"ESQUEÇA A CASA E O TRABALHO/A VIDA FICA LÁ FORA": REFLEXÕES DE UMA PRÁTICA COMUNITÁRIA.

 

LURDES PEREZ OBERG
Doutora em Psicologia Clínica pela PUC/Rio. Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense. Tem interesse em pesquisas que articulam a clínica com outras áreas do saber e também na construção de projetos sociais em comunidades de baixa-renda. Publicação da tese de doutorado pela Ed. Biblioteca 24x7/SP em 2008: Do Rio das Vitrines à Galeria dos Desconhecidos: Um estudo em Psicologia Social Comunitária na localidade de Muzema. Membro do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Social, LIPIS, da PUC/Rio e do grupo de trabalho de História Social da Psicologia da ANPPEP.


Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar algumas reflexões de uma prática comunitária a partir de uma escuta esquizoanalítica. Através de propostas da esquizoanálise de entender o desejo articulado à produção social capitalista, busca-se uma valorização da potência dos sujeitos e problematiza-se uma relação dinâmica entre práticas comunitárias com os espaços institucionalizados. Apostamos numa postura inventiva da própria vida e entendemos as possibilidades de saídas subjetivas presentes em contextos sociais que impedem a emergência de novos olhares na sociedade contemporânea.
Palavras-chave: Prática comunitária. Esquizoanálise. Contemporaneidade.

“FORGET HOME AND WORK/LIFE IS OUTSIDE:
REFLECTION OF A COMMUNITY PRACTICE”

Abstract: The objective of this paper is to present some reflections of a community practice from a schizoanalitic listening. Through the schizoanalysis understand the desire articulated to capitalist social production proposals, we seek to an appreciation of the power of individuals and problematizes a dynamic relationship between community practices with the institutionalized spaces. We endorse a inventive approach of life itself and understand the possibilities of subjective outputs present in social contexts that prevent the emergence of new perspectives in contemporary society.
Keywords: Community practice. Schizoanalysis. Contemporaneity.

INTRODUÇÃO

...Nesses noventa minutos,
de emoção e alegria,
A vida fica lá fora,
E tudo? Fica lá fora...
(Milton Nascimento e Fernando Brant)

A intenção deste artigo é apresentar uma prática em psicologia comunitária a partir de uma escuta clínica esquizoanalítica, mostrando ainda, a possibilidade de uma discussão entre as ações comunitárias com os espaços institucionalizados.

A música de Milton Nascimento e Fernando Brant “Aqui é o país do futebol” ilustra algumas inquietações que desejamos compartilhar neste relato de experiência. Sem um olhar que estigmatiza e cerceia, o futebol é parte integrante da cultura brasileira. A forma como este atinge hoje inúmeras crianças e adolescentes precisa ser examinado com cautela.

Esta música expressa as vibrações dos afetos deste esporte coletivo, nesses noventa minutos de emoção e alegria e, compreendemos estes de forma próxima utilizada por Espinoza, como intensidades, encontros, não se confundindo com o que é vivido numa interioridade subjetiva. Afetos são forças que nos atravessam, ultrapassando a distinção entre sujeito e objeto, já que o homem se transforma numa outra coisa em virtude de uma fusão, de um entrelaçamento (DELEUZE apud PEREIRA, 2012).

Como entendemos nossos encontros com os sujeitos que trabalhamos nas intervenções psicossociais? Como lidamos com os afetos que envolvem estes encontros?

No trabalho comunitário, o alcance daquilo que “fica lá fora” requer compreensão da cultura local e de um manejo por parte dos profissionais de tudo aquilo que aprendemos com a luta antimanicomial. Se estamos numa instituição e desejamos alcançar a comunidade temos que nos despir do lugar de especialistas, das leituras universalizantes, do reducionismo cientificista e de uma imposição de demarcação de territórios de identidades formatadas por modos hegemônicos de vida.

A aliança da psicologia comunitária com a esquizoanálise tem permitido que se construa uma psicologia que age, que trabalha como desejo no campo social. Das histórias de vida, do grupo de mulheres, das caminhadas na comunidade, do grupo de crianças, do grupo de reflexão à escolinha de futebol. Nesta disposição ao inacabado, abrimos conexões e diálogos com os coordenadores do posto de saúde e também líderes comunitários. Os espaços para os movimentos dos afetos, para a experimentação e a invenção nestas diferentes práticas que temos desenvolvido, desde janeiro de 2002, nos fizeram apostar nas rupturas e nos cortes na trajetória biopolítica e numa aproximação coletiva na afirmação da vida.

Assim, apresentaremos ponderações sobre o nosso trabalho no grupo de reflexão com duas adolescentes no posto de saúde e, em um momento posterior, o encontro com as mesmas adolescentes na comunidade. Em ocasião ulterior, as mesmas ingressaram num trabalho realizado por um estagiário de psicologia, numa escolinha de futebol na quadra de lazer da comunidade. Lembramos, ainda, que estas duas adolescentes citadas foram participantes do grupo de leituras que realizávamos com as crianças em período anterior.

Este trabalho foi realizado em uma comunidade na zona oeste do Rio de Janeiro. Muzema é uma comunidade composta em sua maioria por moradores nordestinos e cariocas e suas ruelas podem expressar composições entre as origens indígenas de seu nome, a cultura nordestina e o clima urbano carioca.

No tocante às intervenções psicossociais na atualidade, há um consenso entre os profissionais de valorizarmos os saberes locais, potencializando a vida dos sujeitos. Por este motivo, a tentativa de uma aproximação com a esquizoanálise. No avesso do poder sobre a vida, optamos pelo poder da vida. Buscamos assim, ir além do conhecimento dominante, sem propor modelos teóricos herméticos ou verdades pré-concebidas e investimos na produção da vida, numa visão inventiva em que outras formas de conhecimento como a arte, a literatura, a música e o saber popular devem ser resgatadas para outro plano, quando não capturadas pelas forças do poder do capitalismo.

Podemos considerar a psicologia comunitária como um acontecimento que emerge no contexto brasileiro, num cenário de crítica às formas cristalizadas de poder em que estávamos inseridos em diversas esferas da vida cotidiana e que esta posição implícita na sua constituição, acolhe novos maneiras de viver em nossa cidade. Segundo Barros (2009):

o acontecimento traz o sentido de ruptura e que irrompe uma sucessão de fatos. Ele é datado, localizado, mas a fratura que ele produz pode se irradiar e encontrar ressonância em uma multiplicidade de outros acontecimentos invisíveis, que esperavam a invenção de outras formas para a sua atualização (BARROS, 2009, p.241-242).

É importante lembrar a década de 70, como um período de significativas rupturas socioculturais, políticas e filosóficas. Os efeitos dos acontecimentos de Maio de 68 na França, os movimentos da psiquiatria italiana e francesa a favor de novas práticas de saúde mental, os movimentos latino-americanos que contestavam a ditadura militar, a crítica que se faz à psicologia social norte-americana e a psicologia dos pequenos grupos dentre outros, possibilitam uma psicologia voltada para trabalhos comunitários e que atendam a nossa realidade brasileira.

Nesta perspectiva, a psicologia comunitária numa vertente crítica, tem o cuidado de desconstruir ideias naturalizadoras sobre “comunidade”, problematizando a apropriação do termo comunidade pelas populações de lugares menos favorecidos. Sustentar a constituição histórica dos sujeitos num contexto específico é fundamental, para a valorização da potência das experiências humanas, para o reconhecimento das diferenças culturais, políticas, econômicas, psíquicas, sociais que se articulam no espaço em que se atua. Reconhece-se a singularidade no campo das relações sociais, numa luta por uma sociedade que coloca em cena a alteridade e a riqueza de produção que comporta.

Considerando a atualidade das práticas psicossociais, encontramos profissionais atuando em programas sociais governamentais e não governamentais e que se deparam com desafios que nos instigam a continuar a defender a psicologia comunitária no seu potencial de transformação das vidas dos oprimidos.

Nos anos 90, já se observam atuações de profissionais desenvolvidas em diversas instituições, geralmente públicas e que tiveram influências das lutas políticas dos anos 80. Porém, os avanços da reforma sanitária e a psiquiátrica como indicadoras de um rompimento de uma forma autoritária de entender a vida humana, acabam enfrentando o neoliberalismo e a constituição de novas formas de participação política, marcadas por parcerias entre o poder público e organizações não governamentais.

Ansara e Dantas (2010) analisam as dificuldades na prática social comunitária num contexto de precariedade das condições sociais existência da população atendida e com contradições existentes entre Estado, programas sociais governamentais e organizações não governamentais. Os desafios diante deste novo cenário da realidade brasileira nos fazem rever nossas atuações no cotidiano da vida comunitária. Estes autores explicam que a profusão de políticas sociais, a partir dos anos 90, deu origem a relações mais próximas entre o setor público e o privado, chegando a cooptar politicamente certos grupos e a transferir a responsabilidade do Estado para o chamado “terceiro setor”:

As estratégias neoliberais, por conseguinte, continuam acentuando a desigualdade social, penalizando as camadas populares e intensificando as contradições sociais que agudizam a miséria, a marginalização e a violência, especialmente, nos grandes centros urbanos (ANSARA, DANTAS, 2010, p.102).

Desta forma, o singular de cada trabalho comunitário deve ser valorizado como instigações a serem tomadas pelo profissional diante do contexto atual em que vivemos. Frente a este quadro de violência estrutural e exclusão social, buscamos as possibilidades de fortalecimento comunitário e rompimento com os poderes instituídos.

Importante lembrar, neste estudo, que o posto de saúde que trabalhamos é uma organização não governamental, coordenada pela liderança deste lugar. A composição de um posto de saúde na sede da associação de moradores da comunidade, característica deste local, promove uma atenção às formas peculiares para o profissional lidar com a dinâmica comunitária, sendo que esta configuração não se dissocia de aspectos presentes na sociedade contemporânea.

Assim, a psicologia comunitária experimentada neste ângulo desestabilizador de processos instituídos no tecido social, nos faz pensar: Como refletir sobre modos de vida que por variados motivos não seguem ou resistem a esta lógica do capitalismo?

Alcançar a comunidade e funcionar como um cartógrafo... Duas adolescentes vistas em territórios entrecruzados: do posto à comunidade.

“O passeio do esquizofrênico: eis um modelo melhor do que o neurótico deitado no divã. Um pouco de ar livre, uma relação com o fora”. (DELEUZE, GUATTARI, 2010, p.12).

Esta passagem do texto do Anti-Édipo (2010) pode ser referência para uma escuta esquizoanalítica, sobre as duas adolescentes que participaram do grupo de reflexão no posto de saúde e na escolinha de futebol, na quadra da comunidade.

Certo dia numa conversa informal na padaria da comunidade, perguntei: “O que vocês fazem no fim de semana”? E elas responderam: “Vamos para a estrada (rua principal que atravessa a comunidade) e ficamos, à noite, olhando os carros que saem para passear... os namorados e famílias passeando”.

O que nos interessa aqui é o encontro, a emissão de ondas, de ressonâncias mútuas, estando a favor dos movimentos de criação. Nesta direção, tentamos transformar as mutilações, os constrangimentos, os adestramentos que fazem parte do nosso cotidiano, em potência de Vida (COIMBRA, 2008).

No exercício da esquizoanálise nos debruçamos na análise de implicações e por ser esta micropolítica, encontra-se no plano da imanência, no plano dos encontros onde se presentificam o “fazer ver e fazer falar” (COIMBRA, 2008).

Estas adolescentes, anteriormente participantes também do grupo de crianças, experimentaram no grupo de reflexão momentos de muita tensão e solicitaram, depois do grupo ter começado “fazer alguma coisa”. Aquilo que elas tanto almejaram no grupo de crianças, migrar para um grupo de adolescentes e com demandas para práticas próximas a “grupos de conversa”, pois “queriam apenas falar”, pareceu, no momento em que isto foi oferecido, muito amedrontador e com solicitações constantes para que os psicólogos falassem, com recusas das mesmas para conversar.

Atendíamos aos seus desejos e ao mesmo tempo prosseguimos respeitando os fluxos do trabalho. Segundo Barros (2009) que toma o grupo como dispositivo:

o grupo tomado como dispositivo, como aquilo que põe a funcionar os modos de expressão da subjetividade... o grupo pode acionar confrontos entre expressões do modo-indivíduo vigente. Ao remeter os enunciados não a sujeitos individuais, mas a coletivos, ao percorrer caminhos maquínicos do desejo que não se esgotam em vivências individualizadas, o grupo dispara desconstruções de territórios “enclausurantes” da subjetividade. (BARROS, 2009, p.325).

Assim, caminhando de forma próxima ao posicionamento que tínhamos no grupo de crianças, acreditávamos na potência delas. Na aposta de um paradigma ético-estético-político estávamos abertos a uma subjetividade que experimente e arrisque outros modos de composição: “Entrar em contato com as multiplicidades que flutuam, não almejando equilíbrios, mas a invenção de bifurcações de um tempo que é maquínico – tempo de intensidades –, eis a via política de nosso paradigma” (BARROS, 2009, p.325).

Ao longo do percurso deste grupo, participei, junto às estagiárias e às adolescentes, de alguns passeios nas redondezas e, sempre que perguntava para elas “Por onde vamos andar?”, as mesmas nos puxavam na contramão da comunidade, em direção a um condomínio de casas bonitas... Mas o interessante é que, na volta do passeio, elas entravam e paravam na quadra da comunidade, lugar da escolinha de futebol e também espaço considerado de lazer na comunidade.

O grupo de reflexão termina, ficamos de alguma forma com estes registros, esperando a possibilidade de alguns efeitos surgirem, isto é, acreditando numa mudança de processos hegemônicos de subjetivação em processos de singularização já presentes, que possam aflorar. Passaram-se seis meses e as encontrei na porta da padaria conversando com um morador e as convidei para voltarem ao grupo. Uma delas disse: “Lurdes, o que nós precisamos é sair da comunidade, pode sair e conhecer outros lugares...”.

Benevides de Barros (2009) analisa que, na experiência com grupos, experimentar ouvir o outro irradia uma experimentação de ouvir outros, outros modos de existencialização, outros modos de experimentar:

O entendimento de que tudo é fluxo, de que estes se agenciam e de que agenciamentos são sempre coletivos, permite-nos intervir por remetimento a esta ordem coletiva/múltipla, e não aos próprios sujeitos, seus fantasmas e suas histórias privadas. Isso vai criando possibilidades de ouvir os outros-de-si, pré-individualidades ainda informes. A experiência da diferença que assim se dá não é somente aquela concebida em nível molar, mas a que se vai construindo quando alguém se percebe diferindo em seus processos de singularização (BARROS, 2009, p.312).

A fala da adolescente “Lurdes, o que nós precisamos é sair da comunidade, pode sair e conhecer outros lugares...” pode estar exteriorizando uma realidade de confinamento vivida pelos moradores das comunidades, que nem sempre é reconhecida por todos de forma tão explícita?

A recusa da interiorização de valores capitalísticos abrange uma aproximação da dimensão desejante da vida. A segregação espacial presente nos modos de vida de estar na cidade favorece posições fixas e instituídas. Seguindo este posicionamento da adolescente, podemos recorrer à compreensão dos agenciamentos coletivos como contraponto às formas molares que correspondem às estratificações que cerceiam formas inventivas de vida.

Como nos dizem Guattari e Rolnick (1999):

os agenciamentos coletivos tanto numa perspectiva de uma rede de múltiplas conexões de natureza extra individual (sistemas econômicos, sociais, tecnológicos, icônicos, etc.) quanto de natureza infrapessoal (sistemas de percepção, de afeto, de desejo, de imagens, de memorização, sistemas biológicos, etc.) que vão além da dicotomia sujeito e objeto do conhecimento da ciência moderna (GUATTARI, ROLNICK, 1999, p.31).

Assim sendo, estes autores concebem que os processos de subjetivação não são centrados em agentes individuais, nem em agentes grupais. Estes processos são descentrados no qual estão presentes múltiplos componentes e a subjetividade se apresenta como um processo de produção na sociedade capitalista.

A partir das relações que estabelecemos com os diversos outros em sociedade num tempo histórico, há uma apropriação dos componentes de subjetivação que são dominantes, podendo tais componentes se transformar num movimento de múltiplas conexões que se misturam no tecido social e acabam por criar outras formas subjetivas.

A subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela é essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares. O modo pelo qual os indivíduos vivem esta subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e criação, na qual os indivíduos se reapropriam dos componentes da subjetividade, produzindo um processo que eu chamaria de singularização (GUATTARI, ROLNIK, 1999, p.33).

Assim sendo, uma rede de devires nos aproxima de uma posição que recusa qualquer centramento da subjetividade no indivíduo ou no grupo, ou em subjetividades serializadas, sendo esta recusa condição para a construção de novas formas de subjetivação. Os devires, para Deleuze e Guattari (2010), desfazem as essências e são linhas de fuga que movimentam os afetos e nos colocam frente ao inacabado, ao improviso e mutante da vida humana.

Confesso que fiquei tomada por muita emoção ao ouvir o desabafo da adolescente “Lurdes, o que nós precisamos é sair da comunidade, pode sair e conhecer outros lugares...” e percebi que podemos, sim, impregnar o outro de preconceitos e centralizá-lo num único território subjetivo. Podemos, ainda, trabalhar na comunidade e experimentá-la como instituição ou tentar trabalhar dentro de uma organização, reconhecendo as diversas instituições que nos atravessam, percebendo a existência do fora, do campo invisível e da emergência dos processos de singularização. Para estes autores, a ordem molecular, ao contrário da molar é a dos fluxos, dos devires, da transição de fases, das intensidades.

Lembrando a experiência do psiquiatra espanhol François Tosquelles que, na guerra civil espanhola, desenvolveu ações terapêuticas comunitárias com a ajuda de pessoas comuns (não especialistas). No início dos anos 40, Tosquelles chega ao hospital de Saint Alban, na França e, com a experiência anterior de seu país, utiliza recursos como cooperativas de trabalho, estimula a participação de técnicos e pacientes no cotidiano do hospital. Ele reúne refugiados, camponeses e intelectuais e torna esta experiência diferente de outras que se seguiram no pós-guerra (BARROS, 2009).

Desta forma, Benevides de Barros mostra uma fala deste autor que já indicava uma sensibilidade no tocante ao nível molar e molecular coexistindo na sua relação com os pacientes:

Alucinem, delirem quando quiserem, desde que estejamos aqui dentro, mas aprendam a não fazê-lo fora, com os familiares, com os policiais! Aprendam a não fazer isso publicamente, senão colocam vocês em um buraco fechado para dentro... Há especialistas que não os perdoarão nunca... (TOSQUELLES apud BARROS, 2009, p. 250).

O posicionamento de Tosquelles nos aproxima do olhar do cartógrafo, reconhecendo as diversas paisagens psicossociais. Podemos, ainda, a partir do método cartográfico reconhecera importância da aproximação e a ida do pesquisador em direção à realidade concreta, na sua participação na localidade e envolvimento emocional no seu trabalho, podendo, assim, emergir a práxis.

Em tempo, estas inquietações nos levam a falar de um método cartográfico que acompanha este trabalho comunitário. Esta posição se alia ao movimento, à diferença e expressa uma posição crítica às estruturas e a uma visão estática da própria vida. Cartografar é comprometer-se com os afetos,que estão presentes no campo da pesquisa que não terá assim um distanciamento típico das pesquisas tradicionais. Esta implicação do pesquisador toma como referência o movimento da própria vida e os afetos que o acompanham.

Nesta aliança, releva-se uma singularidade: uma certa escuta clínica, ou seja, uma escuta que leve em conta o processo de pesquisa com os acontecimentos que lhe atravessam, os sujeitos que participam deste processo - inclusive o próprio pesquisador - como diferenças, as aberturas às manifestações desejantes que queiram romper com os poderes esvaziadores de toda diferença.

As adolescentes na escolinha de futebol...

Seguindo os fluxos deste trabalho e estimulada pela relação com o “fora”, as duas adolescentes citadas, participantes do grupo de reflexão, ingressaram em outro momento na escolinha de futebol. O que pode representar para jovens moradores de comunidade uma escolinha de futebol? Com a ajuda de Deleuze e Guattari (2010), vemos:

...os mais desfavorecidos, os mais excluídos, investirem com paixão o sistema que os oprime, e – onde acham sempre um interesse, pois é aí que o buscam e mensuram. O interesse vem a seguir. A antiprodução difunde-se pelo sistema: a antiprodução será amada por si mesma, à maneira pela qual o desejo reprime a si próprio no grande conjunto capitalista. Reprimir o desejo, não só nos outros, mas também em si próprio, ser o tira dos outros e de si próprio, eis o que dá tesão, e isto não diz respeito à ideologia, mas à economia. O capitalismo recolhe e possui a potência do objetivo e do interesse (o poder) mas tem um amor desinteressado pela potência absurda e não possuída da máquina (DELEUZE, GUATTARI, 2010, p.460).

Conforme nos ensinam estes autores, “os mais desfavorecidos podem buscar seus objetivos na máquina opressiva forçando o que é reacionário ou revolucionário no investimento pré-consciente de interesse a não coincidir necessariamente com que é investimento libidinal inconsciente” (DELEUZE, GUATTARI, 2010, p.460).

Quais as linhas de fuga que podemos investir numa escolinha de futebol? Quais as possibilidades de fazer emergir a produção desejante num campo de possibilidades, expandindo e libertando o eu do aprisionamento da mídia e da associação do futebol com o dinheiro e o poder? A escolinha de futebol no espaço comunitário nos aproxima da “práxis do comum” da vida comunitária?

Desta forma, na leitura de Deleuze e Guattari  (2010) o inconsciente maquínico é ligado às composições atuais e atravessa os indivíduos, suas relações e seus territórios. O inconsciente é usina, máquina de produção e é produzido com base em componentes heterogêneos.

Sobre o posicionamento destes autores citados acima, pensamos juntos com Benevides de Barros (2009, p.203), que diz: “As máquinas são energias em processo de transformação social e isto se dá pela vizinhança de fluxos heterogêneos e independentes. Sujeitos e objetos são produzidos ao mesmo tempo e são apenas um dos modos possíveis de semiotização”.

Não nos esqueçamos que para a esquizoanálise o desejo é sempre constitutivo de um campo social, é algo a ser constantemente produzido. Podemos pensar em fazer o desejo penetrar no campo social, abrir o corpo a conexões, arrastando o eu para um mundo de devires, para linhas de fuga, para a invenção de novas formas subjetivas.

O posicionamento das adolescentes no grupo de reflexão se diferenciava significativamente daquele observado até o momento na escolinha de futebol. A partir da relação das mesmas com o professor de futebol e o próprio estagiário de psicologia, podemos perceber que os corpos das adolescentes demonstraram não se movimentarem mais por automatismos. A disposição para o improviso e para a experimentação de um corpo aberto para o devir, para o processo do desejo foi de alguma forma registrado. Possibilidade de desterritorialização das identidades fixas e dos diagnósticos?

Não nos esqueçamos de que tentamos trabalhar o grupo de reflexão como um dispositivo, promovendo desconstruções de territórios fechados, distantes do modo-indivíduo da sociedade capitalista. Para Guattari e Rolnick (1999) os indivíduos são o resultado de um processo de produção em massa e são serializados e modelados nesta sociedade. De modo distinto, a compreensão dos fluxos presentes nos agenciamentos coletivos desterritorializam espaços de vivências das angústias individuais, histórias privadas, como vimos com Barros (2009) em outro momento neste artigo.

Considerações Finais

Nesta breve experiência, constatamos que, num curto espaço, estas adolescentes puderam se ver de outras formas, ensaiando modos diferentes de buscar relação com seus próprios “eus”. Podemos supor que no grupo de reflexão havia para elas próprias espaço para posições binaristas como excluído-incluído, normal-patológico, adulto-criança, etc. O grupo de reflexão pode ser considerado, ainda, no contexto da organização, das instituições, dos especialistas, do circuito que enfatiza a identidade e responsabiliza os sujeitos pelas suas mazelas?

Ou ainda, articular práticas profissionais como o grupo de reflexão visto como um dispositivo nos espaços institucionalizados, a outras práticas realizadas no espaço próprio da comunidade, nos aproxima da “práxis de comunidade”, “práxis do comum”, do encontro com as diferenças que se apresentam no cotidiano comunitário e que deve ser considerado no processo deste trabalho.

A realidade brasileira contemporânea apresenta no contexto do terceiro setor e de diversos programas governamentais uma variedade de configurações e arranjos históricos e estes devem ser considerados no âmbito das intervenções psicossociais em comunidades. Como já visto, a emergência do terceiro setor emerge num instante em que o discurso dos movimentos sociais perde força e as políticas sociais se distanciam das conquistas alcançadas pelos movimentos populares da década de 80.  As expressões “objeto de caridade”, “práticas filantrópicas e assistencialistas” devem ser examinadas como distantes do movimento de potencialização da vida humana.

Em tempo, “... Neste caminhar, quanto mais o comum se constrói, mas o mundo se desmede” Negri (2003, p.104). No curso deste trabalho comunitário entregar-se à desmedida implica em acolher novas formas, afirmar a potência da vida nas relações comunitárias, enfatizar as processualidades e afastar-se do pré-estabelecido dos especialismos e do modo hierárquico que fixa saberes e poderes. Nesta direção, são muitas as contribuições da psicologia comunitária para diferentes intervenções psicossociais em comunidades.

No exercício constante de afirmação da vida feito pela esquizoanálise, a realidade molecular do desejo caminha na contramão do socius que codifica os fluxos do desejo, fazendo com que os mesmos sejam tamponados e regulados. Segundo Deleuze e Guattari (2010) o capitalismo não para de estrangular os fluxos, de cortá-los e de adiar o corte:

mas estes não param de se difundir e de se cortar a si próprios, segundo esquizas que se voltam contra o capitalismo e nele se entalham. Sempre apto a ampliar seus limites interiores, o capitalismo continua ameaçado por um limite exterior que pode tanto mais advir a ele e fendê-lo por dentro quanto mais se ampliam os limites interiores. Eis por que as linhas de fuga são singularmente criadoras e positivas: elas constituem um investimento do campo social tão completo e total quanto o investimento contrário (DELEUZE, GUATTARI, 2010, p.498-499).

Podemos considerar a esquizoanálise uma leitura urgente como forma de impedir que as subjetividades capitalísticas esmaguem a produção desejante e os processos de singularização.

Guattari e Rolnick (1999) discutem que as minorias são as que identificam a problemática da subjetividade inconsciente no campo social. Desta forma, nas nossas práticas comunitárias, longe de adotarmos medidas particulares para os sujeitos com quem nos relacionamos, devemos considerar a afetividade e o desejo como elementos potentes para fazer aflorar o inconsciente maquínico. Outras maneiras de ser, outra percepção... E isto não é apenas válido para aqueles com quem que nos deparamos nas comunidades. É crucial, também, para os profissionais que lá atuam. A revolução social só avança se admitirmos a revolução desejante.

No bojo do discurso da escolinha de futebol, da alienação da mídia, dos realities shows presentes nas nossas práticas sociais cotidianas, devemos prestar atenção nas possibilidades das linhas de fuga, dos vetores de desterritorialização, dos territórios entrecruzados, das resistências e dos cortes que se voltam contra o capitalismo. Será que assim conseguimos desfazer leituras distantes e moralistas do próprio capitalismo?

Talvez seja na sua “aproximação” (“Nesses noventa minutos, de emoção e alegria”), no mergulho das suas entranhas que vivenciamos a transformação molecular e nos experimentamos de outras formas. Alcançamos na leitura esquizoanalítica o momento em que perdemos a possibilidade de dizer apenas “eu” e nos aventuramos em novas formas de existência, prestando atenção nos outros presentes em nós mesmos, mas que são calados pela máquina capitalista.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. Limites, traduções e afetos: profissionais de saúde em contextos indígenas. Mana, v.18, n.3, Dec. 2012. Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132012000300004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 12 Nov. 2013.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia 1. São Paulo: Ed. 34, 2010.

GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica. Cartografias do Desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.

NEGRI, A. Kairòs, Alma Venus, Multitudo: nove lições ensinadas a mim mesmo. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

OBERG, L.P. Do Rio das Vitrines à Galeria dos Desconhecidos: Um estudo em
Psicologia Social Comunitária na Localidade de Muzema. São Paulo: Ed. Biblioteca 24X7, 2008.

TOSQUELLES, F. Entrevista concedida a G. Gallio e M. Constantino em 1987. In: BENEVIDES DE BARROS, R. Grupo: A afirmação de um Simulacro. Porto Alegre: Sulina/Editora UFRGS, 2009.

 

Recebido: 29/08/2014
Aceito: 03/12/2014

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