Questões Contemporâneas

HISTÓRIA DOS ANTIGOS: MEMÓRIAS DE MORADORES DO TERREIRÃO

 

MARCELO HENRIQUE DA COSTA
Psicólogo, Doutor em Psicologia Social e Professor Adjunto da Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro.


Resumo: Este trabalho foi produzido a partir da coleta de informações realizada pela equipe de estágio em Psicologia Comunitária do Serviço de Psicologia Aplicada do curso de Psicologia de uma universidade do Rio de Janeiro. Foram entrevistados vinte moradores, dentre os mais antigos da favela Canal das Tachas, também conhecida como Terreirão, em busca de histórias de vida. A partir destas memórias, principalmente a partir de seus aspectos compartilhados e das marcas de intersubjetividade, buscou-se revisitar a história da localidade e compreender o impacto das profundas modificações que ela vem sofrendo ao longo das últimas décadas.
Palavras-chave: Memória social. Terreirão. Psicologia comunitária. Psicologia social.

HISTORY OF THE ANCIENTS: MEMORIES OF RESIDENTS OF TERREIRÃO

Abstract: This work has been produced from the information gathering stage performed by the team of Community Psychology of the Applied Psychology Service in a university in Rio de Janeiro. We interviewed twenty residents, among the oldest of the Canal das Taxas slum, also known as Terreirão, in search of life stories. From these memories, especially from their shared aspects and intersubjective brands, try to revisit the history of the locality and understand the impact of the profound changes it has undergone over the past decades.
Keywords: Social memory. Terreirão. Community psychology. Social psychology.

INTRODUÇÃO

Este artigo relata a experiência de intervenção da equipe de Psicologia Comunitária de uma universidade do Rio de Janeiro na comunidade do Canal das Tachas, também conhecida como “Terreirão”, zona oeste do Rio de Janeiro.

Logo que foi constituída a equipe de Psicologia Comunitária, existia a certeza de que seria importante definir um local específico de atuação, o lócus para poder desenvolver a necessária observação e construir mecanismos de intervenção na realidade. A escolha desta comunidade foi motivada por diversos elementos facilitadores: havia proximidade entre o Terreirão e a sede da universidade; tratava-se de uma comunidade considerada de pequenas proporções (presumia-se seis mil moradores), o que pôde facilitar a intervenção; não havia um grande número de instituições universitárias desenvolvendo trabalhos neste território, o que facilitou o acesso; e, finalmente, não era um território dominado pelo narcotráfico, como em diversas outras favelas do Rio, o que dificultaria a mobilidade e iniciativas de ação. A milícia presente não era ostensiva como em comunidades próximas, como em Rio das Pedras, por exemplo.

Até aquele momento, a “demanda” era própria: abrir um campo de estágio em Psicologia Comunitária. No entanto, a intencionalidade era buscar aproximação e identificar as demandas locais, o que legitimaria a prática a partir de uma relação de coparticipação comunitária, centro de um projeto ético-político.

Como propõe Guareschi (2005) sobre os cuidados éticos a serem tomados com iniciativas de desenvolvimento de práticas comunitárias por psicólogos sociais:

Qualquer atividade que porventura venha a ser desenvolvida com tais grupos deve ter em mente no mínimo duas coisas: primeiro, um respeito muito grande pelo “saber” dos outros. Isso exige que eu comece a prestar atenção não apenas ao que as pessoas dizem, mas também ao que as pessoas fazem. E só podemos chegar a isso na medida em que formos nos inserindo nas comunidades com cuidado e humildade, como alguém que pede licença para poder participar; e segundo, que o projeto inclua, além do diálogo e da partilha de saberes, a garantia de autonomia e autogestão das próprias comunidades. Afinal, são eles que lá vivem e que vão a continuar a viver. (GUARESCHI, 2005, p.99).

 

Decidiu-se como estratégia de aproximação procurar a Associação de Moradores do Canal das Tachas, com vistas a “negociar” a entrada na comunidade e identificar sua demanda inicial. Apesar de não conhecê-los, acreditava-se que seria o melhor caminho, uma vez que havendo uma representação local constituída e legitimada, essa deveria seria a porta de entrada.

A conversa com a diretoria da Associação de Moradores do Canal das Tachas foi mais difícil do que se imaginou. Desconfiados, ouviram uma explanação sobre a relevância da efetiva relação entre universidades e comunidades, com a rica e intensa troca de conhecimentos e experiência, e a importância para o estudante de psicologia que terá a oportunidade de realizá-la. Falou-se também do desenvolvimento da prática social do psicólogo no Brasil e sobre o papel da profissão na superação das desigualdades sociais. Explicou-se ser desejável manter um contato permanente com a comunidade e que era necessário que eles também desejassem isto para poder estabelecer o nosso trabalho. Argumentou-se ainda, que, afinal de contas, não conhecíamos a comunidade e que estávamos ali também para escutar. Finalmente, solicitou-se a anuência da Associação para iniciar um período de observação de três meses para, em seguida, propor-se uma nova “rodada de conversas”, com eles e outras lideranças locais.

Os contatos iniciais com aquela população foram marcados pelo trabalho de debelar uma grande desconfiança, com diversas visitas da equipe, por três meses seguidos, com o objetivo de conversar e observar, buscar captar detalhes da ambiência da comunidade, devidamente registrados em diário de campo¹. Começou a se revelar um pouco de sua história.

Tendo mais de sessenta anos de existência e situado em uma região extrema e exuberante da cidade, sendo originariamente uma comunidade agrícola, o Terreirão guarda, ainda, elementos e identidade com o passado. Percebeu-se logo nos primeiros contatos que era um lugar especial, de alguma forma um “Rio de outrora”, onde a paisagem e as pessoas em harmonia sugerem uma outra ecologia da vida.

As brincadeiras, a forma de circular pela proximidade das casas, detectada naquele local, não se encaixam na realidade mais geral da cidade nos dias de hoje, mas parece saída de um álbum de lembranças de crianças do subúrbio carioca, da década de 60. (MAIOLINO, 2005, p. 288).

Nas conversas com os dirigentes da Associação e com outros moradores, buscando indagar sobre a origem da formação do Terreirão, pôde se perceber uma grande lacuna sobre a história (e as histórias) do local, fruto de um incêndio ocorrido há anos na antiga sede da Associação de Moradores que destruiu grande parte do acervo físico da história e da memória da localidade.

Acreditando ter encontrado um ponto de convergência para iniciar a intervenção, propôs-se desenvolver uma pesquisa sobre histórias de vida de alguns personagens do Terreirão. Solicitou-se à Associação que produzisse uma lista com vinte nomes e endereços dos antigos moradores da localidade.

Assim feito, na semana seguinte foram iniciados os contatos para entrevistar esses moradores. A amostra de vinte indivíduos estava distribuída em onze homens e nove mulheres, todos moradores da comunidade Canal das Tachas. O tempo de moradia no local variara entre vinte e cinquenta e seis anos.

As entrevistas foram realizadas entre os meses de maio e setembro de 2006. Optou-se realizar as entrevistas nas casas dos moradores, por acreditar que o contato com os entrevistados feito na sede da Associação de Moradores ou no Centro de Referência de Assistência Social local, poderia inibi-los e criar um ambiente pouco familiar. As entrevistas seguiram um roteiro semiestruturado e tiveram por objetivo levantar informações sobre a origem pessoal do entrevistado, a história do local, suas concepções a respeito do que o próprio considerava ser uma “lógica comunitária”, e as mudanças percebidas nesta lógica de funcionamento do Terreirão, bem como o que ele acreditava que tenha se perdido e o que se conquistou nessa trajetória histórica.

O que se encontrou: ricas histórias de vida, lembranças emocionadas, confidências apresentadas na intimidade das casas dos entrevistados, que entre cafezinhos, tornou a experiência inesquecível.

A memória é um cabedal infinito, da qual só registramos um fragmento. Frequentemente, as mais vivas recordações afloravam depois da entrevista, na escada, no jardim ou na despedida no portão. Muitas passagens não foram registradas, foram contadas em confiança, como confidência. Lembrança puxa lembrança e seria preciso um escutador infinito. (BOSI, 2003, p.39).

Ao dar ouvidos às histórias de vida das pessoas, trajetórias individuais, momentos marcantes na vida desses vinte personagens antigos no cenário do Terreirão, ambicionou-se investigar o compartilhado, o vivido em conjunto, as lembranças que marcam a intersubjetividade destas pessoas e possivelmente de um grupo muito maior. Nas interseções das histórias individuais, procurou-se a história lembrada do Canal das Tachas. Utilizando as frases como unidades de registro, e para isso as falas dos personagens foram gravadas e transcritas com autorização dos autores, objetivou-se construir uma unidade de contexto. Ao optar pela estratégia de desenvolver uma análise do conteúdo das falas registradas, organizando-as e interpretando-as a partir de categorias de análise, optou-se por um método qualitativo de pesquisa (MINAYO, 1992). Partiu-se da premissa que, ao entrevistar pessoas “antigas” na comunidade, a recordação individual poderia generosamente se fundir a uma memória coletiva. A partir das falas singulares, observaram-se fluxos de relação, de convergências e de sentido.

 Tendo atravessado um longo período de vida naquele local, estas pessoas teriam também atravessado um longo período de suas próprias vidas. Foram ouvidos homens e mulheres que vivem a fase madura da vida, todos entre 50 e 80 anos de idade. Seguiu-se a pista trilhada por (BOSI, 2003),

Um verdadeiro teste para a hipótese psicossocial da memória encontra-se no estudo de lembranças das pessoas idosas. Nelas, é possível verificar uma história social bem desenvolvida: elas já atravessaram um determinado tipo de sociedade, com características bem marcadas e conhecidas; elas já viveram quadros de referência familiar e cultural igualmente reconhecíveis; Enfim, sua memória atual pode ser desenhada sobre um pano de fundo mais definido do que a memória de uma pessoa jovem, ou mesmo adulta que, de algum modo, ainda absorva nas lutas e contradições de um presente que a solicita muito mais intensamente que a uma pessoa de idade. (BOSI, 2003, p.60).

Através dos depoimentos de como o Terreirão se transformou, a partir de suas percepções, os moradores traçam uma história narrada de um lugar e de suas vidas. Falam hoje sobre um passado remoto buscando na memória os acontecimentos.

Nas últimas décadas observa-se o crescimento de pesquisas interdisciplinares sobre memória social. Antropólogos, psicólogos, historiadores, psicólogos sociais, sociólogos, entre outros, têm buscado contribuir com o “campo” da memória social. Não há saberes ou disciplinas que possam reivindicar para si a exclusividade sobre este terreno.

Alguns estudos produzidos no século XX buscaram sustentar um ponto de vista psicossocial da memória. Halbwachs e Bartlett produzem obras que visam entender a memória, não como um evento meramente pessoal, mas compartilhado.

Constatamos uma singular coincidência entre as formulações de Halbwachs e as de Bartlett: o que um e outro buscam é fixar a pertinência dos “quadros sociais’ e das instituições e das redes de convenção verbal no processo que conduz à lembrança. Bartlett está, pela sua própria formação profissional, mais rente à linguagem específica da Psicologia Social, tal como se constituiu nos anos 30; mas o sentido do seu texto se acha próximo do de Halbwachs (BOSI, 2003, p.64).

No contexto que, a partir da segunda metade do século passado, caracterizou a expansão do interesse no estudo da memória e do seu âmbito eminentemente individual e estritamente psicológico para uma abordagem social, no qual diversas disciplinas apresentam suas contribuições, destaca-se a de Halbwachs, dentro de uma perspectiva sociológica de base durkheiniana, e a de Bartlett, com uma abordagem psicossocial com metodologia antropológica.

Seguindo a orientação de seu mestre Durkheim, Maurice Halbwachs, inicia o seu livro Memória Coletiva justamente diferenciando “memória individual e memória coletiva”. O autor não nega um plano mais singular da memória do sujeito; assim, na base de qualquer lembrança haveria o chamamento a um estado de consciência puramente individual, chamada de intuição sensível. Mas, evidentemente, que ele destaca a memória coletiva como uma memória conectada na memória dos outros e desta condição tirando partido.

Para que nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que estes apresentem seus testemunhos: também é preciso que ela não tenha deixado de concordar com a memória deles e que existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que as lembranças que nos fazem recordar venham a ser reconstruídas sobre uma base comum. Não basta reconstituir pedaço a pedaço a imagem de um acontecimento passado para obter uma lembrança. É preciso que esta reconstrução funcione a partir de dados e de noções comuns que estejam em nosso espírito e também no dos outros, porque elas estão sempre passando destes para aqueles e vice-versa, o que será possível somente se tiverem feito parte e continuarem fazendo parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo. Somente assim podemos compreender que uma lembrança seja ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída. (HALBWACHS, 2006, p.39).

O “eu” e o “outro” estão tão misturados, que não sei mais quando são minhas memórias ou a memória de muitos outros, construída sutilmente na conversa cotidiana. Sem abandonar a ideia de livre-arbítrio ou diversas singularidades, o fato é que a história que nos importa agora, provavelmente já importou a outros.

É muito comum atribuirmos a nós mesmos, como se apenas em nós se originassem, as ideias, reflexões, sentimentos e emoções que nos foram inspiradas pelo nosso grupo. Estamos em tal harmonia com os que nos circundam, que vibramos em uníssono e já não sabemos onde está o ponto de partida das vibrações, se em nós ou nos outros. Quantas vezes expressamos, com uma convicção que parece muito pessoal, reflexões tiradas de um jornal, de um livro ou de uma conversa! Elas correspondem tão bem à nossa maneira de ver, que nos surpreenderíamos ao descobrir quem é seu autor e constatar que não são nossas. “Já havíamos pensado nisso” — não percebemos que somos apenas um eco. (HALBWACHS, 2006, p.64).

O fato é que, diz Halbwachs (2006), para confirmar ou recordar uma lembrança não são necessários testemunhos no sentido literal da palavra, ou seja, indivíduos presentes sob uma forma material e sensível; basta a presença simbólica do outro para que o evento possa ocorrer. A transmissão e a retransmissão de memória não necessitam ocorrer diretamente, presencialmente. É como uma nuvem, que se adensa, espalha e dispersa.

Os primeiros anos: lembranças das dificuldades superadas coletivamente

 Para os primeiros a chegar, a única oferta de trabalho era nas plantações. Havia uma chácara de média produção que absorvia essa pequena mão-de-obra e vendia hortaliças no mercado da Praça XV. A precariedade da vida, o isolamento do bairro e as oportunidades de trabalho vinculadas às atividades agrícolas, produziam um êxodo de agricultores do interior de Minas Gerais e do Espírito Santo, que vieram em busca de oportunidades de serem empregados nas diversas granjas existentes então e que atendiam às demandas por frutas e hortaliças da cidade do Rio de Janeiro dos anos 50.

Vindo de Itaperuna, assim que cheguei, morava na fazenda Pascal, era lavrador. Depois, fui morar em Boiúna e depois vim pro Terreirão e isso já faz 56 anos. Era tudo mato, se carregava material no burro, o caminho era areia. Puro espinho, se contava 5 ou 6 casas... (Antônio, 74 anos).

Cheguei há mais de 35 anos. Fiquei primeiro na casa de parentes, e depois capinei um pedacinho de terra e fui ficando por aqui mesmo.  (Laurismar, 56 anos).

Estou no Terreirão há 35 anos. Vim de Paraíba do Sul, faz 55 anos. Quando cheguei, só havia mato. Não dava nem para ir à praia. Não tinha caminho. Trabalhei na plantação, aqui, tudo era plantação, inclusive na Avenida das Américas. Tanto de um lado, como de outro. Morei em casa de madeira, ajudei muito na construção da Igreja da Assembleia de Deus, que fica na rua da Esperança. Com o passar do tempo, chegou primeiro a luz, e em seguida a água. (Manoel, 75 anos).

Bom, cheguei no Terreirão em 68, isso aqui era muito pequeno aos olhos de hoje. Isso aqui nem existia ainda. Havia o restaurante Âncora na praia, que era do Celestino, que acabou morrendo naquele incidente do bateau mauche², no ano novo. Ele era dono do Âncora e do Hotel Atlântico Sul. Você sabia, que em 72 ou 73, começou a ser construído o Hotel Atlântico Sul? Ele era o único prédio daqui do Recreio naquela época. (Affonso, 66 anos).

Na conversa sobre a história do local e a chegada dos primeiros moradores, fica claro como as condições de vida eram adversas, em especial nas primeiras décadas de ocupação no Terreirão, na década de 40.

No começo foi ruim, não tinha nada, não tinha farmácia, não tinha médico, não tinha mercado, não tinha nada. Era só mato; não tinha nenhuma rua, nenhuma. Agora há uns anos atrás que fizeram porque não tinha nada. No começo foi muito ruim. (Celize Silva, 62 anos).

O terreirão era alagado, havia ausência de serviços, incluindo luz e água. Essas condições adversas foram recordadas como imenso sinal de dificuldade, mesmo por aqueles que vinham de uma cidade do interior.

Aqui a noite, a gente tinha que ter cuidado por conta das cobras, várias vezes na minha casa, eu matei cobra. Era tudo mato e a noite as cobras entravam dentro de casa. Tem um acontecimento que muito me marcou, uma coisa que eu me alegrei muito, foi o dia em que eu tirei a cobertura de sapê da minha casa. Porque tinha muito medo de fogo e todo mundo tinha fogão à lenha. Você imagina o perigo? Mas, o dia que tirei o sapê da minha casa, e coloquei telha, olha, eu fiquei muito feliz. Parecia que eu estava morando num palácio. (Maria Raimunda, 79 anos).

Não tínhamos luz, água e esgoto. A única luz que tinha, era do ponto de ônibus. O 749 da Santa Maria; e só até as dez horas. Depois disso, quem vinha, não tinha mais. A água, era de poço artesiano do Hotel Atlântico Sul. Tudo era apenas mato de mamona. Nosso esgoto era assim: Cavávamos perto de mamona, que é muito cheiroso. E depois jogávamos lá dentro as fezes. (Maria Aparecida, 71 anos).

Esse processo de transformação urbana, lento e gradual, é sentido nas falas, que indicam como o crescimento e o aparecimento dos primeiros prédios atraíam a classe média. Que começava a se interessar por aquela remota área.

Então aqui no Recreio, em 68 mais ou menos, começou a florescer o loteamento feito pela Recreio dos Bandeirantes Imobiliária. Eles vieram aqui, lotearam tudo e venderam muitos terrenos. Mas, esses terrenos ficaram no meio do mato por muito tempo. Então o pessoal comprava, e depois se enjoava e abandonava. (Afonso, 66 anos).

            Neste cenário de crescimento do Recreio dos Bandeirantes, o Terreirão, que já existia há mais décadas, passa então a ser notado, identificado como um ator permanente e autônomo do bairro, e não como simples extensão das granjas. Mudando sua relação com o território, até então conhecido apenas pela inospitalidade do local e pela dificuldade de acesso, o Terreirão passou por uma primeira transformação sócio-econômico-cultural. A transformação do ambiente natural, com o fim das granjas e com o início dos primeiros loteamentos, foi acompanhada da mudança de perspectivas de trabalho, e com a valorização da primitiva, selvagem e intocada natureza presentes na região. A valorização da praia, as transformações culturais no mundo, um novo jeito de viver ‘mais livre’, abriu caminho para o interesse de se morar e de se construir no Recreio.

Com o passar do tempo, a pequena agricultura foi dando lugar à nascente especulação imobiliária. Mudando por completo a paisagem e a migração. Não mais atraindo agricultores de Minas e Espírito Santo, mas começamos a ver a chegada de nordestinos, em busca de trabalho na construção civil. A Litorânea começou a dar emprego na construção civil, obra pra caramba. Foi todo mundo trabalhar na Litorânea na época. Pagava bem, ninguém tinha salário. A chácara foi diminuindo as terras, as plantações. Os antigos donos foram falecendo e seus filhos foram se desfazendo da terra, até tudo acabar, acabando assim, com a chácara. (Maria Aleixo, 60 anos).

Agora, aqueles que ainda tinham vínculos com a terra começaram a plantar em seu terreno e a criar galinhas para a subsistência. Outros, em especial os mais jovens, começavam a se inserir na crescente atividade da construção civil que se intensificou profundamente dali para a frente. O próprio espaço do Terreirão, até então esquecido, passa a ser fruto de cobiça para a especulação imobiliária.

Aí as coisas começaram a mudar. Nos anos 70 e 80, o crescimento da Barra começou a chegar um pouco aqui. Começou um boato que a prefeitura ia botar a gente pra fora das nossas casas, que aqui iria ser um condomínio dos bacanas. Nossa comunidade, além de ser em terreno plano, fica a poucos metros da praia do pontal. (Januário, 57 anos).

Acho que a situação precária da vida da gente e essa ameaça constante de tirarem a gente daqui fez crescer uma necessidade de se unir mais, porque nós gostávamos daqui e não queríamos passar pelo que a Cidade de Deus havia passado. (Maria Raimunda, 79 anos).

Em plena época de remoções aceleradas pela cidade, que produziram, entre outras consequências, o reassentamento forçado das famílias despejadas de outras partes da cidade e a ruptura de vínculos de pertencimento, os moradores do Terreirão começam a desenvolver cada vez mais vínculos comunitários. Uma das soluções foi a consolidação da associação de moradores e o aumento das práticas compartilhadas de vida para reduzir a precariedade da vida no local, fruto do baixo desenvolvimento de infraestrutura urbana, e como mecanismo de autodefesa de suas moradias e o constante risco de remoção originado pela crescente especulação imobiliária.

Terreirão: o estabelecimento do vínculo comunitário

A prática comunitária se deu muito antes da consciência da necessidade de organização. Ainda nos primórdios do assentamento, nos anos 50, quando os primeiros barracos começam a ser erguidos, notam-se laços de solidariedade entre pessoas que pouco se conheciam.

Meu irmão olhou para o terreno plano, roçou a terra e fizemos uma casinha para minha mãe e meu padrasto. Neste local mesmo que estamos, mas o barraquinho era muito pobrezinho, tinha uma pessoa que conseguiu umas tábuas de caixote para nosso barraco e foi a maior alegria. (Marlúcia, 60 anos).

Ali, próximo à Associação, morava um rapaz que se chamava Antônio Cearense. Ele era bem antigo aqui dentro. Aí, meu pai ao conversar com ele, contou que ele disse: “Se vocês voltarem daqui a algum tempo, de repente posso conseguir um pedaço de terra pra vocês. (Valtecir, 53 anos).

            Foi a convivência cotidiana que permitiu o desenvolvimento da consciência de comunidade, de compartilhamento cultural da existência. Era necessário juntar-se para obter conquistas e para melhorar a vida.

Tempos difíceis, de muitas carências. A realidade objetiva e a necessidade de mudanças criaram um forte laço comunitário com lideranças e organização nas ações. A luz e a água vieram com a ajuda do Sr. Bené, um dos moradores mais antigos, já falecido. (Antônio, 74 anos).

Só começou a melhorar por volta de 75, com o pai do Alcir (atual presidente da Associação), o seu Bené, ele foi um dos primeiros que organizou a Associação e lutou pela água e pela luz. Seu Bené e os Bazani. Para fazer compras aqui tinha que ir muito longe, seu Bené arrumava uma Kombi e passava pelos conhecidos fazendo uma lista de compras e ia lá comprar e trazer tudo para todos. (Valtecir, 53 anos).

Nota-se o surgimento de lideranças locais, que tiveram um papel destacado na organização dos moradores. Seu Bené e a família Bazani, que se instalaram na região e apoiaram intensamente o desenvolvimento da comunidade, são lembrados até hoje por diversos discursos, mesmo depois de várias décadas.

Seu Bené fazia muito baile aos finais de semana, vinha gente de fora, era muito bom. No carnaval e em São João, sempre havia festa. Era um momento de muita felicidade, todo mundo se respeitava. (Laurismar, 56 anos).

A “geografia” do local era propícia ao encontro: comunidade pequena, casas próximas, atividade econômica comum, lugar isolado, difícil de chegar e de sair, o que intensificava a necessidade de interação e de encontro entre os moradores “locais”.

A própria denominação da localidade – “Canal das Tachas” para o poder público, “Terreirão” para os moradores – é sinal dessa cultura do compartilhamento das experiências comuns da existência. Na ausência de praças, parques ou outras estruturas urbanizadas que servissem como local de referência e encontro comunitário, um grande terreno, com diversas mangueiras no meio, permitiu produzir este lugar comum.

O próprio nome do local, mistério para muitos, foi decorrência das relações comunitárias; e da necessidade de encontrar espaços de lazer que fossem compartilhados. O Terreirão era um lugar logo ali, descendo a rua da Esperança número 1. Lá, tinha um espaço, um terreno baldio, onde as crianças que chegavam para brincar diziam: vamos brincar no Terreirão? E passando o boca-a-boca, nasce esse nome. (Marlúcia, 60 anos).

Este lugar, o Terreirão, espaço simbólico de trocas e pertencimento, comum aos indivíduos, impôs-se sobre o nome oficial da localidade. O ponto físico vinculante entre as existências comunitárias tornou-se o marco da identidade local.

Transformações humanas e urbanas:

No começo da década de 90, o Projeto Favela Bairro transformou o Terreirão. Dragando, urbanizando e com alguma infraestrutura, o polêmico projeto da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro parece ter tido um profundo impacto econômico e social na localidade.
No mesmo período, o processo de transformação urbana do Recreio dos Bandeirantes, provavelmente um dos bairros cariocas mais atingidos pelo vertiginoso crescimento imobiliário, também impactou a vida cotidiana dos moradores.

Hoje, com mais de dez mil habitantes, o Terreirão tornou-se uma espécie de “mercado popular” da região, com intensa frequência de visitantes atrás dos mais diferentes serviços, cabelereiros, lanchonetes, oficinas mecânicas, lan houses, costureiras e até sexshops!

Com esta movimentação de pessoas, aquela comunidade que um dia teve apenas uma linha de ônibus funcionando agora tem um terminal rodoviário de onde saem mais de trinta linhas de ônibus e dezenas de vãs.

Outro fenômeno recente ocorrido no Terreirão foi a multiplicação de lançamentos imobiliários realizados na rua central da “favela”, com um edifício de oito andares, com elevador, dois andares de garagem e playground. O apartamento na planta estava sendo oferecido a metade do preço de um imóvel semelhante fora da comunidade, há poucos metros dali. Evidências apontam para um processo de gentrificação³, quando diversos antigos moradores dão lugar a outros, pois não conseguem suportar a pressão econômica de um espaço subitamente valorizado.

Relações comunitárias modificaram-se com as transformações da paisagem urbana. A antiga espontaneidade das interações deu lugar a outro tipo de parceria. Não mais moradores, como dizia um entrevistado, mas agora proprietários.

Um novo ator aparece no Terreirão: o inquilino. Com o aumento da oferta de espaços para alugar, devido a iniciativa de muitos moradores que construíram pequenos apartamentos em cima de suas casas, a população se multiplicou e diversificou. Aluguel de quitinetes tornou-se um dos mais rentáveis negócios no valorizado Terreirão, o “Saara”, a “Copacabana”.

Nesses últimos 8 anos ou 10, posso dizer que o Recreio começou a se expandir demais. Mas isso aqui se transformou num Saara. Tem tudo, mas é a maior confusão... (Affonso, 66 anos).

Meu filho hoje em dia tem tudo sem sair daqui. O que quiser acha. Posso dizer que isso daqui, se tornou uma Copacabana. (Marlúcia, 60 anos).

O Terreirão tem crescido verticalmente, de forma vertiginosa. As casas de um só piso dando lugar às casas de três andares. Os pequenos prédios improvisados, que tem por objetivo atrair inquilinos, estão cada vez mais constantes e presentes.

De forma nítida, observa-se a existência de uma divisão entre os moradores do Canal das Tachas: proprietários (dono de imóveis e com título de “cidadania plena” na comunidade) e inquilinos (moradores eventuais, sem necessariamente grande vínculo com a localidade), que demandam morar bem mais barato no Recreio, sem diversos direitos de cidadania. O atual presidente da Associação de Moradores do Canal das Tachas, contava assombrado sobre a “impertinência” de uma chapa de oposição à diretoria da Associação que foi impugnada por ter entre seus membros diversos inquilinos, logo, “não-elegíveis”.

Dinâmicas de consumo e de reorganização familiar

Um aspecto importante identificado pelas conversas com os ‘antigos’, em deliciosas tardes de recordação foi a sua impressão sobre o impacto desta segunda transformação sócio-econômico-cultural produzida pela urbanização da favela e a expansão da ocupação do Recreio, em virtude dos primeiros sinais de saturação da Barra da Tijuca, bairro vizinho. Agora, não mais loteamentos e casas para a classe média que queria um estilo de vida despojado e próximo à natureza, mas a chegada de uma emergente classe média, vinda de outros bairros da cidade e que desejava conforto, praia, shopping center e muitas vezes, status social.

O Favela-bairro, desenvolvido pela prefeitura, no começo dos anos 90, trouxe dragagem, urbanização e infraestrutura mínima. As casas se transformaram. De improvisados barracos, casas de tijolo, com água e esgoto, luz elétrica, televisão. A antiga moradia deu lugar a casas mais amplas e confortáveis. Casas maiores e melhores para se cuidar e se arrumar despendem mais tempo do que o velho barraco despendia. Com mais espaço, a convivência intradomiciliar parece ter se intensificado, com mais tempo gasto dos sujeitos dentro das suas moradas.  Parece surgir uma conduta pessoal mais “contida”, “reservada socialmente”, com os indivíduos reduzindo o contato cotidiano entre si, representada por diversos entrevistados como uma evolução diante de modos “inadequados” de antes.

Ah, meu filho, antes, a minha casa era de teto de amianto, muito quente e pequena. Eu ficava aqui na calçada a tarde toda, tomando uma cervejinha e fritava uma carninha. Aí, vinha a vizinha dali (aponta para um lado) e de lá (aponta pata outro) e ficávamos de papo até altas horas. Às vezes eu tava em casa e a minha vizinha me gritava. Aí, a gente ficava ali, do outro lado da calçada até de madrugada. Mas isso era coisa de favelada né? Vê se os bacanas fazem isso? Não. Eles têm a privacidade, a vida na casa deles. Agora, com minha casa maior, depois de tudo que mudou por aqui, eu gasto muito mais tempo organizando, arrumando minha casa, faço com gosto, sabe? Agora vale a pena ficar dentro de casa, vendo TV, com os netos... Agora a gente não é mais favelado, isto é um bairro popular. (Maria Aparecida, 71 anos).

Sentimentos paradoxais e contraditórios: “melhorou, mas antes éramos mais felizes”, apareceram nos discursos de outros entrevistados.

Eu criava galinha, tinha sempre um vizinho que as vezes não estava muito bem. Então, eu dava uma galinha pra ele, ou então, quando eu matava uma galinha, dava uns pedaços para ele e assim, vice-versa. Hoje em dia, não se tem mais isso, todo mundo está preocupado com o seu, preocupado em construir ou aumentar a moradia. Não respeita mais o espaço do outro, não é mais como antes. Hoje o aluguel está dando mais dinheiro que criar galinhas. Então, fica desse jeito que você está vendo, (apontando para as casinhas de três andares), cheio de gente empilhada uma em cima da outra, não há mais quintal para se criar um bicho, fazer uma hortazinha, todos estão aumentando suas casas para poder ganhar mais dinheiro alugando as quitinetes para o povo que vinha de fora. (Januário, 57 anos).

            Existem hoje menos espaços de convivência coletiva, campos de futebol, áreas de lazer, como a que deu origem ao apelido local. Espaços informacionais de convivência e de encontro narrado pelos próprios entrevistados. A ideia corrente entre os narradores, de que o tempo de lazer e de permanência na comunidade diminuiu, pode ser verdadeira, pelo boom de transportes no Terreirão que permitiu o rápido deslocamento para dentro e fora da comunidade. Como eles disseram, “as pessoas estão sempre de passagem”. Além disso, as duas dezenas de lan houses existentes no Terreirão vivem repletas de frequentadores, especialmente jovens, em viagens e contatos virtuais com outros lugares do mundo. Não existe mais a convivência forçada pelo limitante isolamento geográfico de outrora.

 Uma nova representação “não-favelada”, que surgiu nas falas de vários de nossos entrevistados, coincide com um novo status trazido pelo desenvolvimento de uma comunidade pós-rural.

 Parece ocorrer um fenômeno de diluição das fronteiras da Comunidade. As novas construções imobiliárias no coração do Canal das Tachas, trazendo um novo grupo social, com outras referências culturais para convivência, parecem ter alterado também a dinâmica psicossocial do local. Além do mais, a transformação do Terreirão em um centro do comércio popular da região, atraiu uma multiplicidade de público frequentador, ocasionando uma intensa troca entre os locais e os “bacanas”, como são conhecidos os moradores de condomínio de classe média, classe média alta da região.

Reflexões sobre os limites e possibilidades de nossa intervenção no território: tentando chegar a conclusões.

Efeitos da globalização da vida, o impacto das novas tecnologias e a ideologia individualista contemporânea têm impactado a lógica comunitária, diferente de padrões hegemônicos globais. Vê-se nos relatos dos “antigos”, moradores que há décadas vivem no terreirão e que foram entrevistados, sentimentos de nostalgia e saudosismo, fruto de quem vive a dissonância entre o passado e o presente. Objetivamente a vida melhorou, há mais acesso e conforto. Os rigores do isolamento não são sentidos há tempos. Mudanças nas relações, maior abertura para a cidade, menos laços de confiança – “podíamos deixar qualquer coisa que ninguém roubava” (Renato Ossione, 56 anos).

Será que os laços comunitários foram extintos? Certamente não, disseram todos os entrevistados. Houve diversas transformações do Terreirão em relação ao tempo passado, mais isolado, intimista e solidário. Mas a comunidade não tem parado de se transformar, argumentam os “antigos”. Foi assim nos anos 60/70 quando o ciclo da atividade agrícola chegou ao fim no Recreio e muitos moradores deixaram de ser assalariados das granjas locais e passaram a viver de horta e criação de subsistência e a conviver com o início dos loteamentos na região; foi assim nos anos 90/00 quando a especulação imobiliária se intensificou, o bairro cresceu vertiginosamente em termos de população e o Terreirão se transformou em um espaço de serviços e moradia para a região. O Terreirão prosperou economicamente. Mas nossos informantes não acreditam que existe uma ameaça a um vínculo comunitário: “um orgulho para nós, eu considero todos aqui irmãos, é uma irmandade” (Laurismar Gaudêncio, 56 anos).

Um elemento que continua extremamente presente nos discursos é a necessidade de aproveitar todas as oportunidades de prosperar sem perder os vínculos do passado. A construção de necessidades coletivas como um amálgama comunitário ainda parece sobreviver à onda individualizante trazida pelos novos tempos. Inclusive uma consciência em tom de autocrítica sobre o desenvolvimento acelerado da economia dos aluguéis de quitinetes, que tem trazido muitas pessoas estranhas para o convívio cotidiano, gerando novas tensões sociais, surgiram nos discursos. Atualmente, há o desejo de muitos de criar critérios consensuais que limitem essa prática e preservem a comunidade.

Até quando alguém reclama na Associação de moradores, tem razão quando diz que esse esgoto foi feito para 3.050 pessoas. Hoje em dia, tem três vezes mais. Então, como é que vai dar vasão? Quero dizer que a Cedae botou água para 3.000 pessoas. Tem quase 10.000 moradores aqui dentro. A culpa maior é dos moradores. Nós mesmos. Eu moro aqui, minha casa é essa de 3 andares. E o que eu fiz? Dividi aqui embaixo e aluguei. Contribuí para o aumento de moradores, o que seria somente para mim e minha família, agora tem que ser dividido por mais três famílias. (Valtecir, 56 anos).

A pesquisa foi realizada com os vinte informantes-chave, homens e mulheres antigos moradores do Terreirão, Canal das Tachas. Foram ouvidas suas impressões sobre a história e a memória da localidade. Esta história “reconstituída”, repleta de fatos históricos coletivos e singulares, foi “devolvida” aos seus donos conforme combinado: em praça pública, com presença de grande público que debateu, aprendeu, acrescentou, divergiu sobre todas as histórias detalhes e reminiscências trazidas pelos entrevistados, em um exercício prático de construção de memória social.

 Segundo a síntese proposta por Celso Sá (2005), autor profundamente influenciado por Halbwachs, cinco são os princípios unificadores da memória social: a) a memória tem um caráter construtivo, e não meramente reprodutivo; b) em última análise, são as pessoas que se lembram e se esquecem; c) a memória depende da interação e da comunicação sociais; d) memória e pensamento sociais estão intrinsecamente associados; e) motivação e sentimento desempenham um papel na construção da memória (SÁ, 2005).

Especificando cada um desses princípios unificadores temos, segundo Sá, alguns elementos centrais:

        • Motivos e sentimentos são responsáveis em boa parte pelo conteúdo da memória social. As determinações sócio-histórico-culturais da memória operam em grande parte pela modelação de motivos e sentimentos comuns em um conjunto social. O público leigo, a arte e a ficção científica associam fortemente a memória a experiências afetivas.
        Por essa via, percebe-se que o conceito de memória social é uma espécie de guarda-chuva conceitual que designa o conjunto enorme das instâncias sociais da memória. Para buscar esmiuçar as diferentes formas em que a chamada memória social se manifesta, é que encontramos interessante proposição de Celso Sá (2005), que mesmo sem esperar esgotar o assunto e tendo um inegável mérito analítico, apresenta uma proposta com um conjunto de diferentes formas de memória. Todas compõem este enorme continente chamado memória social. No entanto, pela dimensão, forma e abrangência se diferenciam umas das outras. Propõe-se, então, que se distingam entre sete diferentes instâncias da memória social: as memórias pessoais, as memórias comuns, as memórias coletivas, as memórias históricas (que, por sua vez, se distinguem em memórias históricas documentais e memórias históricas orais), as memórias práticas e as memórias públicas. (SÁ, 2005).

        Pela proposição do autor, todas essas memórias, coexistem na construção das memórias das pessoas e das sociedades. No entanto, ao analisarmos memórias específicas podemos constatar que ela se aproxima mais de um tipo de memória do que de outro. Há memórias que claramente podem ser avaliadas como sendo memórias públicas, enquanto outras podem ser interpretadas como memórias coletivas. (SÁ, 2005).

        No caso dos moradores do Canal das Tachas entrevistados, presume-se que poderiam ser identificadas como uma articulação entre memórias pessoais, memórias comuns e memórias históricas orais.

        As memórias pessoais apresentam-se a partir de discursos pretensamente singulares, particulares, a respeito de histórias de vida, e elementos privados das existências, porém são também socialmente construídas:

        Memórias pessoais não são meramente individuais, mas sociais, porque socialmente construídas. (…) O termo “pessoais” implica uma dimensão social.  A “pessoa” é produto de processos de socialização, desempenha papéis sociais e é dotada de uma identidade construída através da interação social. (...) As memórias pessoais são sociais, mas é ao passado da pessoa que elas são referidas, mesmo se envolvem fatos sociais, culturais ou históricos de que ela tenha participado ou ouvido falar. Em termos de pesquisa empírica, memórias pessoais tendem a ser estudadas sob o rótulo de memórias autobiográficas. Incluem-se neste domínio de pesquisa as histórias de vida, que supõem um esforço de reconstrução global e completo da memória pessoal (SÁ, 2005, p. 74).

         

        Para dar conta das semelhanças circunstanciais entre as memórias pessoais de um conjunto de sujeitos que possuem forte vinculação intersubjetiva, pois trata-se de um pequeno grupo comunitário, mas que não chega a formar memórias coletivas (ou seja, mais amplamente compartilhadas), tipicamente presentes em estruturas sociais mais amplas, as memórias comuns:

        podem ser vistas, portanto, como uma coleção de numerosas memórias pessoais acerca de um mesmo objeto, que se desenvolveram independente umas das outras, por força de uma participação comum em um dado período histórico, em uma dada configuração cultural ou em um dado estrato social. Por terem sido expostas aos mesmos fatos, as mesmas informações, aos mesmos gostos, etc. as pessoas guardariam deles aproximadamente a mesma lembrança (SÁ, 2005, p. 74-75).

        Parece adequado afirmar que os entrevistados do Terreirão possuem, apesar de existirem aspectos singulares de suas reminiscências, diversos elementos de memórias comuns, fruto de longa convivência em um ambiente social específico, a comunidade, durante muitas décadas de vida. Além disso, encontrou-se, a partir das entrevistas, o que Celso Sá chamou de “memória da história”, a partir de memórias históricas orais.

        As memórias históricas orais fazem fronteira com a história que não foi escrita, englobando os fenômenos de memória que constituem as fontes não documentais com que lida a história oral. O psicólogo social, à diferença do historiador, não está comprometido com a “verdade histórica”, mas apenas com o estudo do processo e das circunstâncias pelos quais as memórias são construídas, reconstruídas e atualizadas por conjuntos sociais geográfico, cultural ou politicamente circunscritos. A memória oral é uma "memória da história" que, por contar com escassos documentos sobre os quais se apoiar ou por repudiar aqueles porventura existentes, vale-se apenas de recursos não exteriorizados, como a rememoração constante e a transmissão oral (SÁ, 2005, p. 75).

        Ao realizar a presente investigação, conseguiu-se, ao que parece, produzir rico material de memória social, em especial articulando suas diversas dimensões: memórias pessoais, memórias comuns e memórias históricas orais.

        Cópia do relatório final da pesquisa foi entregue à Associação de Moradores. Um fragmento da história de uma população está de volta a seus donos.

        Ter sido bem sucedida na primeira ação com a comunidade permitiu a nossa equipe de Psicologia Comunitária realizar pelos anos seguintes uma série de outras intervenções comunitárias naquela localidade.

        Entre o ouvinte e o narrador nasce uma relação baseada no interesse comum em conservar o narrador que deve poder ser reproduzido. A memória é a faculdade épica por excelência. Não se pode perder, no deserto dos campos, uma só gota irisada que, nômades, passamos do côncavo de uma para outra mão. A história, deve reproduzir-se de geração em geração, gerando muitas outras, cujos fins se cruzem, prolongando o original, puxados por outros dedos. Quando Sherazade contava, cada episódio gerava em sua alma, uma história nova, era a memória épica vencendo a morte em mil e uma noites. (BOSI, 2003, p.90).

         


        NOTAS:

        (1)Para mais informações sugere-se a leitura do artigo “Diário de campo: reflexões epistemológicas e metodológicas”, de Kátia Regina Frizzo, publicado em Introdução à Psicologia Comunitária, sob organização de Jorge Castellá Sarriera e Enrique Teófilo Saforcada, pela editora Sulina em 2010.

        (2)Nome da embarcação envolvida em famoso acidente náutico ocorrido em 31 de dezembro de 1988, quando o barco que iria ver os fogos de artifício virou no mar por superlotação e 55 pessoas morreram.

        (3) Chama-se gentrificação, uma tradução literal do inglês "gentrification", o fenômeno que afeta uma região ou bairro pela alteração das dinâmicas da composição do local, tal como novos pontos comerciais ou construção de novos edifícios, valorizando a região e afetando a população de baixa renda local. Tal valorização é seguida de um aumento de custos de bens e serviços, dificultando a permanência de antigos moradores de renda insuficiente para sua manutenção no local cuja realidade foi alterada.

        REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

        ARRUDA, Angela (Org.). Representando a alteridade. Petrópolis: Vozes, 1998.

        BARTLETT, F. Remembering – A study in Experimental and Social Psychology. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

        BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1998.

        BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade – Lembrança dos velhos. Companhia das Letras: São Paulo: 2003.

        CONNERTON, Paul. How societes remember. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2003.

        GUARESCHI. Relações comunitárias, relações de dominação in CAMPOS, REGINA HELENA DE FREITAS (Org.). Psicologia Social Comunitária – da solidariedade à autonomia. Petrópolis: Vozes, 2000.

        HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro Editora, 2006.
        ______. Les Cadres Sociaux de la mémoire. Paris: Albin Michel, 1994.

        MAIOLINO, A. L. G. Espaço urbano e subjetividade: um foco especial sobre a favela do Canal das Tachas. 2005. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Disponível em: www.scielo.br

        MINAYO, M.C. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo-Rio de Janeiro: Hucitec-Abrasco, 1992.

        SÁ, Celso Pereira (Org.). Memória, imaginário e representações sociais. Rio de Janeiro: Editora Museu da República, 2005.

         

        Recebido: 01/10/2014
        Aceito: 03/12/2014

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