Um Espaço Facilitador da Descoberta Criativa em Crianças Vivendo em Zona de Risco
Maria Inês Garcia de Freitas Bittencourt
Doutora em Psicologia Clínica; Professora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio; Pesquisadora do LIPIS E mail: mines@puc-rio.br
Luciana Ceglia Ferreira
Graduandado Departamento de Psicologia da PUC-Rio; Bolsista de Iniciação Científica do CNPq / PIBIC. E mail: lucianaceglia@gmail.com
Resumo:
Neste artigo é apresentado um estudo das relações entre as provisões ambientais e o desenvolvimento da capacidade de brincar, pensar e criar, realizado em oficinas de leitura e criação de histórias no espaço de uma Biblioteca pública, com crianças vivendo em uma área de risco. Com base na teoria do amadurecimento de Winnicott e nas contribuições de Walter Benjamin sobre a função do narrador,destaca-se a importância de condições facilitadoras que incentivem a produção de brincadeiras e narrativas, como fator de promoção de um crescimento saudável.
Palavras-chave: Provisões ambientais, Brincadeira, Narratividade, Amadurecimento psíquico.
Abstract: In this article is presented a study on the role ofenvironmental provisionsin developing theability toplay, thinkand create. A survey was conducted in the context of workshopsonreading and creatingstoriesin a public Library, with children living in a risk area. Based on Winnicott´s theory of maturation and the contributions of Walter Benjamin about the role of narrators, the study highlightsthe importance of enabling conditions that encourage the production of games and narratives, as a factor in promoting healthy growth.
Keywords: Environmental provisions, Playing, Narrativity, Psychological growing
INTRODUÇÃO
Neste artigo é apresentado um estudo das relações entre as provisões ambientais e o desenvolvimento da capacidade de brincar, pensar e criar, realizado em oficinas de leitura e criação de histórias nos espaços de uma Biblioteca pública, contando com a presença das crianças locais.
A vida das crianças nas camadas mais pobres das sociedades urbanas contemporâneas é marcada pela extrema violência que nasce de um conjunto decorrentes dadesigualdade econômica e social, em contraste com os incessantes estímulos ao consumo veiculados pela mídia, à qual hoje todas têm acesso. Neste contexto, tomou-se como foco a construção de subjetividade numa realidade cultural que levanta múltiplas questões relacionadas com estas novas configurações e suas repercussões nas crianças marcadas pela falta de condições propícias a um desenvolvimento saudável. Os encontros destas crianças com a família ou outras crianças em espaços “favoráveis”, capazes de promover uma convivência construtiva dos pontos de vista afetivo e cognitivo, sofrem frequentemente com a “falta de oportunidades” para acontecer. São poucas as ocasiões de passeios, leituras compartilhadas, conversas, até mesmo brincadeiras. Essas crianças por outro lado se mostram tão capturadas pelas práticas de consumo quanto aquelas de poder aquisitivo mais alto. Sonham com videogames e outros brinquedos caros, sem conhecer a possibilidade de realmente brincar, necessidade básica, fomentadora da criatividade.
Situada no meio de um conjunto de 16 favelas da zona norte do Rio de Janeiro dominadas pela violência, a Biblioteca contrasta com seu entorno, sendo um projeto público instigador de experiências lúdicas e narrativas. Com uma área de 2.3 mil metros quadrados, constitui um espaço cultural e de convivência. Tem como objetivo atuar como instrumento de educação e formação de cidadania, com a proposta de “promover transformações através da reflexão, da criação e da alegria”.
Desta maneira, o presente trabalho destaca a importância de um espaço favorável para a produção de brincadeiras e narrativas, reconhecidas por autores das mais diversas áreas do conhecimento como fator de promoção de um crescimento saudável. Narrativas ensinam e estimulam à criança a dar significado às experiências e a contar sua própria história, mas para isso são necessárias condições facilitadoras que incentivem as experiências na dimensão simbólica e favoreçam também uma adaptação criativa à vida no mundo real.
O conceito de Experiência cultural
O conceito deExperiência cultural foi proposto por D. W. Winnicott ([1967], 1975), e articula-se como brincar, a criatividade e os atos produtivos do sujeito sobre o mundo circundante.
Winnicott ( 1975) explica algumas de suas teses relativas à localização da experiência cultural: esta experiência se realiza no espaço potencial existente entre o indivíduo e o meio ambiente, ocupado no início da vida pela brincadeira, e que com o passar do tempo é substituída pela experiência cultural, ou seja: a possibilidade de um sujeito aproveitar aquilo que é fornecido pela cultura para realizar uma produção criativa, beneficiando a si mesmo e ao ambiente. A arte, a experiência religiosa e a ciência são exemplos da experiência cultural.
Para explicar a origem da experiência cultural, o autor remonta às primeiras relações mãe-bebê (Winnicott, [1958], 1975) quando o bebê ainda “não existe”, sendo apenas uma continuação de sua mãe. Uma mãe suficientemente boa é aquela que está inteiramente sintonizada com as necessidades de seu bebê e promove nele a ilusão de ser o criador dos objetos de seu mundo. O holding (segurar) e o handling (cuidados corporais) são condições que permitem a integração, a personalização do bebê e a possibilidade de identificar o objeto. A estas funções acrescenta-se ainda a função espelho (o olhar de reconhecimento) .
A sensação de onipotência experimentada pelo bebê no início de sua vida é essencial para a futura constituição de um viver criativo, já que é a partir destas primeiras experiências favoráveis que irá se instaurar no bebê o sentimento de confiança básica. Um bebê seguro será capaz de suportar a ausência de sua mãe, por períodos cada vez maiores com o passar do tempo. Da capacidade de suportar o vazio da ausência da mãe surgirá a criação de um objeto transicional,a primeira possessão não-eu do bebê. Estepode ser qualquer objeto que esteja investido do afeto materno, para preencher o vazio que se instaura no momento da separação da mãe. Este objeto constitui um símbolo da união entre mãe e bebê, encontrando-se no chamado espaço potencial, que mais tarde será ocupado pela brincadeira e posteriormente pela experiência cultural.
O espaço potencial é apresentado como uma terceira área da existência humana, contrastada com a realidade psíquica (ou mundo interno) e com o mundo real em que o indivíduo vive (ou mundo externo). Trata-se de um espaço de criação. O que irá definir a forma de utilização desse espaço são as experiências de vida que se efetuam nos estádios primitivos da existência, sendo, portanto, altamente variável de indivíduo para indivíduo. Ou seja, se a mãe for capaz de proporcionar ao bebê uma experiência favorável, todo e qualquer pormenor de sua vida constituirá um exemplo do viver criativo. Se a criança não receber esta oportunidade, então não existirá área em que possa brincar, ou ter experiência cultural, disso decorrendo que não existirão vínculos com a herança cultural, nem contribuição para o fundo cultural.
A importância da função de espelho
Embora a possibilidade de dar sentido a uma existência possa desenvolver-se nos mais diversos contextos e das mais variadas formas, sempre será importante a existência de um “espelho integrador do ser”, que de acordo com Winnicott (1967 /1975), integra e interação da criança, não apenas com a mãe, mas com o meio social como um todo, capaz de fornecer provisões (o olhar de aceitação e incentivo) que conferem valor à existência, em seus diferentes momentos de desenvolvimento. Vale lembrar, entretanto, que os espelhos tanto podem ser integradores quanto desintegradores, visto que da mesma forma que o grupo social pode oferecer recursos construtivos, pode também promover experiências cruéis e desintegradoras.
Carlos Doin (1989) resume conceitos relacionados aos processos de comunicação e percepçãoassim como diversos conceitos psicanalíticos, entre os quais o de narcisismo, que parecem especialmente relevante para este trabalho.
De acordo com Doin (1989:148 ): "a função especular destina-se ao conhecimento de si mesmo, à aquisição e consolidação da identidade e à integração mental, por intermédio de outra pessoa".
Doin baseia-se nos pontos de vista teóricos segundo os quais o ser humano nasceria com "pré-concepções" de eu e não-eu, que tenderiam a transformar-se em concepções diferenciadas e integradas, no contato com percepções, através dos relacionamentos pessoais, a partir da relação primária com a mãe. A contribuição de Doin refere-se à categorização da função especular como primária-integradora/não integradora (que ocorre no início da vida), e secundária reintegradora/desintegradora .
Por meio da função especular humana integradora primária, posta a serviço da integração somato-psíquica e do narcisismo normal, o bebê inicialmente se identifica e aprende a se reconhecer na sua imagem projetada na mãe e refletida por ela; de forma lenta e oscilante a criança desenvolve a auto-percepção e auto-estima, autenticando o que é "eu"ou self – processo de relação objetal em que ambos são ativos.
Ao longo da vida a função integradora, diz Doin (1985:14) "exige condições de afeto, compreensão e autenticidade, para quepossa cumprir-se o preceito délfico: Conhece-te a ti mesmo".
Winnicott (1975:155-157) marca as repercussões da função especular na vida do indivíduo: Quando olho, sou visto; logo existo. Posso agora me permitir olhar e ver. Olho agora criativamente e sofro a minha apercepção e também percebo. Na verdade protejo-me de não ver o que ali não está para ser visto.
A partir da vivência ilusória da fusão com a mãe-espelhoa criança vai aos poucos perceber as diferenças que demarcam a representação do seu eu em confronto com a representação da mãe, para gradativamente aceder a formas mais evoluídas do narcisismo e à função integradora secundária. Esta se realiza ao longo de toda a vidapor meio de todos os níveis da comunicação humana, nos encontros com outros diferenciados que, reconhecendo e respeitando as características individuais, organizam e refletem uma imagem razoavelmente fiel da pessoa , que com ela se identifica .
A função especular não-integradora, ao contrário, não realiza os propósitos do narcisismo normal na relação com a mãe (aquisição de vivências definidas de individualidade, vitalidade e continuidade), e tende a deixar um saldo crônico de insatisfações e angústias narcísicas de aniquilamento, desvitalização e autoestima reduzida.
Winnicott ([1960], 1990) postula que as falhas na função especular impedem que o indivíduo reconheça na realidade externa aspectos seus, que permanecemdesconhecidos ou accessíveis apenas em uma vida secreta interior e irreal. Indivíduos nesta situação irão, portanto, crescer sentindo dificuldades em relação ao que os espelhos têm a oferecer:se o espelho materno não foi capaz de refletir o amorcontínuo, então o espelho será apenas algo a ser "olhado" numa expectativa angustiada de perceber a beleza cindida do eu e projetada, em vez de "examinado",no sentido sugerido por Doin de integrar, confirmar ou reabilitar a identidade pessoal.
Logo, fica evidente a importância de se oferecer às crianças tendo sofrido privações ambientais oportunidades de aprenderem sobre outras formas de apropriação do mundo e de si mesmas, e nesse sentido, a função da brincadeira mostra-se fundamental.
Brincar e narrar: funções essenciais para o amdurecimento
De acordo comWinnicott (1975), podemos considerar que a brincadeira é a principal via para a construção dos esquemas de relação com o mundo na infância, por meio da recriação simbólica, sendo papel dos “espelhos integradores” que fazem parte do universo infantil (escola, família, etc.) a promoção de condições para que a criança possa brincar.
Às contribuições de Winnicott acrescentamos também a contribuição de Walter Benjamin([1936], 1996) relativa à função do narrador, que resumimos a seguir:
Segundo Benjamin, são cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores, e durante muitos séculos constituiu uma importante ferramenta social de transmissão de valores e conhecimentos. Os narradores tradicionais eram pessoas capazes de estimular os ouvintes a incorporar as narrativas comuns ao grupo social, dando significados pessoais ao conhecimento compartilhado. Benjamin afirma que se “ dar conselhos” parece hoje algo de antiquado,é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis.No entanto, o autor afirma que “ aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada. Para obter essa sugestão,é necessário primeiro saber narrar a história”.(1996, pg 200)
O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria existência ou a que érelatada pelos outros; incorpora as narrativas à experiência dos seus ouvintes.
Hoje, ainda segundo a visão precursora de Benjamin (1996,pg 203), “quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Inversamente, metade da arte narrativa está em evitar explicações”. Em contraste, nas narrativas tradicionais, o extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação.
Quanto maior a naturalidade com que o narrador confere uma dimensão universal a sua narrativa, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará á sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá á inclinação de recontá-la um dia.
Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo.
A relação ingênua entre o ouvinte e o narrador é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado. Para o ouvinte imparcial, o importante é assegurar a possibilidade da reprodução.
Inspirado em Walter Benjamin, Gilberto Safra (2006) é um autor contemporâneo que reforça do ponto de vista da Psicanálise a importância da função da narrativa como modo de lidar com o desenraizamento tão frequentemente sentido pelos sujeitos contemporâneos, que perdem suas referencias históricasSegundo Safra, a narrativa possibilita o contato com a própria experiência.
Outro autor que traz significativas contribuições para a nossa compreensão da função da narração é Mikhail Bakhtin (2010), que propõe o conceito de dialogismo: a realidade fundamental da linguagem é a interação: toda enunciação é um diálogo com os enunciados que a antecederam e com os que lhe sucederão. Assim, compreender a enunciação de outra pessoa implica uma orientação específica do ouvinte em relação a ela. A cada palavra do outro, fazemos corresponder palavras nossa, numa réplica. O sentido é construído nesta compreensão ativa e responsiva. Há um aspecto criativo nessa construção.
Metodologia
O estudo realizado fundamentou-se em observações, realizadas durante diversas idas à Biblioteca no períodoum ano. Entre os diversos projetos desenvolvidos no local, chamou nossa atenção uma proposta destinada a incentivar a interação colaborativa e a descoberta criativa do público jovem, em um espaço dinâmico, flexível, acolhedor e integrado à comunidade local. Proporciona um espaço lúdico e dinâmico e estimula o público infanto-juvenil a ser autor das suas próprias histórias. O projeto conta com a participação de voluntários e monitores para auxiliar as oficinas. As dinâmicas incentivam formas criativas de reapropriação das novas mídias e, através de mecanismos de engenharia reversa, buscam atrair os jovens à criação literária nas mídias tradicionais.
Observação de sessões de narração de histórias por um adulto, e da produção das crianças a partir desta interação.
As observações realizadas focaram-se nas interações entre as crianças e diversos autores de histórias infantis, convidados para apresentar suas obras. Após as apresentações, ou até mesmo durantes as mesmas, as crianças, que se mostravam inicialmente muito inibidas, eram estimuladas a criarem suas próprias histórias, verbalmente, por meio de desenhos ou utilizando a tecnologia digital para transformar as produções gráficas em histórias em quadrinhos. Trabalhavam individualmente ou em grupos, segundo sua escolha. As duas vinhetas abaixoilustram a dinâmica das oficinas.
“Brasil, EUA, Japão”
Nesta oficina participaram oitomeninos entre 8 e 12 anos , que concordaram em trabalhar em grupo. Outras criançasquiseram ficar por perto desenhando ou observando as atividades.
O visitante especial do dia,recém-chegado dos Estados Unidos, foi a grande atração. Os meninos ficaram entusiasmados por conhecer um Americano em carne e osso e a oficina tornou-se uma aula de língua estrangeira já queJ., americano e de descendência japonês, fala também português..
L , um menino de 11, anos ficou abismado com a distância entre o Rio de Janeiro e o Colorado assim que J mostrou a localização desses Estados no Globo Terrestre. Também por causa da distância entre o Japão e o Brasil, as crianças descobriram que existe um fuso horário de quase doze horas entre os dois países e fizemos contas matemáticas para descobrir o equivalente de diversos horários aqui e lá. Um dos monitores da oficina explicou também que o Oceano que avistamos do Brasil – e das praias do Rio – é o Oceano Atlântico, enquanto que o que fica do outro lado da América do Sul, separando o nosso continente do Japão é o Pacifico.
Foi uma grande descoberta também constatar que o México fica na América do Norte e L., de 11 anos, perguntou a uma das integrantes do grupo se sabia falarespanhol, e ainda: “Tia, como se diz: feijão, macarrão, arroz, e batata fritam em espanhol?”. Como eles acharam “Hola, ¿Cómoestás?” muito parecido com o equivalente em português, foi explicado que mesmo quando duas línguas são parecidas nem sempre a tradução está correta. Para exemplificar foram contadas duas histórias, comprovando essa aproximação lingüística que podem causar algumas confusões engraçadas, que aconteceram de verdade. A partir dahistória de J., neto de imigrantes japoneses que cresceu “americano”, os meninos quiseram relacionar o Japão, os Estados Unidos e o Brasil. Rapidamente todos começaram a desenhar as bandeiras nacionais dos três países e quiseram aprender a contar até dez em japonês e inglês.
Oficina “D”
A Oficina de Quadrinhos do Projeto MM recebeu a visita de D. , um ilustrador de livros, para que ele contasse sua história para as crianças, dando continuidade à proposta de uma história ser contada antes que as crianças produzam suas próprias histórias.
Para iniciar a “contação de história”, que tinha como tema sua vida e carreira, D .apresentou às crianças as ilustrações originais usadas para um livro e algumas de suas animações enquanto explicava as técnicas que costuma usar para realizar seus trabalhos. As crianças ficaram fascinadas com o tamanho dos desenhos e com a idéia de se fazer trabalhos utilizando bico de pena e nanquim, materiais que muitos não conheciam.
D. então contou as origens dos contos narrados pelos irmãos Grimm, explicando-lhes que os contos tinham como função maior amedrontar as crianças para que estas se comportassem. A partir daí, travou-se um intenso diálogo sobre contos assustadores e as histórias que cada um deles mais temia enquanto ele mostrava as ilustrações de cada história no livro na medida em que as crianças as iam contando. Ademais, tentou-se definir o que o termo “recontar” significa. Uma menina de 10 anos, R., rapidamente, desenvolveu sua própria estória – de uma a princesa que encontra o príncipe no shopping – o que serviu para mostrar àsoutras crianças o que o termo poderia significar.
As crianças ficaram extasiadas com a presença de D, e quando questionadas se havia alguém na família delas que desenhe/gosta de desenhar, o menino Y., de 9 anos, disse que adora desenhar e contou a história de um tio seu que havia arrancado a pena de um passarinho para que pudesse fazer um desenho.
Todos pediram que D lhes fizesse um desenho, e após receberem os seus, V, de 8 anos e Y, 9 anos, usaram papéis em branco para reproduzir os trabalhos recebidos . Embora a silhueta usada fosse a dos lobos desenhados por D, ambos se preocuparam em utilizar outras cores para que seus desenhos pudessem ser diferenciados. As outras crianças retornaram, então, à criação e produção de suas próprias histórias e desenhos.
Análise das observações
A partir da observação pudemos estabelecer duas grandes categorias de análisedo espaço facilitador, com base nas teorias apresentadas acima.
1. Presença participante dos diversos narradores: olhar integrador
Nas sessões percebemos o como foi fundamental a adequação ao que as crianças necessitavam para que elas conseguissem se soltar para criarem suas próprias histórias; precisavam brotar. Muitos chegaram nas primeiras oficinas dizendo que não sabiam fazer histórias, que era algo muito difícil de realizar. Contudo,na medida em que o tempo passava elas foram falando, dando idéias, comentando sobre o que talvez pudesse acontecer nas histórias. Os narradores impulsionavam e incluíam muito as crianças no momento da narração, perguntavam por exemplo se elas conheciam o lugar onde estava se passando a história; se sabiam ou já tinham visto o objeto presente na narrativa; se gostavam ou não de determinadas coisas. Buscavam inserir os participantes que ficavam interessados e incluídos naquele momento, assim, a participação era bastante ativa.
2. Incentivo a que as historias continuem sendo contadas
Sendo assim, muitos ficavam empolgados com o que havia repercutido no primeiro momento e sentiam-se animados para eles mesmos tentarem colocar em prática tudo o que haviam escutado e visualizado. Desta maneira, muitas crianças em variadas sessões passaram do “não sei” para a iniciativa de contaruma história. Aqueles que falavam que não sabiam criar, que nunca iriam conseguir fazer uma história, estavam agora resolvidos a escrever sua própria história.
Assim, S., de 10 anos, depois de afirmar que “não sabia contar história”, em só um diafez sete páginas de um relato em desenhos e pediu para grampear suas páginas com três grampos para parecer um livro.
As crianças ainda se tornavam mais soltas quando não usavam somente seus desenhos, mas também outras técnicas disponíveis na oficina:a webcam para tirar e baixar fotos, ou desenhar no computador com imagens e fotos “prontas”.. Sentiam-se com essas técnicas mais confiantes para introduzir outras idéias, quando então eram encorajadas a produzirem suas próprias imagens.
Alguns iam mais além, buscando uma inspiração na realidade externa. Assim . R., uma menina de 10 anos, usou como inspiraçãoo Shopping Center e recriou a história da Cinderela em que o príncipe e a princesa se encontravam numa loja quando ela deixava seu cartão de crédito cair no chão e o príncipe o devolvia.
Em uma das sessões foram abordados os medos, um sentimento bastante presente em histórias. A menina A, de 9 amos se inspirou na história que sua família conta sobre os medos do seu irmão mais velho. Desta maneira,trouxe suas experiências para uma criação recontada, que foi ilustrada com seus desenhos.
Finalizando com algumas falas das crianças indicando o efeito incentivador das experiências de troca com os narradores:
“Mas a gente pode levar as histórias pra casa?”
-“Nós vamos poder publicar nossas histórias?”
- “Mas por que não tem oficina todo dia?”
-“Eu não sabia que criar histórias poderia ser tão fácil.”
-"Eu quero poder me inspirar no que está lá fora."
Considerações finais
Gradativamente, constatamos um desenvolvimento da autoconfiança e da capacidade de produzir narrativas usando diversas linguagens (verbal, desenho, imagens gráficas). Além disso, percebemos o desenvolvimento da solidariedade e cooperação no grupo, que demonstrou solicitação e colaboração. A cada semana os monitores avaliavam os sucessos e fracassos nas oficinas, registrando as questões apresentadas, os sujeitos presentes e tentando sempre achar melhores soluções para minimizar problemas. Mesmo assim, dependendo da química do grupo ou de problemas técnicos, às vezesfracassos foram inevitáveis. Muitas das crianças são muito carentes, não têm limites e é um trabalho árduo lidar com as muitas demandas e dificuldades. Portanto, algumas oficinas são mais fáceis do que outras independente do tamanho do grupo. Contudo, presenciamos muita curiosidade, interesse e desejo de aprender (ex: inglês, geografia) e constatamos uma relação entre as atividades propostas e uma notável descoberta criativa.
Nas sessões houve ainda um desenvolvimento gradativo do companheirismo dos participantes. Os que já sabiam utilizar bem as máquinas, ou já possuíam habilidades no desenvolvimento das histórias auxiliavam os colegas com muita exatidão; A maioria das crianças se mostrou muito solícita, ajudando umas as outras.
Houve em uma sessão que J., uma menina de 10 anos, deu a idéia de cada um fazer um pedaço de história (inspirada na canção “aquarela”), e depois juntar tudo. Nesse dia, J. ficou repetindo várias vezes (com surpresa e alegria) o quanto estava “entretida” e focada. Sua iniciativa foi de grande estímulo para ela e seus companheiros. Após a sugestão de J., foi notável como as crianças trabalharam em esquema de produção colaborativa.
Assim, os comportamentos observados sugerem uma estreita relação entre os incentivos e o acolhimento do ambiente, por um lado,e as conquistas observadas nos participantes no plano do desenvolvimento da criatividade e da solidariedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, M (2010) Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes
BENJAMIN, W ([1936], 1996) O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras escolhidas de Walter Benjamin, vol. 1 São Paulo, Brasiliense
BITTENCOURT, M.I. Sobre o movimento criativo: espaço e brincadeira no atendimento de crianças em instituição. In: Vilhena, J. (Org.). A clínica na universidade: teoria e prática (p.141-151). São Paulo: Edições Loyola, 2004.
DOIN, C (1989) Espelho e pessoa. In: J. Mello Filho, O ser e o viver. Porto Alegre, Artes Médicas. Pgs 147-173
SAFRA, G (2006)O narrar. In: G. Safra, Desvelando a memoria do humano. São Paulo, Ed. Sobornost. Pgs 21-33
WINNICOTT, D. W. ([1951]1975) Objetos transicionais e fenômenos transicionais. . In: D W Winnicott, O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago. Pgs13-44
-------------------------.( [ 1960], 1990)Distorção do ego em termos de verdadeiro e falso self. In D W Winnicott, O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre, Artes Medicas. Pgs128-139
-------------------------- (1975) O brincar: uma exposição teórica. In: D W Winnicott, O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago.Pgs 59-77
------------------------- (1975) A localização da experiência cultural. In: D W Winnicott, O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago. Pgs 133-1
-------------------------- ([1967],1975)O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento. In: D W Winnicott, O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago.
-------------------------- ([1969], 1975) O uso de um objeto. In: D W Winnicott, O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago.pgs121- 132
Recebido: 28/09/2014
Aceito: 03/11/2014