos muito para além da visão. A pele ganha um grande investimento, assim como o sistema auditivo, olfativo, gustativo passam a ser sensibilizados. Yve-Alain Bois comenta sobre a obra de artistas como Lygia e Hélio Oiticica: “Nós a lemos com todo o corpo. A parte motora do sistema nervoso é engajada no processo estético, a obra e o espectador tornam-se indiscerníveis. O signo é investido pelo vivido; o plástico, pelo orgânico” (BOIS apudCOSTA, 1996, p.122).

Em sua última proposição denominada Estruturação do Self (1976-88), Lygia retoma alguns objetos de suas fases anteriores (os objetos sensoriais) e cria outros novos, batizando-os de objetos relacionais. Os objetos relacionais que são criados a partir de então vão ganhando potencial terapêutico em função do uso que se passa a fazer deles.

Tais objetos pressupõem, como o próprio nome sugere, uma relação; apenas fazem sentido quando entram em relação com alguém, com um ou mais corpos, mantendo sua ideia originária de obra que se realiza na ação. Mas há, nessa fase, algo de muito particular e que nos interessa em especial para o trabalho que estamos discutindo: o caráter terapêutico. Para além da dimensão relacional e também performática de suas proposições anteriores, Lygia passa a utilizar esses objetos com finalidade terapêutica em sessões individuais com quem ela passa a denominar de “cliente”. Tais objetos configuram-se, assim, como “intermediadores de sensação, declanchadores de narrativas sensoriais e afetivas” (COSTA, 1996, p.124).

A Estruturação do Self introduz uma marca importante no trabalho de Lygia: a ligação por ela estabelecida entre arte e terapia, ou entre arte e clínica. Esses territórios deixam de ser polarizados em definições excludentes e passam a se comunicar em uma proposta inovadora tanto para o campo da arte quanto para o da clínica. Lygia é pioneira em propor uma prática terapêutica que se sustenta, essencialmente, no potencial estético e poético dos objetos relacionais e na relação singular estabelecida entre a artista/terapeuta e o cliente/receptor.

Os objetos relacionais por ela criados são geralmente feitos de materiais muito simples, utilizados no dia-a-dia, facilmente encontrados no espaço urbano ou na natureza. São sacos plásticos, bolinhas de isopor, pedras de tamanhos variados, bucha vegetal, bola de tênis, tecidos variados, estopa, tubos, jornal, entre outros. Com estes elementos ela cria uma variedade de objetos que são, a cada sessão, utilizados com o cliente, dependendo da “função” de cada um. Lygia dá nome a alguns e cria para eles funções diversas¹.

Sobre a prática de Estruturação do Self, Rolnik comenta:

O espectador aqui, convocado em seu corpo vibrátil, capta as sensações provocadas pela estranha experiência com aqueles objetos, e se ele realiza sua decifração, tende a tornar-se outro, diferente de si mesmo. O que lhe está sendo dado viver é uma experiência propriamente estética, que nada tem de psicológica: sua subjetividade está em obra, assim como também o está sua relação com o mundo (ROLNIK, 2002, p.7).

É justamente a partir dessa experiência estética, de uma vivência poética que o que Lygia chama de “self” será “estruturado”. É, portanto, um processo de individuação, uma prática de subjetivação que se dá pela via da arte e, por isso, uma experiência de desterritorialização, de devir outro, de estranhamento, em que “uma ‘subjetividade estética’ ganha corpo” (ROLNIK, 2002, p.7).

Não é possível ficar indiferente frente a esse “espetáculo” – tal como nos é apresentado no filme de Mário Carneiro (1984) – a esse híbrido de artes plásticas, instalação, performance e terapia. O corpo do cliente deitado se apresenta ao espectador como portando a obra, sendo dela o suporte, ou completando-a, dando-lhe sentido, já que os objetos seriam outra coisa, não fosse o uso que lhes fora atribuído. O que nos apresenta através das imagens do filme é uma senhora com sua fala tranqüila, fazendo uma verdadeira sessão xamânica frente à câmera. Terapeuta? Bruxa? Feiticeira? Lygia cria uma prática singular, dá vida a seus objetos e os “aplica” em seus clientes, como um pajé o faz com um índio que necessita ajuda ou esteja doente: “Sei que parece ‘bruxaria’, até para mim mesma, o que muito me alegra. Pude sistematizar um trabalho, mas nunca consegui fazer uma teoria. (...) Desde a Sorbonne, dizia que era um ‘rito sem o mito’” (CLARK apud COSTA, 1996, p.124).

O feiticeiro, segundo Deleuze & Guattari, é aquele que ocupa uma posição fronteiriça, o “entre”: “Eles vagam pelas orlas dos bosques. Estão na orla das cidades, ou entre duas cidades” (DELEUZE & GUATTARI apud COSTA, 1996, p.125). O “borderline” também é o habitante da fronteira, aquele que não se define enquanto estrutura neurótica ou psicótica, ficando na borda de ambas. Lygia é essa feiticeira; uma “border” que bordeia a arte e a clínica, que cria na borda dessas fronteiras, questionando-as a partir de suas proposições, deslocando-as de seus lugares fixos. Ela não “pertence” a lugar algum, não é artista e não é terapeuta:

Com sua Estruturação do Self, Lygia desloca as fronteiras historicamente traçadas entre arte e clínica. Entre propositor e receptor, seja esse o ex-espectador ou o ex-crítico, cria-se uma zona de indeterminação, algo em comum porém indiscernível, que não remete a nenhuma relação formal ou de ordem identitária, já que um pólo dessa dupla não se encaixa nem bem na categoria de artista nem bem na de terapeuta, enquanto que o outro não se encaixa nem bem nas categorias de espectador ou de crítico, nem bem na de paciente ou de cliente. É todo um cenário histórico que se move, esboçando-se um território inteiramente novo, no qual subjetividade e mundo se revitalizam. Esse é o condensado de signos que nos é dado vislumbrar através da Estruturação do Self (ROLNIK, 2002, p.12).

No período em que desenvolveu sessões de Estruturação do Self, Lygia não escondia sua predileção por clientes psicóticos e “borderlines”: Recusei outras pessoas que passaram pelo meu método por achá-las rasas, são neuróticos e nunca entenderiam a linguagem de um ‘borderline’ ou de um psicótico. Somente quem passou por estados de grandes catástrofes pode entendê-las (CLARK apud COSTA, 1996, p.128).

Podemos pensar que, para vivenciar a Estruturação do Self, como Lygia a concebeu, seria desejável um “devir esquizo”, um estado de abertura às pequenas percepções (GIL, 1996), um estado intensivo. O trabalho de Estruturação do Self poderia, assim, ser compreendido como uma prática possível de construção de “corpos-sem-órgãos”.

A demonstração da sessão terapêutica que Lygia nos apresenta e as interpretações que faz no decorrer da mesma fogem à qualquer teoria conhecida. Lygia não se encaixa; ela funda uma prática sem com isso fundar uma nova teoria. É a prática, a experiência vivida que ganha estatuto de verdade. Sua veracidade é verificada no próprio ato da experiência.

Os objetos criados, muito simples e de utilização diferente no cotidiano, ganham vida e outros sentidos dentro desse ritual. Sua ação, sua intervenção está no nível do pré-verbal, do pré-individual, do mais primitivo em nós, muito anterior à linguagem. Ou seja, é na via dos afetos que ela realiza seu trabalho, criando com seus objetos formas múltiplas de provocar no outro afetações, produzir sensações, pequenas percepções, muitas vezes emprestando-lhe seu próprio corpo, em um contato direto com o corpo do cliente.

Lygia inventa uma clínica atravessada, senão constituída mesmo, pela estética. É pela estesia, pelas sensações e pelos afetos que ela conduz sua criação/terapia, não estando estas duas, em momento algum, separadas uma da outra. Cria, assim, sua ética de trabalho. Podemos dizer que se trata de uma prática que se fundamenta em um paradigma ético/estético de clínica como criação, encontro, devir, acontecimento, produção do novo, ruptura, desestabilização, quebra. É nesse sentido que esta artista se faz importante para o nosso trabalho, apresenta-se como inspiração e contribui para alimentar discussões sobre arte, clínica e produção de subjetividade.

Border Bordel e a performance dos afetos

O Border Bordel se inspirou na estética da Estruturação do Self, sem pretender obter com essa intervenção nenhum resultado terapêutico. Aventuramo-nos pela proposta da artista e construímos nossos próprios objetos relacionais para realizar nossa performance/intervenção/instalação/proposição/ritual/sessão/ação. Todas essas denominações são válidas para essa experiência.

Diante do caos nas ruas em tempos de manifestações, agressões e falta de entendimento, nosso Bordel era um convite à experiência afetiva, às pequenas percepções que pudessem surgir a partir de uma experiência estética, a aposta no devir “border” como estado de criação de “corpo-sem-órgãos”. Era também a realização do desejo coletivo por um fazer coletivo que não sucumbisse às dificuldades que enfrentávamos naquele momento. Trazer para um espaço de cuidado a arte que desperta, que perturba, que provoca estranhamento, que faz mover.

Criamos, primeiramente, nossos próprios “objetos relacionais” e os experimentamos em nossos corpos, investigando as sensações que eles produziam, nossas preferências e incômodos. Cada uma de nós pesquisou diversos materiais que foram, posteriormente, utilizados. Estes foram encontrados e recolhidos na natureza, comprados ou, ainda, confeccionados por nós mesmas. Cito alguns deles: almofadinha de olho (feita de feltro, areia e ervas aromáticas), pedaços de tule de diversas cores, lenços de pano, pedras de vários tamanhos, conchas pequenas e conchas grandes, mel, plástico bolha, luvas cirúrgicas com água morna dentro, bolinha de borracha (massagem ou petshop), pau de chuva, leque, almofada-peso (feltro e pedrinhas), saco de conchinhas (plástico e conchas), saco plástico cheio de ar, saco plástico com ar e pedra, tubo de plástico, bolsa de água quente, retalhos de feltros coloridos costurados (“tapetinhos”). Optamos por uma sensibilização com objetos que, em princípio, evocassem sensações de conforto, aconchego, suavidade, calma. Deixamos de lado objetos que pudessem sugerir sensações mais invasivas ou agressivas.

Realizamos essa versão do Border Bordel primeiramente na Mostra Angel Vianna, em julho de 2013. Foram três “sessões” na mesma noite, em que pudemos experimentar, em cada uma delas, diferentes percepções. Criamos um “ambiente” em uma das salas da faculdade, com diversas lâmpadas coloridas de baixa potência, o que deixava a sala com uma iluminação agradável e própria para o trabalho que queríamos desenvolver. Dispusemos nossos quatro tapetinhos sobre o chão, um ao lado do outro, e entre eles nossos objetos envoltos pelos tules coloridos, o que contribuía para a atmosfera de mistério. Tal atmosfera era, enfim, completada com nossa presença no ambiente: vestíamos preto (neutro), mas nossa maquiagem tinha sempre algo de estranho; só um olho pintado, um batom ou sombra exagerados, um desenho inusitado no rosto, apenas um lado do rosto pintado... Isso tudo ficava muito sutil diante da pouca luz, mas à medida que íamos recebendo os clientes do Bordel, nossos corpos e os detalhes iam ficando mais visíveis.

Construímos um ambiente em que era preciso um tempo para se acostumar com a luz, a música e habitar aquela atmosfera de mistério. Era nítida a diferença dos ambientes fora da sala e o construído para a intervenção. Era preciso, portanto, fazer a transição entre o fora e o dentro para adentrar de fato esse outro espaço e esse outro tempo.

Tínhamos um roteiro que deveria ser cumprido por nós em aproximadamente 15 minutos. Recebíamos os clientes que chegavam e íamos dispondo-os em roda, de mãos dadas conosco. Até então não havia música. Os sons que surgiam eram apenas os passos das pessoas e algumas falas, comentários, risinhos nervosos ou jocosos. Ninguém sabia o que aconteceria ali. Nós encarávamos os clientes com olhares sutilmente maliciosos, olhos nos olhos, mãos dadas com eles. Quando todos haviam entrado, nós, as “propositoras” (para usar o termo de Lygia), olhávamo-nos e borrávamos nosso batom com a mão. Em seguida circulávamos pelo espaço da roda, encarávamos algum cliente e perguntávamos a ele com um tom sedutor: “vamos deitar?”, puxando-o suavemente pela mão em direção a um tapetinho.

Enquanto quatro de nós faziam nossos clientes se deitarem, duas propositoras puxavam a roda que começava a girar, a partir de então, ao som de uma música instrumental das “danças circulares sagradas”. Elas propunham um passo bastante simples e o ritmo que deveria ser seguido por todos. A intervenção nos corpos deitados se iniciava com cada uma de nós utilizando – à nossa maneira e a partir de nossa pesquisa individual e coletiva – os objetos construídos. Começávamos com a almofadinha de olho, propondo que os olhos ficassem fechados e facilitando um relaxamento maior.

Nossa ação de colocar, tocar, esfregar, massagear os objetos sobre o corpo do “cliente” era bastante simples, mas exigia muita atenção e sensibilidade. Não conhecíamos muitas daquelas pessoas, não tínhamos com elas qualquer intimidade e, no entanto, precisávamos de sua confiança para realizar nossa proposta. Ao experimentar qualquer objeto no corpo de alguém, deveríamos atentar para as respostas que aquele corpo nos dava, como micromovimentos que poderiam revelar um estado de tensão ou de relaxamento, de prazer ou de desprazer.

Havia, portanto, a necessidade de uma escuta sensível, tanto daquele corpo agora inserido numa relação com o corpo da propositora – considerando que não falávamos nada enquanto trabalhávamos com os objetos – quanto do nosso próprio corpo: o que me motiva a utilizar este determinado objeto neste momento e nesta parte específica deste corpo? Como meu corpo responde a esse ato? Sinto vontade de continuar ou interromper? Sinto-me cansada ou revigorada? Como o corpo do outro responde ao meu toque, ao contato com determinado objeto, à intensidade que coloco nesse toque, à duração e à temperatura do objeto no corpo?

O corpo deitado ia se tornando, à medida que os objetos eram nele pousados, uma verdadeira instalação. Ele ia se transformando, aos poucos, em um suporte para a composição daqueles mais diversos objetos, que passavam a se relacionar entre si e com o corpo de maneira inusitada. Como em um ritual, quem estava em pé e, portanto, de olhos abertos, ia acompanhando a transformação daqueles corpos no chão, no centro da roda, enquanto sustentavam o espaço ritualístico em roda e com a dança ritmada. Já quem estava deitado de olhos fechados, nada vendo, podia ter seus outros sentidos aguçados. Tato, paladar e audição eram potencializados nas nossas ações. Sem a visão, o corpo poderia perceber melhor os objetos e criar com eles relações tanto concretas como imaginárias a partir do toque, dos sons que ouviam e do gosto que sentiam (com o mel pingado nos lábios).

Nosso objetivo era provocar nesse corpo sensações que o colocasse em um estado de maior abertura, proporcionando uma experiência estética pela via dos sentidos menos privilegiados no nosso cotidiano. Ou seja, uma vivência sensorial que despertasse o corpo a partir da construção de um campo afetivo que pudesse ativar os afetos, que tocasse o “corpo vibrátil” (ROLNIK 2002), em uma relação de troca cuidadosa e delicada. Tratava-se de proporcionar ao outro 15 minutos de um “fora” do cotidiano, como uma “sensibilização express” – fazendo alusão às massagens express que são oferecidas como alternativa aos que “não têm tempo” em vários espaços da cidade.

Para os que estavam na roda, apostamos que seus corpos em movimento ritmado, delimitando aquele espaço do ritual, pudessem também vivenciar uma experiência estética a partir da dança e do espetáculo visual que ia se criando sob seus olhos. Ao corpo do “espectador” era, também, oferecido estímulos como a música, o toque com as mãos dos outros que dançavam, o espaço com sua iluminação permanente e o ambiente que ia ganhando cores e movimento com os objetos sobre os corpos.

Os corpos deitados tornavam-se “esculturas” coloridas, vibráteis, corpos animados pelo contato com os objetos e com nossos corpos em um processo que era testemunhado pelos “espectadores-dançantes”. As “esculturas”, imóveis, nem por isso tinham uma experiência menos intensa, deixando-se manipular e servindo como suporte para a ação das propositoras.

Em um determinado momento da música, combinado previamente, começávamos a retirar os objetos do corpo dos clientes, diminuindo os estímulos sobre eles até que ficassem apenas deitados. A almofadinha que cobria os olhos deveria ser a última a ser retirada. Trazendo esse corpo de volta para aquele espaço (não importando qual tivesse sido a vivência de cada um), certificávamo-nos de que o “cliente” estava bem, o convidávamos a se levantar e nos inseríamos na roda de mãos dadas com ele, fazendo-o seguir o passo e o ritmo já instaurado. A roda se abria em uma das pontas e se dirigia para fora da sala, por onde os clientes deveriam sair. Não trocávamos palavra alguma, apenas olhares. A experiência finalizava quando todos os clientes haviam se retirado e nós fechávamos a porta do Bordel.

Além destas três sessões na mesma noite, também realizamos uma outra sessão em um espaço de meditação da cidade. Foram quatro experiências bastante diferentes entre si. Cada “cliente” respondia de uma determinada maneira às nossas “investidas” e aos objetos propostos e expressava com pequenos movimentos faciais e gemidos, ora prazer, conforto, ora certa repulsa. Alguns ao se deitarem demonstravam desconfiança e medo do que poderia lhes acontecer, apresentando o corpo rígido e pouco receptivo aos objetos e ao nosso toque; outros se entregavam rapidamente ao chão e às nossas intervenções e pareciam não mais querer sair dali; uns se conectavam mais explicitamente com a eroticidade sugerida pela performance e agiam a partir desse registro; outros se emocionavam ao ponto de irem às lágrimas e nos agradecer pela prática. Tudo isso criava, a cada sessão, um campo sensível prenhe de afetos, de trocas singulares e de novos sentidos.

Considerações Finais

O Border Bordel é uma intervenção pela delicadeza. Ao mesmo tempo em que é um convite à ruptura, a uma certa despersonalização, sabemos que não podemos desorganizar tanto assim os corpos que estão conosco por um curto espaço de tempo. Queremos produzir uma experiência potente, e não aterrorizadora; uma experiência que passe pelos sentidos (estética) e, por isso mesmo, uma vivência que desestabilize uma situação anterior, que provoque um estranhamento, que possa gerar algo novo. Mas, essencialmente, uma vivência atravessada pelo cuidado com o corpo do outro e com o nosso próprio. Sem, contudo, qualquer garantia de que a experiência seja agradável, prazerosa ou até mesmo próxima de uma produção de corpo-sem-órgãos – embora considerássemos estes, resultados desejáveis.

É uma forma de vivenciar a obra de arte como experiência em ato, em ação no tempo presente. O que nos interessou desde o princípio da formação do coletivo foi a possibilidade de encontro com o outro, com o corpo do outro, com outras subjetividades, com uma dimensão potente de coletivo. Encontros – muitas vezes “bons encontros” – que têm o poder de nos lançar em outros terrenos, nos encantar, surpreender, desafiar, nos tirar de nossa "zona de conforto" e com isso nos apresentar algo sempre mais interessante de nós mesmos.

O Border Bordel é uma proposta/proposição que visa a experiência sensível e a criação de “possíveis”. É nesse sentido que ela dialoga com a prática de Estruturação do Self de Lygia Clark. Performamos ao criar com o corpo do outro uma escultura a partir dos objetos, restaurando algo que está na base da obra de Lygia: o despertar pelo sensorial, a dimensão coletiva de muitas de suas proposições e a potência do encontro do corpo da artista com seus clientes nas sessões de Estruturação do Self.

É por isso também que chamamos o Border Bordel de “ritual” pela semelhança com algumas práticas xamânicas, práticas de cura. Nós, as propositoras, ocupamos um lugar de pajé, de xamã, de feiticeira, de bruxa, ou mesmo terapeuta. Afinal, é pela “magia” que os efeitos são produzidos, pelo investimento afetivo de cada um dos ali presentes, pela disponibilidade diferenciada de cada corpo, tornando o ritual mais fácil ou mais difícil de ser realizado.

Trata-se, no entanto, de um ritual profano, em que nos apropriamos, à nossa maneira, da obra dessa artista, disponibilizando-a ao uso comum, ao mesmo tempo em que lhe atribuímos novos significados, fazendo dela um uso novo. Pudemos, assim, tanto jogar, brincar e ressignificar a obra de Lygia, quanto fazer o mesmo com o lugar e os conceitos atribuídos às “entidades sagradas”, Arte e Clínica. Foi a partir desse jogo, dessa brincadeira com as práticas e os conceitos, da subversão dos lugares instituídos, que pudemos nos experimentar “fora do lugar”, plenas de questionamentos, habitando as indefinições, as multiplicidades, a intensidade.

Rumamos, desde o início, desde as primeiras propostas, na direção de criação de um corpo. Não de uma nova organicidade, mas de um “corpo vibrátil”, poético, aberto às intensidades, às pequenas percepções; que pudesse criar novas corporeidades, inventar memórias corporais, entendendo, com o poeta Manoel de Barros, que é a partir da invenção que se pode verificar a autenticidade de algo: “Tudo que não invento é falso” (BARROS, 1996), já dizia esse poeta. Em nosso percurso, teoria e prática informaram-se mutuamente em um diálogo constante, construindo pensamentos encarnados a partir de corpos atravessados por múltiplos afetos.

Podemos dizer que o Border Bordel é o que nossa “máquina desejante” produziu. Deleuze & Guattari entendem o inconsciente como uma “máquina desejante”, como um mecanismo que produz outros mecanismos, sendo o inconsciente um mecanismo do desejo. Diz Deleuze: “Desejar consiste no seguinte: fazer cortes, deixar correr alguns fluxos contrários, tirar amostras dos fluxos, cortar as correntes que estão ligadas aos fluxos”² (GUATTARI, 2009, p 53). Para estes autores, desejo está ligado à categoria de “produção” e, diferentemente da psicanálise, não se refere à falta. Deleuze diz, ainda: “O desejo não depende de uma falta, desejar não é estar com falta de alguma coisa, e o desejo não se refere à nenhuma lei; o desejo produz”³ (GUATTARI, 2009, p.54).

O desejo coletivo nos pôs em movimento. Seguimos esse fluxo desejante e, no meio do caminho, encontramo-nos com Lygia Clark. Com ela, pudemos produzir, criar nossa própria intervenção. Arte ou clínica? Parece que, enfim, essas fronteiras vão ficando cada vez mais indefinidas. Optamos por dar o nome de “sessão” a cada episódio em que realizávamos uma intervenção, a fim de explicitar mesmo a interface dessa proposta com a clínica – já que chamamos de “sessão” cada encontro em terapia – e os pontos que ambas possam ter em comum.

Arte e clínica são práticas subjetivadoras, ou seja, produzem subjetividade, uma vez que nos desterritorializam a partir de um encontro; encontro com um outro através de uma experiência estética. Ambas são experiências que passam pelo corpo, nos afetam, nos atravessam a partir de um campo sensível, gerando, com isso, um estado de turbulência e de maior abertura. Possuem, portanto, um grande potencial de nos desorganizar, por nos levar a experimentar o caos, esse estado de indefinição, de produção de “corpo-sem-órgãos”, produção de novos sentidos como acontecimentos (COSTA, 1996).

Arte e clínica também produzem “acontecimentos”. Pensar o Border Bordel como acontecimento é compreendê-lo desde uma possibilidade de abertura para um devir, para a construção de novos sentidos, o que irrompe, nos atravessa e ultrapassa, o inesperado. O acontecimento como “o começo de uma nova narrativa, de uma nova compreensão, de uma nova relação erótica e passional com o mundo”(4), diz Fernando Bárcena, escritor e filósofo espanhol (BÁRCENA, 2004, p.76).

Também os “happenings” (“acontecimentos”), práticas muito frequentes nas artes nos anos 60-70, traziam essa ideia no próprio nome. Eram um convite à criação de possíveis, de novos encontros, a possibilidade, enfim, de começar uma nova relação com o mundo. Não é justamente isso que fazem a arte e a clínica? Criar possibilidades de novas narrativas, ver o mundo de outra maneira, enfim, de devir outro?

Nossas intervenções, enquanto coletivo, apostaram na construção de linhas de fuga, seja nos ambientes próprios da clínica, seja naqueles destinados à arte, fazendo-os dialogarem, se confrontarem e mesmo se contaminarem. Um verdadeiro bordel.

 


NOTAS

(1) Ver o documentário “Lygia Clark, Memória do Corpo”, dirigido por Mário Carneiro (Rio de Janeiro, 1984).

(2) Na versão em inglês: “To desire consists of this: to make cuts, to let some contrary flows run, to take samplings of the flows, to cut the chains that are wedded to the flows”.

(3) Na versão em inglês: “Desire does not depend on a lack, to desire is not to be lacking something, desire does not refer to any law: desire produces”.

(4) No original: “(...) el comienzo de una nueva narrativa, de una nueva comprensión, de una nueva relación erótica y pasional con el mundo”.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.

BÁRCENA, Fernando. El delírio de las palabras. Ensayo para una poética del
comienzo. Barcelona: Herder Editorial, 2004.

BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996.

COSTA, Mauro Sá Rego. O corpo sem órgãos e o sentido como acontecimento. In:
SILVA, Ignácio A (org.). Corpo e sentido. A escuta do sensível. São Paulo: UNESP, 1996.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Como criar para si um corpo sem órgãos. In:
Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. v. III. São Paulo: Editora 34, 2008.

GIL, José. A imagem nua e as pequenas percepções. Lisboa: Relógio d´água, 1996.

GUATTARI, Felix. Chaosophy. Texts and interviews 1972-1977. Transl. David L
Sweet, Jarred Becker, Taylor Adkins. Los Angeles: Semiotexte, 2009. 53-68. 

ROLNIK, Suely. Subjetividade em obra. Lygia Clark, artista contemporânea. 2002.
Disponível em:
www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Subjemobra.pdf. Acesso em: 04 de novembro de 2013.

______. Afinal, o que há por trás da coisa corporal? 2005. Disponível em:
http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/coisacorporal.pdf. Acesso em: 04 de novembro de 2013.

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Recebido: 06/03/2015
Aceito: 20/03/2015
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