(A)NOTAÇÕES URBANAS

 

Karina Dias
Pós-doutorado em Poéticas Contemporâneas pela Universidade de Brasília (UnB), Doutorado em Artes e Master em Artes Plásticas e Aplicadas pela Université Paris I – Panthéon Sorbonne. Mestre em Poéticas Contemporâneas e Graduada em Licenciatura – Artes Plásticas pela Universidade de Brasília (UnB). Artista plástica e professora da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: karinadias.net@gmail.com.


Resumo
: (A)notações urbanas reflete sobre a experiência da paisagem na cidade em que se habita. Uma paisagem que se revela na medida em que inquirimos novos pontos de vista para experimentar a cidade que nos circunda de outra maneira. Desse lugar, estamos sempre na iminência de ver e não ver, de apreender ou deixar escapar o que se apresenta diante dos nossos olhos. Se pensarmos o cotidiano como um conjunto de percursos e situações que se repetem dia após dia, nos pressionando, nos impondo o peso de certa maneira de viver, a experiência da paisagem seria então a transmutação, a suspensão, o intervalo. Se o cotidiano nos atinge e nos aflige, nos aprisiona, a paisagem nos liberta, nos emancipa.
Palavras-chave: Paisagem. Cidade. Olhar.

____________________

NOTES URBAINES

Abstract: (A)notations urbaines est une réflexion sur l'expérience du paysage dans la ville où nous vivons. D’un paysage qui se révèle à mesure que l’on s’enquiert de nouveaux points de vue, pour expérimenter autrement la ville qui nous entoure. De cet endroit, nous sommes toujours sur le point de voir ou de ne pas voir, de saisir ou de laisser s’échapper ce qui se présente à nos yeux. Si nous pensons le quotidien comme un ensemble de parcours et de situations qui se répètent jour après jour, qui nous poussent, nous imposent le poids d'un certain mode de vie, l'expérience du paysage serait alors la transmutation, la suspension, l'intervalle. Si le quotidien nous atteint, nous afflige, nous emprisonne, le paysage, nous libère, nous émancipe.
Keywords: Paysage. Ville. Regard.


____________________

Olho a cidade... paisagem

Nesta “rua ensurdecedora que urrava em volta de mim”¹, ver o novo no conhecido é inquirir sempre novos pontos de vista para experimentar a cidade que nos circunda de outra maneira. Em um só tempo, conhecê-la intimamente, de perto, do seu interior, e ser capaz de tomar a distância necessária para olhá-la. Desse lugar, estamos sempre na iminência de ver e não ver, de apreender ou deixar escapar o que se apresenta diante dos nossos olhos.

Como nos lembra Michel Collot (1989), as coisas se dão somente em um horizonte, isto é, sob uma aparência e com uma configuração cambiantes que diferem de um ponto de vista e de um momento a outro e segundo uma relação que vai do determinado ao indeterminado.

Concebemos, assim, um mundo a partir do que vemos. Uma cidade-mundo que está lá e que parece nos dar a certeza de sua existência, nos convencendo de que de fato a olhamos. Mundo lá, exterior e disponível à apreensão de nossos sentidos. Para nos situar como observadores desse mundo, essa convicção imediata está repleta de ambivalências. Estar imerso na visibilidade não significa enxergá-la e estar em contato direto com ela, não significa percebê-la.

Se a rua lateja dentro e fora daquele que a percorre, seria possível regular as distâncias e as aproximações que nos fazem (re)ver ou não-ver a cidade? Somos observadores solitários em meio a espaços de superlativos. Dessa solitária experiência, nosso olhar seleciona, fragmenta o que nos envolve, capta e (re)ordena detalhes que compõem a nossa reserva de imagens vividas. Imagens que ecoam os elos estabelecidos com a cidade que nos envolve. O espaço designado pelos olhos daquele que contempla, compõe a paisagem, a sua paisagem.

A experiência da paisagem no cotidiano se forjaria, então, na junção de uma certa maneira de olhar e dos caminhos percorridos. Ela tomaria forma a partir de detalhes corriqueiros que por serem vistos e (re)vistos continuamente se tornariam invisíveis aos nossos olhos.

Sabemos que a paisagem é um ponto de vista, logo tributária de um certo modo de olhar. A maneira como cada um de nós percorre os espaços da cidade e os interpreta é singular. Medida do olhar que silencia o ruído, a paisagem tem a duração de um ponto de vista. Este, originário de um movimento da visão que inclui ver e não ver, que evoca o detalhe e não o panorama. Por não sermos onividentes, elegemos o que vemos ou o que desejamos ver. Nesse movimento, a paisagem urbana se configura como recorte e horizonte, como moldura do olhar e o que dela escapa para redesenhar o seu contorno.

Nesse processo que é o movimento do olhar, nós “sobrevoamos” o espaço que nos envolve, escrutamos os seus detalhes, muitas vezes, excessivamente banais. Nós os capturamos um após o outro, fragmento por fragmento, concebendo assim as paisagens vividas, a cidade imaginada. O movimento parece ser sempre o mesmo: circulamos ao largo, em um extenso panorama, ao mesmo tempo em que cerramos continuamente o nosso olhar – mirando, fitando as porções que nos afetam, estabelecendo uma relação de proximidade e intimidade. As paisagens se compõem, então, desses pontos de contato e desses pontos de vista, entrelaçados um após o outro.

Nesse ritmo do mundo que nos implica, estabelecemos as relações singulares que nos farão tomar partido, tomar o partido das coisas (PONGE, 1942), tornarmo-nos parte da cidade que nos cerca. Na impossibilidade de evitar que o visível nos escape, nosso olhar é desejoso e atesta que a cidade tem lugar, que a paisagem cria uma cartografia sempre cambiante, inacabada e em constituição.

Pela impotência de tudo ver, de ser onividente, nós enquadramos, recortamos, conquistamos o visível, criamos uma multiplicidade de pontos de vista que traduzem nossa maneira de estar no mundo. Wajcman (2004) sugere: a paisagem é o olho que avança, é o traçado do olho na espessura do mundo. Como então reconhecer as paisagens nesse caminho riscado, rasurado pelo olho, uma vez que o nosso olhar não é pan-óptico e não pode conter todo o excesso do visível? Não basta apenas enquadrar o mundo para que este seja singularizado como paisagem. Que movimento é esse que se instala em nós, observadores urbanos, para que compreendamos que, naquele instante, estamos diante de uma paisagem?

Parece que um dos elementos cruciais para que a paisagem apareça no cotidiano urbano é que o habitante encontre o élan, o impulso, a pulsão paisagística, aquela que o fará parar e olhar, mesmo que por breves instantes. Transformação fugaz de um observador, agora desejoso de ver, de ver in-comum, de experimentar a descontinuidade na continuidade.

O desafio aqui é reconhecer, nessas situações corriqueiras, a existência da paisagem. É saber que a paisagem é mais que o aspecto dos lugares, que ela vai além de uma simples olhadela, pois experimentá-la é deixar-se invadir por uma visão singular. É tomar a distância necessária do/no cotidiano.

Se pensarmos o cotidiano como um conjunto de percursos e situações que se repetem dia após dia, nos pressionando, nos impondo o peso de certa maneira de viver, a experiência da paisagem seria então a transmutação, a suspensão, o intervalo. Se o cotidiano nos atinge e nos aflige, nos aprisiona, a paisagem nos liberta, nos emancipa. No momento em que nos deslocamos cotidianamente pela cidade, vamos tomando posse dos instantes que se revelam singulares e uma paisagem vai sendo construída. Instantes quase sempre efêmeros, mas que, capturados, parecem se perenizar. Tecemos uma paisagem em uma tentativa de articular o espaço do cotidiano a seus detalhes fugidios, aqueles que quase sempre escapam à nossa percepção rotineira.

Assim, no momento em que olhamos a cidade como paisagem todo o corpo é solicitado, estamos enraizados no lugar onde estamos, ancorados, engajados em uma relação com o espaço que nos envolve. “Aqui estou, estou aqui neste lugar, nesta intersecção geográfica, aqui estou, eu penso sobre o estar aqui”².

Essa sensação de pertencimento ao espaço dá margem para que nos lancemos em outras direções, vendo o que antes não víamos. Não somos passivos diante da horizontalidade da paisagem e não somos apenas espectadores que contemplam, à distância, o mundo exterior. Nesse enlaçamento com o espaço, nos tornamos “inventores” de paisagem, “construtores” de um lugar.

Nessa justa aliança que une o lado objetivo daquilo que vemos com o lado subjetivo, íntimo a cada um de nós, a cidade se revela como paisagem. Uma paisagem que emerge da experiência sensível do espaço. Mais que um simples ponto de vista óptico, é ponto de vista e ponto de contato, pois nos aproxima distintamente do espaço, porque cria um elo singular nos entrelaçando aos lugares que nos interpelam. Neste momento, sentimos o mundo, sentimo-nos no mundo, desvelamos a imagem de um mundo vivido.

A cidade pulsa, convoca, solicita a nossa presença. Talvez devamos buscar aí, no excesso de apelos sensoriais, as situações que revelarão novas relações entre o observador e seu espaço, que farão com que o tempo da rotina repentinamente cesse, oferecendo, enfim, paragem para a contemplação. “De que forma então, apontar o sopro que abala o espírito quando chega a paisagem? Sua força se faz sentir pelo fato de interromper as narrações. Em vez de contar, apresentar...a narração faz correr o tempo, a paisagem o suspende.” (PEIXOTO, 1996, p. 31).

Portanto, conceber uma paisagem é vislumbrar uma nova configuração do espaço de sempre. Nesse contorno imprevisível e efêmero, reportamo-nos sem cessar a nossos mundos internos e ao que concretamente nos envolve. Anne Cauquelin nos lembra “que fabricamos a paisagem, usamos ferramentas, enquadramos, colocamos a distância, utilizamos todos os recursos da linguagem” (CAUQUELIN, 1989, contra-capa).Na realidade, continua a autora, trata-se de aperfeiçoar a conveniência de um modelo cultural com o conteúdo singular de uma percepção.

Experimentar, então, a paisagem cotidiana é encontrar em permanência novos pontos de vista e de contato, novos elos que nos aproximam dos espaços de todos os dias. Seria, como escreve Proust, ter outros olhos para ver, lá, onde acreditamos ter tudo visto: “[...] o único banho de rejuvenescimento não seria dirigir-se a novas paisagens, mas ter outros olhos [...]” (PROUST, 1954, p. 258). Outros olhos que nos levem a (des)conhecer a cidade de todos os dias.

(A)notações finais

(A)notar a cidade é compreender que os olhos tracejam a sua paisagem, imprimindo espessura nos espaços que só conhecemos de passagem. Nestes instantes em que transformamos o muro em nuvem, entendemos que temos o horizonte no olhar, que a cidade é imensidão. Nessa paisagem cotidiana e estrangeira, criamos os elos que nos farão (re)ver os caminhos da rotina e da repetição.

Evocar a paisagem urbana é entrever, nos espaços do cotidiano, as situações e os momentos em que o próximo, familiar, burocratizado, contínuo e rotineiro espaço se torna visível, percebido e compreendido como uma experiência paisagística singular. Munidos pelo desejo de ver, nos engajamos a esse espaço, criamos laços, (re)configuramos distâncias, (re)desenhamos as fronteiras da cidade vivida.

À evidência, explorar, no cotidiano, aquilo que se apresenta diretamente aos nossos olhos é entrever , no espaço de sempre, outra cartografia. Talvez, seja esse o paradoxo dos espaços familiares: serem íntimos e estranhos; próximos e distantes; capazes de, com o simples e o banal, causar espanto; serem ordinários e extraordinários, transformando-se, assim, nessas paisagens “que são também a minha morada” (JACCOTTET, 1976, p. 9).

Podemos imaginar que com esta relação, (re)visitaríamos a cidade de todos os dias, fazendo aparecer as cidades invisíveis³. Cidades inesperadas que parecem estar sempre à espera que seus caminhos sejam percorridos, que suas bifurcações sejam traçadas, que seus desvios sejam encontrados. Essa cidade, que escapa aos olhos adormecidos, origina-se de um olhar enviesado, de uma forma (in)comum de ver. Desse lugar cambiante, em meio às coisas do mundo, a cidade se eleva diante dos nossos olhos, nos confirmando que, a todo instante, somos atravessados pelo banal que nos olha.

 


NOTAS:

(1)Em referência ao poema A une passante de Charles Baudelaire in Oeuvres completes, tomo I. Paris: Gallimard, Bibliothèque de La Pléiade, 1975, p.92/93.

(2)Notas pessoais tomadas na conferência de Jean-Luc Nancy realizada no âmbito do Seminário Interfaces – artes plásticas e estética, organizado por Marc Jimenez e Richard Comte. Panthéon-Sorbonne em 06/04/2005.

(3)Em referência a obra de Italo Calvino intitulada Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.


REFERÊNCIAS

CAUQUELIN, Anne. L’invention du paysage. Paris: PUF, 1989.

COLLOT, Michel. La poesie moderne et la structure d’horizon. Paris: PUF, 1989.
DIAS, Karina. Entre visão e invisão: paisagem (por uma experiência da paisagem no cotidiano). Brasília : Ed. Programa de Pós-graduação em Arte, 2010.

JACCOTTET, Philippe. Paysages avec figures absentes. Paysages avec figures absentes. Paris: Gallimard, 1976.

PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens Urbanas. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 1996.

PONGE, Francis. Le parti pris des choses. Paris: Poésie/Gallimard, 1942.

PROUST, Marcel. La Prisonnière (1923). Paris: Gallimard, 1954.

WAJCMAN, Gérard. Fenêtre chronique du regard et de l’intime. Lagrasse: Editions Du Verdier, 2004.

________________________________________________________________________________

Recebido: 26/11/2014.
Aceito: 12/03/2015.
________________________________________________________________________________

| ©2015 - Polêm!ca - LABORE | Contato (@) | <-- VOLTAR |