Questões Contemporâneas

A formação da agenda da política pública de infraestrutura no Brasil

CILAIR RODRIGUES DE ABREU

Doutorando e Mestre em Administração pela Universidade de Brasília/UnB, área de concentração Instrumentos de Gestão Pública.


Resumo:  Este artigo analisa o “como” e o “porquê” a política pública de infraestrutura entrou na agenda governamental e como ela se articulou com as orientações centrais dos mandatos. A narrativa analítica é usada como recurso metodológico para fazer a contextualização político-institucional dos eventos dos diferentes processos do modelo teórico dos fluxos múltiplos. A conclusão é que a amplitude das decisões para a implementação dessa política está correlacionada com a disposição de os governos promoverem medidas compatíveis com as doutrinas hegemônicas nos mandatos.
Palavras-chave: Programa de Aceleração do Crescimento (PAC); Infraestrutura; Investimentos.

INFRASTRUCTURE POLICY-MAKING IN BRAZIL

Abstract: This article examines the public policy-making of investment in infrastructure in Brazil. The analytic narrative is used as a methodological resource for the political and institutional contextualization of the events of different processes within the theoretical model of multiple streams. The conclusion is that the amplitude of the decisions for the implementation of such policy is correlated with the willingness of governments to promote acceptable measures by hegemonic doctrines throughout government mandates.
Keywords:  Growth Acceleration Program, infrastructure, investments.

INTRODUÇÃO

Historicamente, as políticas públicas de infraestrutura têm grande importância simbólica para a criação de imagem positiva dos governos no Brasil. Isso ocorre devido ao seu potencial impacto sobre o desenvolvimento e a sua visibilidade política. Os investimentos em infraestrutura envolvem setores da indústria intensivos em mão de obra que geram empregos, principalmente, para a população de baixa escolaridade. Do lado do empresariado, esse tipo de despesa pública gera oportunidades de negócio com baixa concorrência externa. Adicionalmente, a execução dos investimentos federais é, em grande parte, realizada em parceria com os estados e os municípios, logo, essas políticas públicas são grandes vetores de alianças políticas com vários segmentos da sociedade e lideranças políticas.

Dois episódios da história recente do país foram prioridades de governo, embalados em programas de investimento em infraestrutura: O Programa Brasil em Ação (PBA), lançado no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (FHC), em 1996, e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), no segundo mandato de Lula, em 2007. A proposta aqui é analisar o como e o porquê desses dois programas entrarem na agenda governamental e como eles se articularam com as orientações centrais dos mandatos.

O Percurso Metodológico e a Lente Teórica

A proposta metodológica é usar a narrativa analítica, incorporando a história como referência para contextualizar os eventos em diferentes processos e dar consistência factual às análises das categorias teóricas do modelo explicativo do Multiple Streams (MS), desenvolvido porKingdon (1995).

O MS apresenta três fluxos: dos problemas, das soluções (política pública) e da política. O foco da explicação do MS são os eventos da formação da agenda de políticas públicas. Os eventos pré-decisão têm o potencial de explicar o curso de uma escolha, que ocorre num contexto, envolvendo a percepção de problemas, proposições de alternativas e disputas políticas.

O fluxo dos problemas envolve um conjunto de situações problemáticas, que são percebidas como objeto de uma ação pública e permanecem ativados por algum tempo. Entretanto, a percepção dos problemas não é objetiva, pois existem filtros de visão de mundo que condicionam a sua compreensão.

O fluxo das soluções processa diversas ideias e soluções geradas por comunidades de especialistas. Ao longo do tempo, as propostas debatidas podem ser alteradas, recompostas ou desaparecerem. Somente as ideias viáveis tecnicamente e aceitáveis politicamente têm a possibilidade de se constituírem em alternativas.

O terceiro fluxo é o da política, que reúne as atividades relacionadas ao processo eleitoral, aos partidos políticos ou aos grupos de pressão. São as grandes linhas de pensamento compartilhadas por um grande número de pessoas, sintetizado na expressão “humor nacional”.

No modelo MS, os eventos em cada fluxo ocorrem com relativa independência uns dos outros. Uma proposta de política pública aumenta a possibilidade de ser adotada quando os fluxos se acoplam em certos momentos chamados de janelas de oportunidade política. A ação de atores políticos, chamados de empreendedores de políticas públicas, potencializa a chance da escolha de uma alternativa.

O Programa Brasil em Ação

A crise dos anos oitenta mudou o “humor nacional” em relação ao Estado. De núcleo organizador das relações sociais e indutor do capitalismo nacional, ele passou a ser visto apenas como setor ou agente econômico inadequado. Seja porque apresenta desequilíbrio interno (desajuste fiscal, descontrole financeiro ou administrativo) que perturba o funcionamento do setor privado, seja porque intervém de forma indevida no sistema econômico. (SALLUM JR, 1994, p. 135).

De fracasso em fracasso dos diversos planos de estabilização, a inflação se consolidou como o principal problema a ser superado até meados dos 90. Em todos os planos, os grandes projetos de infraestrutura foram suspensos ou abandonados. Os programas de privatização dos governos Collor e FHC e os cortes orçamentários aprofundaram a desestruturação do setor nos anos noventa. A concepção neoliberal tornou-se hegemônica e passou-se a assumir que o déficit de investimento do setor seria suprido pela iniciativa privada.

Passado o primeiro ano do governo de FHC, o grupo não hegemônico do bloco no poder identificado como social liberal – que defendia a necessidade do controle das contas públicas, mas que enxergava a importância de o Estado ter políticas seletivas de estímulo à retomada do crescimento econômico – tencionou para que fosse lançado um programa de investimento público (BARZELAY; SHVETS, 2006).

Observa-se isso nas palavras do Ministro do Planejamento, Antônio Kandir, no lançamento do PBA:

A decisão de implementar o programa partiu do diagnóstico de que, já avançado o processo de consolidação da estabilidade, haviam amadurecido as condições para deflagrar uma ação de governo, ancorada em projetos que maximizassem as oportunidades de investimento surgidas no novo ambiente econômico criado pela estabilidade (KANDIR, 1997).

O PBA foi lançado em agosto de 1996, aproximadamente dois anos depois da entrada em vigência completa do Plano Real. O processo de controle da inflação já era considerado exitoso. Entretanto, as consequências negativas da estagnação econômica eram cada vez mais percebidas (KANDIR, 1997).

Para os projetos do PBA, inicialmente, foi garantido o fluxo financeiro na medida da execução das metas estabelecidas. Desde o início da crise dos anos oitenta, os gestores públicos da área de infraestrutura passaram a conviver com forte incerteza sobre a disponibilidade de recursos para tocarem os projetos nas suas várias etapas.

Durante a vigência do PBA, isso voltou a ocorrer com as crises da Ásia, em 1997; da Rússia, em 1998, e do próprio País, em 1999. Em todas as ocasiões foi preciso sinalizar para os investidores a capacidade de o Estado pagar a dívida pública. Em função disso, optou-se por fazer os cortes orçamentários para ampliar o resultado fiscal primário.

O Programa de Aceleração do Crescimento

O início do primeiro mandato Lula foi marcado pelo empenho da equipe econômica em acalmar os grandes aplicadores financeiros. Além de manter os instrumentos que ancoravam a política econômica, eles foram aprofundados. Em 2003, os resultados primários aumentaram, as taxas de juro foram elevadas e houve a continuidade de dirigentes identificados com a ortodoxia liberal em posições-chave da área econômica, (NOVELLI, 2010).

Segundo Barbosa e Souza (2010), o resultado da opção por um forte ajuste fiscal recaiu principalmente – como foi comum desde a década de oitenta – sobre o investimento público, que se reduziu de 1,1% em 2002 para 0,3% do Produto Interno Bruto em 2003, impactando o crescimento econômico, que cresceu apenas 1,1%.

Em 2005, houve o primeiro movimento de alteração da política de investimento em infraestrutura com o lançamento do Projeto Piloto de Investimento (PPI), que era uma carteira de empreendimentos em transportes, irrigação e abastecimento hídrico (BRASIL, 2005).

O PPI nasceu da constatação pelos agentes nacionais e internacionais da ortodoxia liberal de que as restrições orçamentárias impostas a partir dos anos oitenta recaíram majoritariamente sobre investimento público em infraestrutura (BRASIL, 2005).

Acrescentando-se a isso, as reformas pró-mercado não tiveram a potência esperada de substituir a ação governamental. Por outro lado, a deterioração da infraestrutura foi percebida como um grande limitador do potencial de crescimento econômico. Nesse cenário, mesmo a ortodoxia liberal passou a admitir a necessidade da elevação dos investimentos púbicos.

Em consequência, foi alterada a forma de medir o resultado primário das contas públicas. As despesas do PPI, que totalizavam R$ 2,8 bilhões, ganharam a possibilidade de serem retiradas da base do cálculo do resultado primário, pois não impactariam as metas fiscais acordadas com o Fundo Monetário Internacional (FMI) (LOPES, 2005).

A introdução dessa regra representou uma inflexão dentro do mandato Lula. A ala desenvolvimentista conseguiu a aprovação dessa inovação heterodoxa, que foi a mais profunda flexibilização, até então, nos pilares da política econômica ortodoxa herdada. A partir de 2006, o investimento público em infraestrutura se tornou uma prioridade do governo (BARBOSA; SOUZA, 2010).

Em 2007, no novo mandato Lula, o PAC sucedeu o PPI, ampliando o volume de recursos e o escopo da carteira. Inicialmente, o total dos recursos previsto era R$ 503,9 bilhões, sendo 67,8 do Tesouro Nacional e 436,1 das estatais e da iniciativa privada (BRASIL, 2007).

O PAC nasce num momento em que o governo decidiu não renovar o acordo com o FMI. A diversificação da carteira foi efetivada com a introdução de empreendimentos ligados diretamente aos serviços públicos básicos para as famílias (saúde, saneamento básico e habitação) e pela elevação dos recursos para os investimentos em infraestrutura. Isso só foi possível porque o PAC ganhou status de prioridade máxima dentro do governo e se constitui no programa de maior visibilidade política.

Conclusão

A insuficiência do investimento público em infraestrutura permaneceu como uma questão latente depois da crise dos anos oitenta. Os recorrentes cortes orçamentários se manifestaram, no fluxo dos problemas, como um dos indicadores da necessidade de se buscar soluções para dar estabilidade ao financiamento do setor.

No PBA, em 1996, foram feitos esforços pontuais com o objetivo de neutralizar os recorrentes cortes orçamentários. Mas, diante da instabilidade do modelo econômico capitalista dependente do fluxo financeiro externo, o Programa sucumbiu diante das três crises financeiras internacionais.

Nos primeiros quatro anos do século XXI, o investimento público ficou em segundo plano. A partir de 2005, com o PPI, a política pública para o setor foi retomada na lógica restrita das premissas do acordo com o FMI.

O PAC ampliou os investimentos iniciados no PPI. Essa alteração teve o significado de inverter a lógica que presidiu a gestão orçamentária, estruturada a partir de meados dos anos oitenta para instrumentalizar a contenção da despesa pública.

Em conjunto, as alterações promovidas pelo PPI e PAC representaram uma mudança de paradigma da concepção do investimento público. A possibilidade de abater do cálculo do resultado primário as despesas com os investimentos da carteira privilegiou a execução orçamentária na realização dessa política pública.

No fluxo da política, a estagnação econômica e a deterioração da infraestrutura básica fez com que o credo neoliberal fosse flexibilizado. O lançamento do PAC, no início do segundo mandato Lula, aproveitou a janela de oportunidade política da guinada do “humor nacional” para o investimento público em infraestrutura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Nelson; SOUZA, José A. P. A Inflexão do Governo Lula: Política Econômica, Crescimento e Distribuição de Renda. In: SADER, E.; GARCIA, M. A. Brasil: entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Boitempo; Fundação Perseu Abramo. 2010.

BARZELAY, Michael1; SHVETS, Evgeniya. Innovating Government-Wide Public Management Practices to Implement Development Policy: The Case of “Brazil in Action’. Public Management Review, Volume 9, Number 1, 2006.

BRASIL. Projeto Piloto: Relatório de Progresso nº 1. Brasília. 2005.

BRASIL. Programa de Aceleração do Crescimento. Nota à Imprensa. Brasília. 2007.

KANDIR, Antônio. A recuperação da capacidade estratégica de planejamento e ação do Estado: a experiência do Brasil. PARCERIAS ESTRATÉGICAS - NÚMERO 4 - DEZEMBRO 1997.

KINGDON, John. Agendas, alternatives, and public policies. New York: Logman. 1995.

LOPES, Clarissa. Economia - Novo modelo em teste. Desafios do desenvolvimento.

IPEA. Ano 2. Edição 16 - 1/11/2005.

NOVELLI, José Marcos Nayme. A Questão da Continuidade da Política Macroeconômica entre o Governo Cardoso e Lula (1995-2006). Revista de Sociologia e Política. V18, Nº 36, jun 2010.

SALLUM JR, Basílio. Transição política e crise de estado. Lua Nova. São Paulo, n. 32, Apr. 1994.

Recebido: 04/06/2014
Aceito: 11/08/2014

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