LIPIS

AMOR ROMÂNTICO E SEUS CONTRASTES: Da pedagogia aos seus atributos culturais contemporâneos

Alessandro Melo Bacchini

Doutorando em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Mestre em Psicologia Clínica e Social pela Universidade Federal do Pará (UFPA), membro do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental (LPPF – Belém/PA) e pesquisador Associado do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social – LIPIS/PUC-Rio.

Junia de Vilhena

Psicanalista.Membro efetivo do CPRJ Dra em Psicologia Clínica. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social – LIPIS da PUC-Rio. Pesquisadora da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine, CRPM-Pandora. Université Denis-Diderot Paris VII.  Investigadora-Colaboradora do Instituto de Psicologia Cognitiva da Universidade de Coimbra.

Resumo: A ilusão de uma satisfação narcísica pela via da completude, aliada ao imaginário cultural de que o amor salvaguardaria o sujeito dos males da existência sustenta nossa crença no amor romântico como central em nossas vidas. No entanto, é possível sustentar este ideal em tempos  de liquidez e  frouxidão dos laços sociais? Apesar das mudanças culturais havidas desde a época de Freud a psicanálise reitera seu lugar ao tratar do amor e da sexualidade como cerne de suas questões.
Palavras-chave: Ideais do Eu, Romantismo, Narcisismo, HIV/Aids

ROMANTIC LOVE AND ITS CONTRASTS: From pedagogy to its cultural contemporary attributes

Abstract: The illusion of a narcissistic pleasure through completeness, allied to the cultural imaginary that love would safeguard the subject from the evils of existence sustains our belief in romantic love as central in our lives. However, is it possible to sustain this ideal in times of liquidity and laxity of social ties? Despite the cultural changes occurred since Freud's era, psychoanalysis reiterates its place while treating romantic love and sexuality as the core or its subjects.
Key-words: Ideals of the Self, Romanticism, Narcissism, HIV/Aids

“DE TUDO AO MEU AMOR SEREI ATENTO”

            Vinicius de Moraes - Soneto de Fidelidade


Diversos estudos denunciam as noções empreendidas pela medicina e pela psiquiatria dos séculos XVIII e XIX acerca da sexualidade como enraizada na diferença sexual anatômica e, além disso, tomando esta como suporte biológico de explicação de sentimentos, atrações e condutas entre homens e mulheres. Para este eixo paradigmático, em grosso-modo, o casamento era a solução para a composição frágil e degenerada das mulheres, pois, sob a vida familiar e submissa ao marido, serviriam de medidas de contenção à sua natureza.

No que tange ao sexual, Roudinesco (2003) reafirma o posicionamento nesse ínterim ao sustentar que o prisma médico e científico embasava-se na opinião de um instinto genital que se afloraria na puberdade e teria a função biológica da reprodução. Com isso, existia uma concepção de normalidade definida a partir da vida sexual do adulto pelo ato entre homem e mulher destinado à procriação, e com isso, cria-se a ideia de uma aberração sexual voltada para qualquer ato que fugisse a essa regra.

A clínica psicanalítica, por sua vez, ao escutar o paciente neurótico, abre caminho para uma nova forma de se entender a sexualidade desde os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) quando Freud afirma:

[...] os sintomas representam um substituto para os impulsos de uma fonte cuja força se origina do instinto [pulsão] sexual. O que sabemos da natureza dos histéricos antes de adoecerem – e eles podem ser considerados típicos de todos os psiconeuróticos – e sobre as ocasiões que precipitam sua doença, está em completa harmonia com este ponto de vista (FREUD, 1905, p.167).

Destes ensaios freudianos, destaca-se uma outra maneira de pensar, pois depreende-se da escuta clínica elementos presentes na história de vida e desenvolvimento psicossexual de cada neurótico. De acordo com Freud (1905), a sexualidade pode se apoiar no orgânico, mas transcende-o, tornando-se fundamental na vida psíquica.

 

Assim, Freud contrapõe o pensamento corrente da medicina e psiquiatria de sua época com o conceito de pulsão, face ao de instinto, pois aquele subverte o segundo, desvirtuando qualquer tentativa de amarração entre a vida biológica e suas supostas determinações para a vida psíquica. Por outro lado, há que se considerar o fato de que Freud era um homem de seu tempo, e alguns ditames de conduta acerca da postura do homem e da mulher na sociedade e no relacionamento conjugal insistem em emergir em sua escrita.

 

Para abordar o amor romântico, há que se levar em consideração a influência exercida por Arthur Schopenhauer no pensamento de Freud. Para o filósofo moderno, o impulso sexual objetiva a vontade no mundo dos fenômenos, sendo responsável pela autoconservação e pela vontade de viver. O homem é a própria realização desse impulso, uma vez que é resultado da consumação sexual. Desta forma, o que nos move é a vontade primária e inconsciente de perpetuação da raça humana. Schopenhauer se apoia na física e na fisiologia do amor, aproximando o amor ao impulso sexual. Assim, toda paixão tem origem no instinto sexual. Mais ainda, como o próprio indivíduo é a materialização da vontade de viver e a vontade é sempre insaciável, pode-se dizer que a infelicidade fica reservada à própria natureza do indivíduo sendo a satisfação sempre temporária. Uma vez que satisfeito o desejo de maneira duradoura, faz-se sentir o sentimento de tédio (LEJARRAGA, 2002).

 

Adiantando um pouco as possibilidades de discussão que se delineiam a seguir, podemos recorrer à análise empreendida por Bauman (2004) em seu trabalho intitulado Amor líquido. Destacando o diálogo presente em Platão – O Banquete –, amar querer gerar, em que o amante busca para isso a coisa bela observa-se no texto que o amor se destina não a coisas prontas, mas à transcendência, ao estímulo criativo, que possui como peso o fato de não possuir garantia alguma.

 

O amor, dessa forma, quando atingiria seu objetivo maior de consumação, cairia na armadilha da finitude, pois a coisa pronta desencadearia na secessão de seu terreno incerto de apostas, de seu vazio desconhecido, que, no entanto, lhe é motor e criador. Daí cabe um primeiro impasse: em nossos tempos de investimentos e créditos, com suas parcelas de riscos e possibilidades calculados, em que o indivíduo se sente cada vez menos amparado por um laço social e cultural que lhe garantiria certo conforto aos encontros com o outro, haveria espaço para uma aposta tão incerta?

Segundo Vilhena (1999 pag.133/134)

[...]Ora, talvez o nosso erro esteja justamente em manter como ideal, um modelo de família fundado no amor romântico, que seria incompatível com os tempos atuais, uma vez que o amor, como balizador único de nossas escolhas pode trazer algumas inconveniências e riscos, como veremos a seguir....Em nossa moderna cultura o indivíduo vale muito mais do que a comunidade; nossos laços são estabelecidos em função muito mais de uma satisfação pessoal do que de alianças e de tradições [...] Desta forma vamos construindo marcas identitárias cada vez mais segregadas e com menos elasticidade e plasticidade social.


Para não escorregarmos em uma possível máscara nostálgica, devemos considerar que o peso de estar numa sociedade em crise e em transição não necessariamente reflete a características únicas de nossos dias. Foi em um período também de incertezas, embora outras, que Rousseau, com a marca do antigo regime do século XVIII, desenvolve suas conjecturas do que seria um marco das origens do romantismo burguês.

 

Para Rousseau (apud BLOOM, 1997), o homem enquanto ser civilizado afasta-se da natureza, seu corolário ideal, e somente um retorno a esta lhe garantiria a felicidade. Da oposição entre natureza e sociedade, no entanto, o homem não necessitaria retomar um estado anterior e primitivo, mas poderia, ao invés disso, buscar uma maior integração entre o homem natural e a sociedade através de caracteres amoroso-políticos do amor romântico. Para tanto, Rousseau propõe as noções de amor-de-si e amor-próprio. Enquanto o amor-de-si delineia uma bondade natural para consigo e um sentimento de igualdade com o outro, o amor-próprio é desenvolvido no encontro com o outro para salvaguardar o indivíduo, constituindo ao mesmo tempo a base da sociabilidade e a causa da alienação ao ser traduzida como tentativa de ser maior que o outro para a sobrevivência. A maneira de utilizar este sentimento a favor da civilização seria ligá-lo ao sentimento natural de piedade. Deve-se educar o amor-próprio e a imaginação.

 

O desejo sexual é da ordem do natural em Rousseau, e tem como meta a reprodução. Como seu objetivo é a felicidade, deve-se ponderar os extremos do amor entre as maiores conquistas da alma e suas possíveis tragédias. O sexo, que não é somente físico, mas constituído à imagem de si e do outro, deve ser educado para que se possa atingir a felicidade. Assim, a pedagogia rousseauriana garantiria um desejo civilizado e a base para a constituição da família e da sociedade. Nas palavras de Lejarraga (2002, p.31):

O artífice da construção da paixão amorosa é a imaginação. Com a imaginação, cria-se a imagem idealizada da pessoa amada, como único objeto que pode verdadeiramente produzir uma satisfação sexual plena. Desse modo, a imaginação cria aspirações que exigem, para sua total realização, que o sexo se conjugue ao amor (...) A teoria rousseauriana do amor romântico é uma proposta amorosa ideal, que combina a sexualidade natural do homem com os ideais mais avançados da vida social.

 

De acordo com Lejarraga (2002), o modelo de amor romântico, ao buscar a máxima felicidade, busca conciliar casamento, sexo e um amor baseado na reciprocidade e na indissolubilidade. Para tanto, deve-se ultrapassar o amor-de-si, do interesse puramente individual, para o amor ao outro, que carrega no mesmo bojo a pessoa amada, a família e a sociedade.

Para dar conta desse ideal, tem-se em Rousseau (1995, p.423) o romance pedagógico Emílio. A título de exemplo, tem-se o livro V da obra– Sofia ou a mulher – que se dedica ao encontro de uma mulher para Emílio. Assim como em sua visão, ele é homem e logo deverá encontrar uma mulher com ''o que convém em seu sexo para ocupar seu lugar na ordem física e moral''. Inicia-se uma comparação entre o sexo do homem e da mulher, bem como suas devidas conformidades.

 

A mulher em tudo pode ser comparada ao homem (órgãos, faculdades e necessidades). No entanto, alerta Rousseau, isso se faz valer ''Em tudo o que não diz respeito ao sexo'' (ROUSSEAU, 1995, p. 423).

 

No que diz respeito ao sexo, a mulher é bastante diferente e a tentativa de estabelecer relações esbarraria na dificuldade em separar o que seria do sexo e o que seria da espécie. No entanto, pela anatomia comparada, Rousseau determina que tudo o que é semelhante provém da anatomia e tudo o que é diferente deriva do sexo.

 

Tema fundamental aqui presente é a hipótese de que as semelhanças e diferenças entre os sexos deve influir na moral. Nas palavras de Rousseau:

"(...) um deve ser ativo e forte, o outro deve ser passivo e fraco: é necessário que um queira e possa, basta que o outro resista pouco. Estabelecido este princípio, segue-se que a mulher é feita especialmente para agradar ao homem. Se o homem deve agradar-lhe por sua vez, é necessidade menos direta" (ROUSSEAU, 1995, p.424).

 

Vemos aqui uma posição bem demarcada acerca das condutas que deveriam ser adquiridas pelo homem e pela mulher para que, assim, se pudesse aspirar à máxima felicidade, bem como à conjugação dos termos: outro, família e sociedade. No entanto, o regime de funcionamento do período moderno, muito mais voltado para a preservação de valores e condutas enraizadas em princípios morais, parece um terreno fértil e adequado para tal ímpeto pedagógico – por mais que a aspiração à liberdade do indivíduo constituísse forte característica da ascensão burguesa.

 

Diante desse quadro, como pensar no amor como ainda sendo uma das principais apostas de nosso tempo face ao desamparo inerentemente humano? Nas palavras de Maurano (2006), parecemos depositar no amor e na sexualidade grande parcela de nossas esperanças para a resolução dos impasses de nossa vida, ainda que vivamos na chamada “era da libido”.

 

Acerca dessa oposição – o amor pensado em termos da moralidade moderna em contraponto aos novos caracteres dos tempos atuais –, Bauman (2004) observa a crescente multiplicidade de modalidades de comportamentos que são inseridos na palavra amor: não necessariamente um amor para toda a vida, mas aquele encontro passageiro e mesmo uma noite de sexo, podem ser descritos como amor, em algo que se vive ou que se faz. Para o autor, a definição romântica de amor parece encontrar grandes entraves para se fazer valer em nosso tempo.

 

Acerca dessa trama, a psicanálise reitera seu lugar ao tratar do amor e da sexualidade como cerne de suas questões, pois mesmo que atualmente o tema do amor seja atravessado por inúmeras questões que o diferencia do momento histórico em que Freud desenvolve a psicanálise, a aposta no amor como redenção ainda permanece central.

“AS COISAS BELAS DA VIDA NÃO PASSAM DE ILUSÃO” ?

            Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) – Os sofrimentos do jovem Werther.


O estudo do narcisismo – termo cunhado por Freud (1910) pela primeira vez em Leonardo da Vinci e uma Lembrança de sua infância – tem como uma das principais vias de acesso ao narcisismo o estudo da vida amorosa. Nesta, como já amplamente debatida, duas são as possibilidades que se mostram: ama-se a si mesmo em uma escolha narcísica de objeto, ou ama-se o pai que protege e a mãe que cuida quando a forma de amar é anaclítica.

 

O amor do tipo narcísico revela a predominância do narcisismo primário. Já a escolha anaclítica faz referência à forma objetal de amor. Deve-se notar que ambas as escolhas amorosas se apresentam, em proporções variadas, a todos os seres. O amor por quem cuida e protege, ou seja, a escolha anaclítica de objeto faz referência à satisfação das pulsões do eu e, levando em consideração o estudo dos três ensaios, à noção de apoio. Esta, empreendida em 1905, faz alusão à relação entre a satisfação das necessidades biológicas e a subversão destas pelas pulsões sexuais.

 

Freud (1905) entende que, de modo geral, aqueles que exercem os primeiros cuidados ao bebê são também os primeiros objetos sexuais. Anos mais tarde, Freud (1910) distingue dois grupos de pulsões, do eu/autoconservação e sexuais. A relação que se estabelece é: as pulsões sexuais encontram seus objetos por apoio às pulsões de autoconservação.

 

Julia Kristeva (1988) analisa o amor a partir da teoria narcísica freudiana, no sentido em que a libido, antes de ter uma denominação relacionada à morte, passa por uma primeira alteração em sua onipotência, que é: a existência de um outro para mim se revela um grande problema.

 

A teoria freudiana aponta para o narcisismo primário – em detrimento da posição de Eros – como sendo este o fundamento da vida psíquica, mesmo que tal reino narcísico logo esteja entregue aos domínios da realidade. Freud (1914), como sabemos, relaciona o estado amoroso ao narcisismo devido a duas possíveis modalidades de escolha: narcísica e por apoio. Deve-se destacar de acordo com Hanns (1996, p. 219), no Dicionário comentado do alemão de Freud, que o termo apoio – anlehnung –, ou escolha de objeto do tipo anaclítica – anlehnungstypus der objektwahl –, possui duas maneiras centrais de entendimento: “Encostar-se em”, que “designa um encostar-se […
] nas pulsões de autopreservação para percorrer com estas as rotas já abertas pelas pulsões do Eu”, ou então; “Apoiar-se em modelo”, “[…] Anlehnung é utilizado de forma menos física, seu uso é figurativo, referindo-se a tomar um modelo por empréstimo ou a utilizar um modelo preexistente”.

 

Kristeva (1988, p.42), de forma bastante clara, destaca essa dupla de escolha objetal da seguinte forma: “[...] por gratificação narcísica pessoal (neste caso, Narciso é o sujeito) e por delegação narcísica (neste caso, Narciso é o outro, para Freud – a mulher)”. Desse ponto de vista, nossas escolhas objetais possuem Narciso como destino último. O Ideal do Eu entra nessa via também ao garantir a transferência do desejo para um objeto dotado de toda magnitude do bem e do belo, e em consonância com os códigos parentais e sociais.

 

Associa-se a escolha anaclítica às pulsões do eu/autoconservação e essa escolha é, por sua vez, relacionada por Freud (1914) à supervalorização sexual advinda do narcisismo. Dito de outra forma, a escolha anaclítica tem como característica a supervalorização sexual por transferência do narcisismo infantil ao objeto sexual – supervalorização essa que não se verifica na escolha narcísica propriamente dita. Tem-se assim a origem do estado de apaixonamento e, como resultado, um eu empobrecido libidinalmente. Mas, questiona Lejarraga (2002), por qual motivo se deve opor a escolha narcísica à escolha anaclítica se a característica desta é a supervalorização sexual que advém justamente do narcisismo? Ela argumenta:      

Se a superestimação sexual é, como diz Freud, ‘marca inequívoca que consideramos como estigma narcisista’, e por outro lado, um traço diferenciador da escolha anaclítica, a escolha anaclítica se tornaria também narcísica, se desfazendo a diferença entre amor de objeto e amor narcísico. Ambas as escolhas portariam a marca do narcisismo infantil, que existe em todo ser humano (LEJARRAGA, 2002, p.89).

 

Qual seria então a diferença? Na escolha narcísica, sustenta-se a imagem narcísica e na escolha anaclítica, a libido narcísica investida nos objetos, idealizando-os. A escolha anaclítica diz respeito ao amor de objeto em sua forma plena, com o estado de apaixonamento e supervalorização sexual, fazendo coincidir a escolha anaclítica e a libido objetal. A escolha narcísica implicaria então numa libido narcísica? Para ir adiante nesse questionamento, será necessário analisar três polaridades presentes no estudo freudiano sobre o Narcisismo (1914).

Em Para introduzir o narcisismo (FREUD, 1914), a função do ideal se assemelha à função da idealização. No entanto, há de se notar uma primeira diferenciação fundante a partir da concepção de sublimação, pois se esta permite o manejo pulsional para lidar com o ideal em busca da perfeição egoica, na idealização, o engrandecimento do objeto empobrece o eu de tal modo que impede seu direcionamento aos próprios ideais.

 

Na idealização há uma supervalorização de características inexistentes do objeto, mas faz referência à realidade no sentido de investir em um objeto que pressupõe uma existência. Difere-se novamente da formação do ideal, pois neste ocorre um investimento à noção imaginária de perfeição, impondo exigências das mais variadas ao eu: condição para recalques, repressões, idealizações e sublimações (LEJARRAGA, 2002).
           

Freud (1921) afirma logo no início do capítulo VIII de Psicologia das massas e análise do eu que:

É no caso desenamoramento [das pulsões ternas da primeira infância inibidos em sua meta] que desde o início nos saltou à vista o fenômeno da superestimação sexual. (...) O que aí falseia o juízo é o pendor à idealização. Com isso nós vemos facilitada a orientação; percebemos que o objeto é tratado como o próprio Eu, que então, no enamoramento, uma medida maior de libido narcísica transborda para o objeto. Em não poucas formas de escolha amorosa torna-se mesmo evidente que o objeto serve para substituir um ideal não alcançado do próprio Eu (FREUD, 1921, p.71).

 

Em se tratando do apaixonamento analisado nesta passagem, pode-se compreender que o objeto adquire o estatuto de um ideal, e nesse sentido, torna-se idealizado. Tal escolha anaclítica faz referência à idealização como aquele que cumpre a condição infantil do amor. Nesse sentido, como afirma Lejarraga (2002), a idealização no apaixonamento significa pôr o objeto no lugar daquele que oferece a sensação infantil de plenitude e onipotência.

É clara a presença de um componente social na formação do ideal no trabalho de Freud (1914) sobre o Narcisismo, o que faz com que se possa compreender a idealização como um misto tanto de alusão à perfeição narcísica infantil quanto às valorações socialmente construídas.

 

 Esses sentidos de idealização e o amor pela via da condição infantil pode ainda ser relacionada à tese de Lejarraga (2002) que, aproxima a noção de idealização à ideia de supervalorização sexual. Estas, por sua vez, são referidas à noção de ternura presente em Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor (1912). Assim, esta autora afirma que poderiam ser destacadas duas formas de idealização: na primeira, referente à supervalorização descrita nos Três ensaios (1905), superestimam-se os órgãos genitais e o que a ele se associa, e; na segunda, idealiza-se o objeto ou o Eu, que restitui a condição narcísica imaginária.

 

No entanto, deve-se ressaltar que a distinção seria puramente elucidativa, pois ambos os sentidos de idealização descritos equivalem ao ideal sexual e ao ideal amoroso correspondentes ao romantismo amoroso.

 

A partir da leitura de Lejarraga (2002), podemos tecer ainda algumas conjecturas entre eu ideal, ideal do eu, idealização e apaixonamento. No que diz respeito ao tipo de apaixonamento veiculado pelo eu ideal, dá-se um investimento exclusivo no objeto, no sentido que nenhum outro objeto poderá ocupar tal posto – trata-se de uma espessa idealização.

 

Já no apaixonamento, que se veicula ao ideal do eu, ocorre um investimento não na ordem da exclusividade, mas no sentido de um privilégio. Existe aí uma idealização menos radical, onde o ideal perde o estatuto do absoluto. Assim, nota-se que, em termos do imaginário cultural, a paixão se encontra vinculada às características da escolha objetal regidas pelo eu ideal, enquanto que no amor, faz-se correspondência aos mecanismos mais relativizados do ideal do eu. Dito de outra forma, enquanto a paixão veicula vestígios do narcisismo primário, pretendendo a própria fusão do eu ao objeto, o amor, por sua vez, possui um outro trabalho diante da onipotência narcísica. Nele, reconhece-se o outro e as possibilidades de frustração, rebaixando e flexibilizando as pressões de narciso (LEJARRAGA, 2002).

 

No amor, “sabe-se” de algum modo da impossibilidade da onipotência narcísica, adiam-se recompensas e faz-se valer um trabalho maior do princípio da realidade, diferentemente da paixão, em que a nostalgia do estado de plenitude emerge como alvo a ser alcançado.

 

Dessa maneira, falar do amor e do apaixonamento implica considerá-los como um arranjo único nos moldes de nossa cultura, que têm início na constituição da sociedade moderna. Esses modelos de amor e paixão remetem às duas vertentes de amor rousseauniano, que se pretende abordar como modelo no presente estudo: o amor conjugal e o apaixonamento. Isto, pois como afirma Lejarraga (2002, p. 105): “A proposta rousseauniana de tornar o apaixonamento base da família e da sociedade, inclui o destino amoroso da paixão, derivando o amor conjugal do fogo passional dos começos”.

 

A DÚVIDA É AUTORA DAS INSÔNIAS MAIS CRUÉIS

            Nelson Rodrigues

Há que se questionar o que ainda é preservado nos dias atuais de toda essa educação romântica, pois se tem como hipótese a noção de que o amor/paixão se apresenta como um fator sensível na constituição subjetiva, o que faz com que se invista grande energia na tentativa de obedecer a tais ditames ideais.

Como aponta Vilhena (1999 pg239):

(...) a eleição do amor, como eixo central de nossa escolhas e de nossas vidas, não poderia deixar de trazer conseqüências enormes para a família. Se ao invés da tradição, do compromisso com a comunidade, da perpetuação através das gerações, elegemos um afeto tão forte e tão frágil simultaneamente, como norteador de nossas vidas as conseqüências não tardam em se manifestar.

 

 Nessa via de compreensão, é fundamental lermos Jurandir Freire Costa (1999) - em Sem fraude nem favor – especialmente quando este trata de uma das afirmativas fundamentais ao credo amoroso dominante: o amor é a condição sinequa non da máxima felicidade a que podemos aspirar.

 

Em se tratando de ideais, pode-se pensar em dois polos distintos: certos ideais podem se revelar mais fáceis de abarcar a maioria das pessoas, além de estarem entremeados pelo sentido do aperfeiçoamento. Outros, por sua vez, continua Costa (1999, p.18), “além de germinar na escassez, resistem à mudança reivindicando o direito de eternidade, não obstante a contingência do mundo. É o caso do romantismo amoroso”. Nesta característica, o ideal de amor romântico parece insistir em permanecer intacto em um mundo repleto de mudanças, revelando inúmeras contradições.

 

Na Europa, de acordo com Costa (1999), o amor romântico surgiu como norma de conduta em que se aspirava um equilíbrio entre a felicidade pessoal e o compromisso com o ideal coletivo. Ou seja, algo bastante diferente do mundo de hoje em que a noção do que seria o bem da comunidade perde seu valor e a importância da vida privada faz com que o amor se una ao sexo e ao consumo como valores primeiros da vida. Continua o autor (COSTA, 1999, p.19):

O que nos fins do século XIX era uma fantasia social tratada por Engels como um embuste, hoje parece ter se tornado realidade. O amor se tornou fantasmagoricamente onipotente, onipresente e onisciente. Deixou de ser um meio de acesso à felicidade para se tornar seu atributo essencial.

 

Diante deste quadro, Costa (1999) lança mão de algumas hipóteses como: o retraimento para a vida privada em razão da diminuição do interesse pela vida pública, uma vez que esta tem cada vez mais como carro chefe, questões de mercado; a menor repressão às variadas formas de expressão de conduta sexual acarretando num maior investimento em ideais amorosos, e a perda da força dos meios tradicionais que ofereciam identidades e ideais – como a igreja, a política, a religião e a família –, fazendo com que houvesse um apego cada vez maior aos ideais românticos.

 

Neste último ponto – imaginário de um ideal de felicidade pessoal –, reside um foco fundamental, pois inicialmente fazia parte de uma cultura na qual se buscava a igualdade entre sexos desiguais e o zelo pela família como núcleo da sociedade, diferentemente do mundo contemporâneo, onde esse ideal de amor perde sua transcendência em meio a uma sociedade regida pela dieta dos prazeres e do consumo. Aqui, a emoção perene tomou conta do que antes servia aos laços culturais mais vastos. Nas palavras de Costa (1999, p.21):

[...] Não nos perguntamos se o amor com que sonhamos pode sobreviver ao desmoronamento na moral patriarcal e, sobretudo, à nossa paixão pelo efêmero. Em seu berço histórico, o amor foi embalado por adiamentos, renúncias, devaneios, esperanças no futuro e “doces momentos do passado”. Ele nasceu na “Era dos Sentimentos”, do gosto pela introspecção e por histórias sem fim de apostas ganhas e perdidas. Hoje entramos na “Era das Sensações”, sem memória e sem história. [...] Aprendemos a gozar com o fútil e o passageiro e todo “além do princípio do prazer” é só um vício de linguagem ou da inércia dos costumes.

 

Nesse sentido expresso acima, o amor contemporâneo possui uma dupla face, onde de um lado está a nostalgia do que ainda há de sentimento e, de outro, a paixão crescente pelo obsoletismo das sensações. Restaria então, utilizando um breve trecho do poeta Vinícius de Moraes (1960), em seu Soneto de Fidelidade: “Que não seja imortal, posto que é chama. Mas que seja eterno enquanto dure”.

 

Em uma cultura como a nossa, defende Bauman (2004), temos como marcas os termos do passageiro, do imediato e da satisfação instantânea. Da arte de amar restam poucos atrativos, que aparecem permeados por receitas de como se valer das experiências amorosas assim como os outros bens e mercadorias dispostos a serem consumidos sem grandes esforços. Eros faz sentido quando relacionado à alteridade e Pathos do amor resulta da insuperável dualidade presente no encontro entre os seres. Existiria então a possibilidade de dobrar o desconhecido da aposta no amor? Ou uma pergunta melhor: Em nosso tempo, existe lugar para uma aposta nessa ausência do que é cognoscível? De fato, para Bauman (2004, p. 12).

O desafio, a atração e a sedução do Outro tornam toda distância, ainda que reduzida e minúscula, insuportavelmente grande. A abertura tem a aparência de um precipício. Fusão e subjugação parecem ser as únicas curas para o tormento. E não há senão uma tênue fronteira, à qual facilmente se fecham os olhos, entre a carícia suave e gentil e a garra que aperta, implacável. Eros não pode ser fiel a si mesmo sem praticar a primeira, mas não pode praticá-la sem correr o risco da segunda. Eros move a mão que se estende na direção do outro — mas mãos que acariciam também podem prender e esmagar.

 

Se por um lado, estas linhas parecem expressar um caminho pouco promissor para o que tem se esboçado acerca do amor e da felicidade, pode-se pensar também com Costa (1999), que se pode renovar a gramática do amor, sem ser necessário abrir mão dos ideais de amor que se venha a inventar.

 

Conforme afirmamos anteriormente (Vilhena, 1999), uma visão não apenas deflacionária como também mais crítica deste amor, tão incensado em nossa cultura, pode levar-nos a perceber os outros parâmetros nos quais nossas vidas podem e devem ser vividas.

 

Acerca dessa trama, a psicanálise reitera seu lugar ao tratar do amor e da sexualidade como cerne de suas questões, pois mesmo que atualmente o tema do amor seja entrelaçado por inúmeras questões que o diferencia do momento histórico em que Freud desenvolve a psicanálise – como a liberação sexual, a criação da pílula anticoncepcional e o advento da Aids –, a aposta no amor como redenção ainda permanece central.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. Bauman, Z. (2004). Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
  2. Bloom, A. (1996). Amor & Amizade. São Paulo: Mandarim.
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  1. Freud, S. (1972). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Vol. II). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1905).
  1. _________. (1972). Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância. Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XI). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1910).
  1. _________. (1972). Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XII). Imago, Rio de Janeiro. (Original publicado em 1912).
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  2. Kristeva, J. (1988). Histórias de amor. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  3. Lejarraga, A. L. (2002). Paixão e ternura: um estudo sobre a noção de amor na obra freudiana. Rio de Janeiro: RelumeDumará.
  4. Rousseau, J. J. (1995). Emílio; ou, Da educação (3ª ed.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
  5. Vilhena, J. (1999) Até que o amor nos separe. Algumas reflexões acerca da família contemporânea. Cadernos do Tempo Psicanalítico, Rio de Janeiro, SPID, V.31, pp 129-142.

Recebido: 14/07/2014
Aceito: 27/08/2014

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