JUVENTUDES E POLÍTICAS CULTURAIS - “VOCÊS ESTÃO PRONTOS PRO ROLÉ?”

 

HELEN FERREIRA
Pedagoga (UERJ/FEBF), Mestre em Educação, Cultura e Comunicação (UERJ/FEBF), Doutoranda em Educação (UFF).


Resumo: Na contemporaneidade é possível perceber que as juventudes vêm ocupando outros espaços e criando “espaços outros” e interpretando-os conforme seus anseios. Os muros podem ser transformados em telas, as áreas debaixo dos viadutos se alternam como palco de dança, os shoppings centers podem ser áreas de encontro e estúdio de fotografia. Apesar do potencial dos jovens de ocuparem os espaços de forma criativa, nem sempre a questão é tratada como algo positivo. As políticas culturais para as juventudes precisam englobar nos seus projetos a pluralidade e diversidade do universo jovem. Este trabalho busca refletir alguns pontos no que tange a juventudes e culturas, juventudes e espaços, lazer e políticas culturais.
Palavras-chave: Juventudes. Políticas culturais. Espaços.

JUVENTUD Y POLÍTICAS CULTURALES - "ESTÁN USTEDES LISTOS PARA EL ‘ROLÉ’?"

Abstract: En la época contemporánea, es posible darse cuenta de que los jóvenes están ocupando otros espacios y interpretarlos de acuerdo con sus deseos. Las paredes pueden ser transformadas en lienzos, las áreas bajo los puentes como escenario de baile alternativo y la danza, centros comerciales pueden ser espacios de reunión y estudios fotográficos. A pesar del potencial de los jóvenes para ocupar los espacios de una manera creativa, la pregunta no siempre es tratada como algo positivo. Creyendo que las políticas culturales para los jóvenes necesitan agregar en sus proyectos la pluralidad y diversidad, este trabajo pretende reflejar algunos puntos con respecto a los jóvenes y las culturas, los jóvenes y los espacios, ocio y políticas culturales.
Keywords: juventud, políticas culturales, espacios.

INTRODUÇÃO

Ser jovem e viver a juventude

A juventude é rica, a juventude é pobre,
A juventude sofre e ninguém parece perceber
(R.R.)

Juventude é uma construção social e cultural; ao discorrermos sobre ela, carecemos marcar o espaço, o tempo, a herança política, cultural e social, o poder aquisitivo, a produção de subjetividade, etc. No entanto, apesar da pluralidade podemos compreender juventude enquanto categoria pelos aspectos em comum atribuídos aos jovens. Juventude vem a ser uma categoria social que está permeada pelo desejo, pela emoção, pela inconstância, carregada de elementos da cultura globalizada, de simbolismos, enfim, uma categoria que pode ser (re)construída diante do tempo-espaço e da história.

Sendo assim, “identidade juvenil” é uma construção social e deve ser compreendida diante do contexto que lhe confere sentido, das identificações em grupos e da singularidade dos encontros. Há muita diversidade na cultura juvenil, por isso muitos estudiosos usam o termo juventudes.

Os jovens tendem a se expressar de formas variadas, mas há necessidade de identificação com personagens, de pertencimento a um grupo e de reconhecimento nos espaços que frequentam. A indústria midiática direciona os gostos, desejos e anseios dos jovens, estimula-os para serem consumidores desenfreados dos bens culturais e de produtos em geral. O mercado se aproveita de aspectos das juventudes para criar um circuito cultural e produtos específicos para essa categoria de consumidores que também são produtores. 

As juventudes tiveram e têm papel fundamental nestas “novas” formas de apropriação e (re)significação dos aparatos tecnológicos. Os jovens que muitas vezes são taxados como desconcentrados – uma vez que querem respostas rápidas –, apelidados de “geração da exposição”, não tem receio de se expor e são intitulados de “sem identidade” porque são capazes de assumir suas múltiplas identidades; conseguem navegar no oceano cibernético com fluidez. Cabe ressaltar que na tese de Pierre Lèvy o ciberespaço é obra de um “verdadeiro movimento social” cujo grupo líder vem a ser os jovens escolarizados das metrópoles (1999, p.123).

Os jovens das periferias, os jovens afortunados da Zona Sul, os jovens do campo, mesmo tendo tantas diferenciações nos seus cotidianos, nas relações familiares, escolares entre outras, são seduzidos a viver num universo de consumo, seja através dos seriados, das novelas ou através da cultura digital. Mas por tratarmos de juventudes, não se pode massificar a categoria, sabe-se que há um vasto campo de debate em que os jovens são propulsores de criações, de mudanças e de alternativas.

A forma como os jovens tem se apropriado dos meios de comunicação – destaque para o uso da internet, vendo na mesma o potencial para agregar e compartilhar informações, conhecimentos e somar forças – também ocorre em outros terrenos. A pluralidade que cerca o universo jovem não é amparada com sucesso nas instituições de ensino, muitas vezes o poder de criação dos mesmos é tolhido nos espaços que justamente deveriam promover a criatividade.

As formas e intensidades das experiências vividas pelos jovens não são homogêneas nas suas proporções. Suas trajetórias são singulares: ainda que vivam no mesmo espaço físico, tenham as mesmas origens, a mesma situação financeira, a observação e a relação com o mundo é singular.

As juventudes das periferias tendem a ficar mais isoladas nas circunscrições de seus bairros. Uma dentre tantas outras barreiras é a locomoção. Esse isolamento implica em diversos prejuízos, uma vez que essas áreas têm investimento escasso por parte do poder público, com poucas áreas de lazer e marcadas pela violência - o que provoca certo tipo de reclusão e de limitação de acesso à cidade.

Podemos afirmar que em áreas de periferia alguns pontos vão interferir diretamente na produção de subjetividade das juventudes. São eles: a ausência do pai, as barreiras de transitar pela cidade – sair da zona de conforto, a limitada relação dialógica com a escola e ausência de políticas públicas culturais voltadas para as juventudes de periferia. Este último aspecto será abordado em mais detalhe adiante.

A falta de valorização e apoio das manifestações culturais locais, a deficiência de praças e o crescimento da violência empurram os jovens para locais tidos como protegidos. Os shoppings centers são exemplos disso. Mas será que estes espaços estão abertos para os jovens de periferias? Expandir os shoppings centers para áreas de periferia é uma alternativa de lazer e entretenimento para os jovens?

Os “rolezinhos” não devem ser encarados como uma reação dos jovens pela falta de políticas culturais que atendam as juventudes. No entanto, a ação deles reforçou a necessidade de trazer o tema para as pautas das políticas públicas culturais, e frisa que na contemporaneidade estes centros comerciais, pontos de consumo, também se tornam espaços de convivência. Atualmente os shoppings centers do estado do Rio de Janeiro têm a maior concentração de salas de cinemas. Muitos oferecem teatros, parques, espaços de jogos etc. e constituem-se como um dos principais espaços de lazer dos jovens cujas famílias têm maior poder aquisitivo.

“Rolezinho” e “Isoporzinho” – a busca por outros espaços

Se eu não faço nada, não fico satisfeito
Eu durmo o dia inteiro e aí não é direito
Porque quando escurece,

só estou a fim de aprontar
Tédio com um T bem grande pra você
(Tédio - Legião Urbana)

No final de 2013 e começo de 2014 as mídias deram destaque para um acontecimento – uma complexa aglomeração juvenil denominada de “rolezinho”. O ato consistia em marcar encontros – através da internet – para “passeios” em shopping center. O encontro era composto por dezenas, centenas, de jovens, em geral, moradores de periferia que escolhiam previamente um shopping para visitação do grupo. Esses eventos surgiram primeiro no Estado de São Paulo para que os jovens que se conheciam somente pelas redes sociais digitais pudessem apreciar pessoalmente uma relação; muitos deles alegam ter fãs – seguidoras nas redes sociais – e que suas fãs queriam tirar fotos com eles.

Lucas Lima¹, um dos “organizadores” do “Rolezinho” contabilizava mais de 56 mil seguidores.

O jovem afirmava, assim como tantos outros, que os “rolezinhos” são para encontrar as fãs, “pegar mulher”. No entanto, após ser intimado pela Justiça, e com o risco de pagar R$10 mil, caso viesse a se envolver com tumultos provenientes dos “rolezinhos”, decidiu afastar-se das movimentações².

No Rio de Janeiro, em 2000, houve o Passeio dos Excluídos ao Shopping Rio Sul. O ato foi realizado pela Frente de Luta Popular (FLP), que uniu grupos como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), o Movimento Universidade Popular (MUP), entre outros grupos. O foco do ato era mostrar, numa forma simbólica, a diferença de classes. Na época o ato foi hostilizado tanto pela sociedade civil como por agentes policiais, de forma análoga ao que ocorreu com os “rolezinhos”.

No caso da ida dos excluídos ao Shopping Rio Sul, o contraste entre os afortunados e os despojados de poder aquisitivo acarretou um amplo debate sobre as “barreiras invisíveis” que permeiam a sociedade. A indignação dos frequentadores do shopping e até mesmo dos funcionáriosao depararem com pessoas simples, algumas usando chinelas, roupas surradas e rasgadas, com semblantes de “cansados³ e com fome”, evidenciou além das desigualdades sociais e econômicas o preconceito com aqueles que não estão adequados ao padrão que se espera dos frequentadores de um shopping da Zona Sul do RJ. Muitas pessoas se retiraram da praça de alimentação ao perceber pais (manifestantes) tirando quentinhas para alimentar seus filhos. O lanche coletivo – oferecido pela organização – composto por pão francês, mortadela e “refrigereco” causou perturbação aos consumidores que desfrutavam das refeições comercializadas na praça de alimentação.

Os “rolezinhos”, realizados por jovens, numa forma de organização espontânea e sem um planejamento concreto, também causaram aversão em alguns membros da sociedade brasileira. Primeiro pelo quantitativo de jovens aglomerados, segundo, porque se espera um comportamento específico para estes espaços (shopping), ou seja, estar com trajes de marcas apreciadas pela classe média tradicional, consumir bens e serviços. É notório que um grupo de jovens de periferia tirando foto(4), falando alto e em grande parte composto por pessoas cuja cor da pele não é branca chama atenção, sugerindo que seja “arrastão” ou coisa semelhante; fruto do estereótipo que envolve a figura do jovem de periferia. Este acontecimento provocou a continuidade de debates sobre o jovem de periferia, a falta de espaços de lazer e entretenimento; logo, manifestou a necessidade de enfatizar pautas sobre políticas públicas culturais para as juventudes.

Os shoppings são espaços privados para atendimento público. Compostos por lojas, espaços de lazer etc. Diante da violência urbana, esses centros comerciais proliferam, oferecendo não só serviços e bens, mas também a ideia de espaço resguardado, climatizado, sedutor e propício ao consumo. Sendo um espaço privado de atendimento público, quem pode estar nesses locais?

 

A condição de prédio ou edifício privado, manifestação concreta do direito de propriedade, não significa que seus donos podem (no sentido de conduta juridicamente válida) criar todo e qualquer tipo de restrição ou limitação à circulação de pessoas naquele espaço físico (direito de ir, vir e ficar). Com efeito, a propriedade privada não pode ser utilizada como instrumento de discriminação, segregação e mesmo de exercício arbitrário de caprichos ou vontades. Essa afirmação decorre diretamente do Estado Democrático de Direito inscrito na Constituição, a ser construído por todos (autoridades públicas, cidadãos, proprietários de bens, etc) (CASTRO, 2014, p.3).

 

As “barreiras invisíveis” que foram retratadas no documentário Hiato(5), também foram percebidas nos “rolezinhos”, uma vez que os jovens também foram hostilizados por utilizarem o espaço redefinindo sua função conforme seus anseios, no caso como ponto de encontro dos pobres das periferias. Condutas jurídicas foram acionadas para impedir que houvesse mais “rolezinhos” em outros shoppings centers(6). O que gerou repúdio nas redes sociais digitais e convocações para outros “rolés”, agora com caráter de protesto, tendo adesão não só dos jovens, mas de grupos sociais e simpatizantes.

É cabível, diante do que é legal, que alguns fatores possam ser impeditivos para que os jovens permaneçam nesses espaços, como estar portando arma, promover agressões e confusões, porém,

[...] é claramente possível identificar hipóteses em que a restrição ou limitação não é tolerada como juridicamente válida: a) pela raça ou cor da pele; b) pela idade; c) pela condição física; d) pelas preferências em termos de vestimentas (moda); e) pelo local de moradia; f) pelas preferências sexuais e g) pela forma de chegada ao estabelecimento (veículo particular ou transporte público) (CASTRO, 2014, p.05).

As culturas juvenis tendem a ser marginalizadas pela forma como utilizam o tempo-espaço. A ideia de estarem com tempo livre fere o “ideal” de otimizar o tempo com atividades que são “mais produtivas” e que podem lhes render mais sucesso profissional na vida adulta, como, por exemplo, estar num curso de inglês, num curso técnico ou fazendo um esporte(7). O tempo livre e o espaço de interação dos sujeitos devem ser visto como potencial na produção de subjetividade e não como tempo-espaço improdutivo.

E por que os jovens se apropriaram dos shoppings centers? Foucault (2005) nos remete a pensar o ambiente em que vivemos como espaço que nos leva para fora de nós mesmo, sendo heterogêneo. Não é uma questão de preencher os espaços com pessoas e objetos, há relações que delineiam sítios decididamente irredutíveis uns aos outros e que não se podem sobre-impôr (idem). Para o jovem de periferia que muitas vezes é subtraído dos variados espaços, que tem seu direito de circular pela cidade limitado por diversos fatores, quando consegue subverter a ordem do que é naturalizado e ocupar um espaço (criar espaços outros), que não foram programados para ele, provoca aversões pela imposição de sua própria presença.

Com a mercantilização do lazer e em ano de Copa do Mundo, a diversão e produtos ligados ao entretenimento têm atingido valores exorbitantes. O movimento “Rio Surreal” – inspirado no “Brasília Surreal”, ambos criados em páginas da internet –, tem apontado essas questões através de denúncia dos lugares que cobram valores altos pelos bens e serviços. Os jovens cariocas estão buscando soluções para “curtirem” com os amigos, mas sem muitos gastos, recorrendo, por exemplo, a um objeto antigo e conhecido pelos cariocas frequentadores das praias do Rio, o isopor.

Depois dos “rolezinhos”, que teve seu auge no estado de São Paulo, o Rio de Janeiro inova com o “isoporzinho” - encontro que também começou através das redes sociais digitais, com destaque para o Facebook. Cansados dos valores absurdos das bebidas, resolveram marcar encontros através das redes sociais e levaram isopores com bebidas para espaços públicos.

A ideia “beber de boa sem precisar vender nenhum rim” mostra como pensa a molecada adepta ao “isoporzinho”. Mas o evento não é só para beber cervejas e refrigerantes; vem tornando-se uma manifestação cultural com shows de música e atividades nas ruas. A prática vem ocorrendo há algum tempo, só que agora tem visibilidade – por conta da veiculação nas redes sociais digitais – e ainda com o aspecto de protesto contra o elevado preço cobrado pelas bebidas. Este tipo de diversão recebe críticas, mas ainda não teve nenhum registro de confronto. O “isorporzinho” ocupa as ruas, praias e praças – espaços públicos – e por isso ainda não teve nenhuma repressão mais exaltada. Talvez essa tenha sido a melhor tática dos que propõem o encontro.

Com o advento das redes sociais digitais muitos preconceitos que eram velados sobre os espaços (lugar de direito, lugar subtraído, lugar estereotipado etc.) escapam nos posts, sejam as reclamações de alguns moradores do Leblon que alegam pagar taxa de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) num valor alto e não poderem frequentar a praia e as redondezas por estas estarem “infestadas de favelados”, ou ainda, com a publicação de foto de um cidadão de bermuda e camiseta num aeroporto do Rio de Janeiro que gerou comentários maldosos: “É aeroporto ou rodoviária?” – negando ao sujeito, no caso o advogado Marcelo Santos, o direito de estar naquele local. A visão estereotipada de algumas pessoas negava sua presença num lugar de que se espera certo “glamour” nos trajes.

Apoio-me em Foucault (2005), quando descreve os espaços de heterotopias – contestação dos espaços que vivemos que são reais e míticos, que assumem variadas formas e que podem ter sua função original mudada no decorrer da história, “espaço outro”. Julgo que as heterotopias de desvio, as que são destinadas aos sujeitos desviantes das normas estabelecidas, se fazem presentes também nos dias de hoje. Sendo assim, no caso de jovens desviantes a penalidade é a reclusão, a privação da liberdade. No caso dos jovens que queriam entrar nos shoppings e foram reprimidos a ameaça era levá-los para o Conselho Tutelar.

Vemos o grande impacto das políticas públicas como a Bolsa Família e o crescimento da economia nos lares das periferias, o que também favorece o encantamento com a possibilidade de aumentar o consumo. Estar em espaços como shoppings, aeroportos, teatros, dentre tantos outros, incomoda a tradicional classe média brasileira. Os espaços fechados ou semifechados destinados a este público específico começam a ser disputados com os “emergentes”, que mesmo não estando nas mesmas condições sociais e econômicas reivindicam estes espaços.

Ainda recorrendo a Foucault (2005) e seu pensamento sobre os espaços de heterotopias, pode-se perceber que o jovem da periferia ao frequentar o “templo do consumo” pode olhar no espelho e se recompor, assumindo traços do seu entorno. No entanto, pode (re) inventar o espaço, criar “espaço outro”, mas isso não quer dizer que deixa de ser um espaço de consumo – traços de integração com o consumo. Este espaço do encontro, da junção de jovens para tirar fotos em locais bonitos para colocar no Facebook, é o “espaço outro”.

Políticas culturais: histórico excludente e manutenção da exclusão

E com o bucho mais cheio comecei a pensar
Que eu me organizando posso desorganizar
Que eu desorganizando posso me organizar
Que eu me organizando posso desorganizar

(Nação Zumbi)

Políticas culturais podem ser entendidas como ações instituídas pelo poder público, entidades civis, grupos comunitários e empresas privadas que tem como premissa apoiar, reconhecer e proteger o desenvolvimento material e imaterial de uma sociedade. Sendo assim, é notório que política pública cultural não está restrita ao que é realizado pelo Governo vigente; no entanto, sabemos que o papel do Estado para formulações e reconhecimentos de políticas públicas culturais é de grande relevância para a sociedade.

Recorrendo à história do Brasil, percebe-se que as políticas culturais eram travadas pelo poder da monarquia portuguesa que negava a cultura indígena e africana, assim como censurava jornais e revistas vindos do exterior. Com a fuga da Família Real (1889), este poder começa a decair, como salienta Rubim (2007),

A oligárquica república brasileira dos finais do século XIX até os anos 30 também não teve condições de forjar um cenário propício para o surgimento das políticas culturais nacionais. Apenas foram realizadas ações culturais pontuais, em especial, na área de patrimônio, preocupação presente em alguns estados. Nada que possa ser tomado como uma efetiva política cultural (p.14).

Nas décadas de 30 e 40 do século XX, foram realizados trabalhos no âmbito da cultura nos quais observa-se um envolvimento mais denso do Estado; no entanto, a maioria das ações não é tratada como políticas públicas culturais. Cabe destacar que no governo de Getúlio Vargas, começou a se institucionalizar um setor cultural elitista e autoritário. Rubim (2007, p.18) salienta que a gestão de Vargas deixou traços de uma abstrusa tradição no país, “a relação de governos autoritários e políticas culturais”.

Nas décadas seguintes, percebe-se o campo cultural amparado pelo setor privado, o que ainda acontece nos dias atuais. Isso ocorreu devido à omissão do governo no que tange ao campo cultural.  As estruturas montadas no governo Vargas foram mantidas, mas espaços que antes eram da iniciativa privada, como o caso do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, passam a ser reconhecidos como espaços de utilidade pública e começam a ser amparados por verbas federais. Historicamente, podemos perceber que essa medida não tinha uma intenção de continuidade: não eram políticas de financiamento ou manutenção desses espaços culturais, mas sim medidas pontuais – o que vai acompanhar alguns governos posteriores.

Como bem salienta Chauí (2006), a percepção de políticas culturais pode ser dividida em três ideias. A primeira destaca o poder público como o propulsor cultural, ou seja, capaz de produzir e difundir a cultura, reforçando assim sua própria ideologia. 

A segunda ideia está atrelada à “tradição populista”: há uma divisão de cultura elitista e cultural popular. Cabia ao setor de cultura uma função pedagógica para com as massas. A ideia era se apropriar da cultura popular e transformá-la e devolvê-la ao povo. Essa concepção vai se direcionar para o repúdio da cultura elitista e glorificação da cultura popular. Mas o que é cultura popular? Hall nos aponta que:

Não podemos simplesmente juntar numa única categoria todas as coisas que o “povo” faz, sem observar que a verdadeira distinção analítica não surge da lista – uma categoria inerte de coisas ou atividades – mas da oposição chave: pertence/não pertence ao povo. Em outras palavras, o princípio estruturador do “popular” neste sentido são as tensões e oposições entre aquilo que pertence ao domínio central da elite ou da cultura dominante, e à cultura da “periferia” (2003, p. 256).

Chauí chama atenção para a terceira ideia que é implantada com a ascensão do neoliberalismo: cada vez mais o papel do Estado no campo da cultura passa a ser minimizado, cabendo aos órgãos da cultura enquadrar-se aos padrões da indústria da cultura, do mercado. Acabam comprando os serviços culturais do que é moda no mercado cultural e adotam uma política de favorecimentos e exclusão.

A cultura cada vez mais é apropriada pelo mundo corporativo. É notório que com as leis de incentivo a cultura isso deveria mudar. No entanto, a falta de transparência, o interesse privado, a falta de regulação e fiscalização por parte do poder público, fazem com que alguns grupos sejam privilegiados e outros não. A lógica do mercado é um imperativo, mas

Quanto a perspectiva estatal de adoção da lógica da indústria cultural e do mercado cultural, podemos recusá-la tomando, agora, a cultura como um campo específico de criação: criação da imaginação, da sensibilidade e da inteligência que se exprime em obras de arte e obras de pensamento, quando buscam ultrapassar criticamente o estabelecido (CHAUÍ, 2006,p.135).

As leis de incentivo a cultura ainda estão longe de contemplar certos produtos e eventos artísticos. A necessidade de submeter os projetos culturais aos editais é uma constante e isola pequenos projetos, como os que acontecem nas periferias.

Atualmente, alguns editais do Fundo Nacional de Cultura colaboram para que as regiões que não estão no circuito cultural do eixo Rio-São Paulo possam concorrer a esse apoio. Mais importante ainda foi o projeto de implantação dos Pontos de Cultura, que contribuiu para que os patrocínios não ficassem só no apoio esporádico para um único evento.

Essas medidas tiveram impactos importantes de forma geral, mas ainda precisam ser expandidas para atender a um contingente maior. É preciso que haja mais debate com a sociedade para que sejam edificadas e implantadas políticas públicas culturais que atendam a maior pluralidade, e nesse caso os jovens têm sido os mais esquecidos.

O discurso sobre políticas culturais é denso na questão da acessibilidade às produções artísticas. Nas últimas décadas a preocupação tem sido dar acesso aos bens culturais – vide o projeto das Lonas Culturais. Mas as Lonas são o suficiente? O que tem sido veiculado nas Lonas tem atendido aos anseios das comunidades?

O Estado não é produtor de cultura. Os grupos populares têm capacidade de produzir cultura, logo, estão em igualdade para experimentações e divulgação do que produzem. Não precisam atender as exigências do mercado.

Isto significa que se tomará a cultura como um direito do cidadão e, em particular, como direito à criação desse direito por todos aqueles que têm sido sistemática e deliberadamente excluídos do direito à cultura neste país: os trabalhadores, tidos como incompetentes sociais, submetidos a condições cuja origem, cujo sentido e cuja finalidade lhes escapam (CHAUÌ, 2006, p. 70).

O que deve ser pleiteado é o diálogo com a diversidade cultural – formas de produção, divulgação e sentidos que identificam pessoas e grupos sociais – pois a ideia de “levar cultura ao povo” desconsidera a gama de produções que está fora dos circuitos culturais e desqualifica os que não estão envoltos pelo marketing, tampouco amparados ou reconhecidos pelos órgãos oficiais de cultura.

As manifestações culturais são patrimônio da sociedade. Mas percebe-se que as regras que gerenciam o mercado também são as regras que gerenciam a cultura. O patrocínio ainda está restrito as fundações e institutos das principais empresas do país.

Entretanto, por mais que as juventudes de periferia estejam à margem das políticas públicas culturais e sociais, é inegável a criatividade e capacidade que elas têm para desenvolver artifícios em prol das suas pretensões e necessidades. Das quadrilhas juninas às rodas de samba; do jogo de futebol no chão de barro até a Favela Water Planet(8), o que é percebido é o pulsar de vida coletiva nas favelas e não o isolamento como ocorre em muitos condomínios de luxo.

A singularidade dos jovens de periferia deve entrar na pauta dos debates das políticas públicas culturais. A criminalização das manifestações culturais como os Bailes Funks, grafitagem e outras atividades com a intenção de reestabelecer a ordem, têm um impacto negativo, uma vez que desqualifica estas atividades culturais promovidas por grupos da periferia.

Faz-se necessário o reconhecimento das manifestações culturais populares espontâneas pelos órgãos oficiais de cultura, um amplo debate com a sociedade, ou seja, maior espaço de participação na gestão das políticas públicas culturais. Não será criando projetos como os “rolezódrometos”, como sugeriu o governador (Geraldo Alckmin) de São Paulo, que se contemplará os desejos de atividades culturais das juventudes. Essas ideias são manutenção da exclusão, direcionam os jovens para locais fixos, impedindo a vivência da cidade em sua plenitude.

 


NOTAS:

(1) Lucas de Oliveira Silva de Lima, de 18 anos, faleceu no dia 06 de abril de 2014, após participar de um baile funk na capital paulista. A circunstância de sua morte ainda está sendo averiguada pelo 64º Distrito Policial; a suspeita é que o jovem esteve envolvido numa briga passional.

(2)Disponível em: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/04/07/organizador-de-rolezinhos-morre-em-sao-paulo.htm. Acesso: 08 de abril/2014.

(3)Parte dos componentes fez uma viagem longa de ônibus vindo da Baixada Fluminense e arredores, e os sujeitos dos acampamentos do MST, que na época estavam em Santa Cruz, passaram a noite acordados devido a incursão policial no acampamento.

(4)Uma das marcas das juventudes contemporâneas é o apego ao registro através de imagem fotográfica, para expor nas redes sociais.

(5)Hiato: é um documentário realizado em 2007, pelo diretor Vladimir Seixas. Foram realizadas entrevistas com pessoas que participaram do Passeio do Excluídos ao Shopping Rio Sul e com estudiosos de áreas como comunicação e ciências sociais; o documentário enfatiza as diferenças, as barreiras que cercam pessoas com baixo poder aquisitivo.

(6)Cabe destacar que os shoppings escolhidos são os mais luxuosos, aqueles que se assemelham com os europeus ou americanos.

(7)O que não é um comum para grande parte dos jovens de periferia.

(8)Com o aumento da temperatura nos meses de janeiro e fevereiro de 2014, nos finais de semana a população das periferias do RJ ocupou calçadas e ruas com piscinas de plástico.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CHAUÍ, Marilena. Cidadania Cultural: o direito à cultura. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2006.

CHAGAS, Paulo Vitor. Repressão não é a melhor saída para “rolezinhos”. Agência Brasil. Disponível em: http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2014-01-16/repressao-nao-e-melhor-saida-para-%E2%80%9Crolezinhos%E2%80%9D-avalia-gilberto-carvalho Publicado em 16 de jan. 2014. Acesso em: 02 de fev. 2014.

FOUCAULT, Michel. De outros espaços. Tradução Pedro Moura. Revista Virose. Disponível em: www.virose.pt. Publicado em 11 de fev. 2005. Acesso em: 02 de Fev. 2014.

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RUBIM, Antonio Albino; BARBALHO, Alexandre (Orgs.). Políticas Culturais no Brasil. Salvador: EDUFBA 2007.

VALVERDE, Rodrigo Ramos Hospodar Felippe. Sobre Espaço Público e Heterotopias. Geosul, Florianópolis, v.24, n.48, jul./dez.2009. pp.7-26

 

Recebido: 23/11/2014
Aceito: 08/12/2014

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