A REVOLUÇÃO MOLECULAR E O DEVIR MINORITÁRIO COMO RESISTÊNCIA À PSIQUIATRIZAÇÃO DO DISPOSITIVO DA SEXUALIDADE: DOS DESVIOS ÀS PERFORMANCES DE GÊNERO E SEXUAIS
NATASHA MELLO HELSINGER
Psicóloga. Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos/EBEP-RJ. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica/UFRJ.
“(....) ser um homem feminino
Não fere o meu lado masculino
Se Deus é menina e menino
Sou Masculino e Feminino”(Masculino e Feminino - Pepeu Gomes)
Resumo:O artigo pretende discutir a incidência do processo de psiquiatrização no dispositivo da sexualidade para, assim, entrevermos modalidades de resistência face às estratégias normativas que, por sua vez, capturam as experiências singulares para classificá-las como patológicas. Para isso, o trabalho partirá das contribuições de Foucault (1976) sobre a história da sexualidade, a fim de demonstrar como esta foi positivada da Idade Clássica ao século XIX – por exemplo, pelas tecnologias médicas do sexo - não sendo mais negativizada pela lei proibitiva soberana. Em seguida, a partir das formulações de Russo e Venâncio (2006), serão apresentadas algumas transformações que se deram na nosografia psiquiátrica no que tange ao campo da sexualidade. Isso permitirá observar que o discurso psiquiátrico tem sido atravessado pelo imperativo da eficácia, o que preconiza o reforço da normalidade (Castel, 1987) e propicia o uso de medicamentos, como o Viagra. Por fim, a partir das noções de revolução molecular (Guatarri, 1977) e de devir minoritário (Deleuze e Guatarri, 1996), serão elucidadas algumas formas de resistência em relação às estratégias normativas. Neste sentido, o artigo demonstrará que a psiquiatrização da sexualidade está a serviço da preservação do paradigma do binarismo sexual (Bento, 2006; Butler; 2013) e da exigência da performance e que, a partir de movimentos de diferenciação, é possível criar novas modalidades de experimentar, sentir e de se relacionar (Peixoto Junior, 2008).
Palavras-chave: performance, sexualidade, resistência, minoria, psiquiatriz
MOLECULAR REVOLUTION AND BECOMING-MINORITARY AS RESISTANCE OF THE PSYCHIATRIZATION OF THE SEXUALITY DEVICE: FROM DEVIATIONS TO GENDER AND SEXUAL PERFORMANCES
Abstract: The article aims to discuss how the psychiatrization process has focused on the sexuality today, thus, elucidate modalities of resistance face of regulatory strategies that capture the unique experiences to classify them as pathological. For this, the article will depart from the contributions of Foucault (1976) about the history of sexuality, to demonstrate how the sexuality was valued between the Classical Age to the nineteenth century - for example, by the medical technologies of sex - not being more prohibited by the sovereign law. Then, from the formulations of Russian and Venancio (2006), some transformations that occurred in psychiatric terminology, related to the field of sexuality, will be presented. This will allow observe that the psychiatric discourse has been influenced by the imperative of efficiency, which advocates strengthening of normal (Castel, 1987) and promotes the use of drugs, such as Viagra. Finally, based on the notions of molecular revolution (Guattari, 1977) and minority becoming (Deleuze and Guattari, 1996), will be elucidate some forms of resistance to the normative strategies. In this sense, the article will demonstrate that the psychiatrization sexuality is at the service of preserving the paradigm of sexual binarism (Benedict, 2006; Butler, 2013) and the imperative of performance and, also, that the differentiation movements provide the creation of different ways of relating, thinking and experience (Junior Peixoto, 2008).
Keywords: performance, sexuality, resistance, minority, psychiatrization.
INTRODUÇÃO
Como defendem Deleuze e Guatarri (1996), as estratégias normalizadoras de poder visam preservar o modelo de sociedade falocrática, branca, européia e heterossexual. Uma das resultantes disso é que qualquer modalidade de experiência sexual, que não se enquadre nos padrões normativos, é logo enquadrada em alguma categoria identitária ou patológica, ou seja, não é contemplada como uma expressão de diferença. Como demonstrou Foucault (1976), essa caça às sexualidades periféricas iniciou-se no século XIX, quando foram forjadas as tecnologias médicas do sexo, e ela se dá até hoje, como pode ser observado nos manuais diagnósticos, sobretudo, a partir do DSM-III (1980), em que a sexualidade tornou-se uma temática independente (Russo e Venâncio, 2006). Além de classificar como patológicas determinadas experiências sexuais, a nosografia psiquiátrica estipula, também, critérios que definem quando a performance sexual está aquém do padrão, o que é ilustrado pela categoria de Transtorno de Desejo Sexual Hipoativo(DSM-IV, 1994).
Não se pode perder de vista que o imperativo da eficácia (Castel, 1987) e as performatividades de gênero - que obrigam o indivíduo a se comportarem de acordo com o próprio gênero (Bento, 2006) - geram, muitas vezes, sentimentos de frustação, vergonha e de insuficiência (Ehrebenrg, 2000), o que incrementa a demanda por psicofármacos e os processos de medicalização. Diante disso, a questão que se coloca é: como criar modalidades singulares de experimentação sexual e resistir, assim, aos processos de normatização?
O confisco das experiências sexuais pelo saber médico
Segundo Foucault (1978), a partir do século XIX, a qualidade de vida da população se tornou um grande signo de riquezas de um território, de forma que a promoção da saúde e da educação tornou-se prioridade das práticas políticas. Uma das consequências dessa nova modalidade de gestão foi a disseminação dos processos de medicalização do campo social, em que a medicina preventiva e curativa passou a incidir a nível individual e coletivo (Birman, 1980).
Um dos dispositivos que foi intensamente atravessado por essas técnicas de controle foi o da sexualidade. No fim do século XVI, iniciou-se uma incitação da colocação do sexo em discurso que durou três séculos, o que gerou uma polícia dos enunciados e de controle das enunciações (Foucault, 1976). Assim, em vez de ter se tornado rarefeito, o sexo viveu uma fermentação discursiva que se deu no próprio campo do exercício do poder e, ao ser apreendido por procedimentos de análise e classificação, foi articulado à moral e à racionalidade.
Neste sentido, a genealogia e a arqueologia foucaultiana nos demonstram que a tecnologia do sexo foi atravessada pela positividade da época clássica até o século XX, na medida em que não se tratava mais de uma captura proibitiva e excludente provinda da lei soberana. Esta foi substituída por procedimentos normalizadores que visavam controlar permanentemente a experiência da sexualidade, por exemplo, a partir do exame de consciência, no século XVI, e das tecnologias médicas do sexo, no início do século XIX. Com isto, constituíram-se a medicina das perversões e os programas de eugenia, que articulavam as tecnologias do sexo aos projetos sócio-políticos e médicos atuando, por exemplo, no controle da natalidade (Foucault, 1976).
A patologização do dispositivo da sexualidade nos manuais diagnósticos
A incidência do poder no dispositivo da sexualidade também se dá a partir da classificação nosográfica dos manuais diagnósticos. Russo e Venâncio (2006) relembram que os Distúrbios da Personalidade – que englobavam os comportamentos antissociais (criminosos, cleptomaníacos, drogaditos, perversões sexuais e psicopatia) – não eram alocados no conjunto nem de etiologia orgânica nem de não-orgânica do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). Um exemplo disso é o fato de que o DSM-II (1968) referia-se aos desvios sexuais como atos que não estavam associados ao coito propriamente dito, compreendendo nove tipos de comportamento: Homossexualidade, Fetichismo, Pedofilia, Travestismo, Exibicionismo, Voyerismo, Sadismo, Masoquismo, Outros desvios sexuais.
Já no DSM-III (1980) elaborou-se quatro categorias centrais: os Transtornos de Identidade de Gênero, Parafilias, Distúrbios Psicosexuais e Outros Transtornos do Desenvolvimento Psicosexual,que, por sua vez, passou a abarcar vinte e dois transtornos psicossexuais (Russo e Venâncio, 2006). Vale dizer que um dos aspectos inéditos dessa versão foi que a homossexualidade deixou de participar das Parafilias, que tinham como base as descrições sobre as perversões no século XIX por Kraft-Ebing, e foi inserida numa quarta categoria sob o nome de Homossexualidade Ego-distônica, o que desapareceu na revisão do DSM-IIIR (1987). É interessante observar, ainda, que no DSM-IV (1994) o número de transtornos subiu para vinte e sete (alguns com subdivisões) e foram incluídos na grande categoria Transtornos Sexuais e Identidade de Gênero compostas por: Transtornos Sexuais, Parafilias e Transtorno de Identidade de Gênero. Ou seja, o que é inédito é que a partir da terceira e da quarta edição do DSM, a sexualidade tornou-se uma temática independente e, também, que as disfunções sexuais e os Transtornos de Identidade de Gênero passaram a acoplar tanto o Transexualismo como os Transtornos de Identidade de Gênero da Infância (Russo e Venâncio, 2006).
A partir dessas transformações classificatórias, podemos perceber a importância de desnaturalizarmos essas categorias, pois elas são produzidas em determinados contextos e suas elaborações são atravessadas por jogos de poder (Foucault, 1971) que capturam as condutas sexuais para introduzi-las no campo patológico. Pois, diferente do sistema punitivo legal (regulado pelas instâncias jurídicas e religiosas), que condenava cada desvio isoladamente, o sistema classificatório psiquiátrico, ao transformar os desvios sexuais em patologias, passou a incidir no indivíduo em sua totalidade (Russo e Venâncio, 2006) e, por isso, é fundamental considerarmos que a lógica normativa incide nos processos de subjetivação.
A performance sexual: do déficit de desejo ao superávit do Viagra
Ainda em relação às nomenclaturas psiquiátricas, é importante problematizarmos de que formas estas estão atravessadas pelas noções de eficácia e de performance (Castel, 1987). Isso é ilustrado, por exemplo, pela categoria de Transtorno de Desejo Sexual Hipoativoque, por sua vez, aponta para a deficiência tanto do campo da fantasia como do desejo sexual (DSM-IV, 1994). Essa categoria demonstra como as descrições psiquiátricas não estão mais tão preocupadas em delimitar o campo do normal e do patológico, mas, sim, de realizar um trabalho de reforço da normalidade e da performance: “(...) não se trata mais de avaliar e classificar comportamentos transgressores ou marginais mas sim a performance sexual de qualquer um. Isto é, não se está mais produzindo identidades desviantes (...).” (RUSSO E VENÂNCIO, 2006, p. 474).
Ademais, não podemos perder de vista que os enunciados psiquiátricos são disseminados no campo social (Foucault, 1971), impulsionando os indivíduos a perceberem seus processos corporais ou subjetivos como potencialmente patológicos, o que pode incrementar a busca por consultas médicas mesmo na ausência de enfermidades (Birman, 1980). Isso pode provocar, também, a demanda por instrumentos da biomedicina e da psicofarmacologia que prometem dar conta da sensação de vergonha e de insuficiência (Ehrebenrg, 2000), que se tornaram bastante comuns em um contexto marcado pela exigência cultural da performance. Afinal, encontramos no cenário sociocultural da atualidade, diversas expressões desse imperativo e, no que tange ao campo da sexualidade, destacaremos duas: o aumento do consumo do Viagra entre jovens e a criação de plataformas que possibilitam a avaliação acerca da performance sexual dos outros.
Em relação ao primeiro, temos como exemplo um estudo realizado pela Escola de Farmácia e Bioquímica da Universidade Maimónides que levantou os dados de 379 farmácias de Buenos Aires. A pesquisa revelou que três em cada dez “medicamentos para ereção”, vendidos em 2008, foram utilizados por menores de idade, e se em 2006 esses medicamentos estavam na 75o posição dos remédios mais vendidos na Argentina, em 2008 subiu para 22a posição (Folha de São Paulo, 2009). Para Birman (2013), o aumento do consumo do Viagra relaciona-se ao fato de que a relação tradicional entre os gêneros - marcada pela superioridade masculina frente ao gênero feminino - entrou em colapso nos anos 60, o que quebrou a segurança dos homens. Por isso, eles passaram a recorrer a esses instrumentos de performance sexual para restaurarem sua potência frente as mulheres, pois mesmo os adolescentes, no auge de sua potência sexual, passaram a temer falhar.
O segundo exemplo é o aplicativo “Lulu”, lançado no Brasil em novembro de 2013, no qual o objetivo era que as mulheres avaliassem, anonimamente, a aparência, humor, o primeiro beijo, a ambição, o comprometimento e, é claro, a performance sexual dos homens, sem que esses pudessem ter acesso. Além das notas, as usuárias avaliam as qualidades e os defeitos a partir de hashtags, como: “#lavaroupa”, ”#bebesemcair”, “#piormassagemdomundo”. Apesar de haver mulheres que utilizavam a ferramenta como vingança, a proposta de Alexandra Chong, criadora do aplicativo, era que este as auxiliasse a fazer escolhas “mais inteligentes” em relação aos homens (G1, 2013). Com isso, pode-se observar que os sistemas avaliativos e a exigência de performance (Birman, 2013) estão atravessando os mais variados níveis e, ainda, que os próprios dispositivos tecnológicos fomentam isso, o que acaba ameaçando o contato com a alteridade e o mistério do encontro sexual que, por sua vez, passam a ser mediados pela lógica da avaliação, seja pela deficiência, seja pela eficácia.
A revolução molecular e o devir minoritário: sou masculino e feminino?
Para Guatarri e Rolnik (1996), o poder hegemônico almeja produzir indivíduos idênticos, massificados e padronizados, de forma que aqueles que não adotam os modelos teriam três destinos: a culpabilização, a segregação e a infantilização. Pois aqueles que não se acham à altura dos modelos preconizados pela máquina capitalista sentem-se culpados e acreditam que perderam o direito de existir e, com isso, acabam tornando-se objetos de segregação. Ademais, no momento em que passam a abrir mão dos próprios projetos por se acharem incapazes, esses indivíduos deixam que os outros passem a gerir sua existência e, assim, inserem-se em um processo de infantilização. Não se pode perder de vista que o poder é onipresente na medida em que ele atravessa todos os espaços e relações, portanto, não se trata de definir de forma maniqueísta quem domina e quem é dominado. Afinal, onde há poder há resistência, portanto, essa deve ser analisada, também, no campo das correlações de forças (Foucault, 1976).
A partir disso, pode-se depreender que, ao mesmo tempo em que o sistema cria uma série de critérios para forjar um modelo de indivíduo serializado – fazendo com que aqueles que não se enquadram sejam marginalizados ou se sintam insuficientes – ele permite, também, a criação de roturas e de novas formas de agenciamentos:
A busca por implementar um modelo inatingível tem alguns desdobramentos: pode gerar sentimentos de culpa e frustação, mas também revela as possibilidades potenciais para as transformações, revelando, assim, a própria fragilidade das normas de gênero, uma vez que está assentada em algo fundamentalmente plástico, maleável e manipulável: o corpo. (BENTO, 2006,p. 94).
Judith Butler (2013) aponta para a importância de problematizarmos as categorias identitárias não para aboli-las, mas, sim, para contextualizá-las:“(...) faz sentido levantar, como uma questão política explícita, como as identidades foram formadas, e ainda são construídas, e que lugar elas devem ter num espectro político mais amplo.” (BUTLER, 2013, p. 26). Para Berenice Bento (2006), as identidades de gênero são consolidadas historicamente a partir das reiterações contínuas promovidas pelas instituições (familiares, religiosas e escolares), o que aponta para certo fracasso na fixidez do modelo dicotômico que almejam instaurar. Neste sentido, as repetições estilizadas podem tanto manter o gênero, mas, também, transformá-lo, ou seja, propiciar rupturas. Em relação à matriz binária e à hegemonia heterossexual, a autora defende:
As performances de gênero que reivindicam a inteligibilidade fora dos marcos naturalizantes teriam o efeito de fazer proliferar diversas configurações de gênero, como camadas sobrepostas de ressignificação do masculino e do feminino, em um movimento contínuo de produção de metáforas que, simultaneamente, podem desestabilizar a identidade substantiva e privar as narrações naturalizadas da heterossexualidade do seu protagonismo central. (BENTO, 2006, p. 95)
A partir da indagação ética-política sobre as construções de gênero, é possível entrever e reconhecer algumas estratégias de resistência frente à pretensão classificatória que almeja incorporar as diferentes categorias identitárias para, assim, poder controlá-las. O campo das ditas ambiguidades sexuais, por exemplo, pode ser considerado uma modalidade de resistência, na medida em que se constitui por indivíduos que não se identificam com nenhum gênero específico e que manifestam, ainda, o desejo de pertencer a um sexo inclassificável (Geniève Morél, 2000). Outras estratégias que criam rupturas nas classificações estabelecidas são as lutas de minorias sexuais que fazem objeção ao modelo hegemônico da heterossexualidade. Uma ilustração disso é o grupo FHAR (Frente Homossexual de Ação Revolucionária) que foi bastante ativo na década de 70 e funcionou como uma espécie de homossexualismo militante ao interpelar o poder falocrático e heterossexual (Guatarri, 1977). Outra tentativa de resistência é a cultura BDSM (“Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo”) que rejeita a leitura patológica das experiências sadomasoquistas, concebendo-as como um estilo de vida e modalidade legítima de prática erótico-sexual (Russo e Venancio, 2006). Não se trata aqui, claramente, de defender ou não essas práticas, mas contemplar seu caráter de resistência para possibilitar assim, a elucidação de algumas modalidades de defesa frente ao anseio de enquadramento dos dispositivos de poder-saber.
Deleuze e Guatarri (1996) também criticam o modelo da sociedade falocrática, branca, européia, heterossexual, afirmando que a matriz heteronormativa fornece apenas dois tipos de alternativas de gênero. De acordo com Peixoto Junior (2008), o fato de Deleuze e Guatarri (1996) conceberem o desejo não como uma representação constituída na falta, mas, sim, como motor de potência e de produção, possibilita pensarmos a sexualidade para além dos moldes das oposições dialéticas binárias e da diferença sexual pautada no falo. É neste sentido que o devir homossexual e o devir mulher – que ocorre quando as disputas fálicas são abandonadas, pois a mulher é a única possibilidade do devir corpo sexuado e, portanto, é a referência de todos os devires (Guatarri, 1977) – são pensados como possibilidades de afirmação da diferença e de singularização.
A luta minoritária consiste, portanto, no combate às pretensões totalitárias dos valores dominantes e é, justamente, no entrecruzamento dos processos de captura e de resistência que a singularidade pode emergir possibilitando, assim, a criação de novos modos de subjetivações, de experimentação e de estéticas da existência (Peixoto Junior, 2008). Neste sentido, é preciso estar sempre atento para a diferença entre a produção de indivíduos e identidades – forjados por processos de serialização e de alienação – e as singularidades que, por estarem em devir, são fluidas e provisórias e, portanto, difíceis de serem capturadas. Dito de outro modo, a perspectiva identitária tende a demarcar um território fechado, físico e coercitivo, por isso, Deleuze e Guatarri (1992, 1996) apontam para a relevância dos movimentos de desterritorialização e da construção de linhas de fuga como transversais. Afinal, é isso que possibilita com que a subjetividade não seja reduzida a uma identidade, como almejam os manuais diagnósticos, os discursos e instituições que realizam tais categorizações binárias. Afinal, somos a todo o momento atravessados por uma série de linhas diferenciadas e, enquanto umas nos invadem, pois provém de fora, outras devem ser inventadas na vida, para afirmá-la:
(...) devemos inventar nossas linhas de fuga se somos capazes disso, e só podemos inventá-las traçando-as efetivamente, na vida. (...) quais são suas próprias linhas, qual mapa você está fazendo e remanejando, qual linha abstrata você traçará, e a que preço, para você e para os outros? Sua própria linha de fuga? (...) Você se desterritorializa? Qual linha você interrompe, qual você prolonga ou retoma, sem figuras nem símbolos? (DELEUZE e GUATARRI, 1996, p. 76 e 77).
É neste sentido que a revolução molecular, proposta por Guatarri (1977), pode ser compreendida como uma forma de resistência, que funciona no âmbito da diferença e da multiplicidade. Afinal, ela visa criar pontos de ruptura e abrir espaços para devires minoritários que coloquem em questão a primazia da identidade, tanto individual quanto cultural. Com isso, “(...) torna-se possível apreender a produção de linhas nômades e de movimentos minoritários que criam interferências e resistências às repetições do poder entre grupos sociais (....) e hábitos regulares de identidade”. (PEIXOTO JUNIOR, 2008, p.102).
No entanto, algumas expressões que aparentemente parecem ser modalidades de afirmação da diferença podem acabar sendo inscritas em outros moldes identitários, como ocorre em alguns casos de cirurgia de mudanças de sexo em que se pretende adequar o sexo biológico ao gênero (Russo e Venâncio, 2006). Portanto, é importante atentar para o fato de que da mesma forma que a resistência se dá de forma molecular, as estratégias de poder também se dão, pois estão espalhadas em miniaturas de formas indiscerníveis e dissolvidas (Guatarri, 1977). Dito de outro modo, o poder tenta capturar e codificar os movimentos minoritários em um alto grau de cálculo e previsibilidade, enquadrando as diferenças em patologias em vez de as conceberem como novas possibilidades de existência e, por isso, as formas de resistência devem se dar de forma contínua e fluida.
Neste sentido, é interessante pensarmos os movimentos de desterritorialização e de reterritorialização como formas de resistência às pretensões de objetivação e de anulação das diferenças. Pois, no momento que uma categorização está prestes a se efetivar, a subjetividade em devir já se reterritorializou de outra forma e, quanto mais o poder se solidificar, mais movimentos de resistência poderão advir. Afinal, o discurso é um índice de formações territoriais e, quando enrijecidos, impossibilitam a criação de novos territórios por promoverem uma fixação do desejo em territórios restritos (Peixoto Junior, 2008). Evidentemente, é mais cômodo fixar-se em ritornelos do que construir novos territórios, mas a repetição da mesma configuração territorial não possibilita produzir nenhum movimento de desterritorialização. Até porque os dispositivos de saber-poder temem que a desterritorialização absoluta ocorra, pois essas ameaçam a organização sócio-política e, por isso, estão constantemente lutando para evitá-la. É nesse sentido que se pode concluir que o devir minoritário e a potência criativa são os meios fundamentais de resistência: “A arte é o que resiste: ela resiste à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha” (DELEUZE, 1990, p.215).
Conclusão
O trabalho apresentou alguns vetores que caracterizam os processos de medicalização do dispositivo da sexualidade, a fim de elucidar algumas modalidades de resistência face às tecnologias da normatização, a partir da afirmação da vida e da diferença. Afinal, essas se contrapõem aos enquadramentos realizados pelo projeto identitário próprio da normatização, pois a afirmação da vida é a ferramenta crucial para não se deixar ser capturado e definido como uma unidade ontológica, mas, sim, uma dispersão múltipla, isto é, como devir.
As formulações de Deleuze e Guatarri (1996) demonstraram que a máquina social é caracterizada por um permanente confronto que se dá entre forças reativas e forças ativas. Enquanto as primeiras tentam anular os devires, esvaziando os potenciais de criação para inseri-los em extratos dominantes, as segundas intensificam os devires, promovendo movimentos disruptivos de diferenciação. A partir disso, é possível depreender que a criação constante de linhas de fuga é o que possibilita a ampliação dos espaços de singularização que, por sua vez, propiciam a invenção de novas formas de pensar, sentir, de se colocar no tempo e espaço, de se relacionar com o outro, isto é, novas modalidades de existência (Peixoto Junior, 2008).
Nesta perspectiva, pode-se concluir que singularizar é criar e produzir modos distintos daqueles que são exigidos pelo poder dominante e, por isso, a revolução molecular (Guatarri, 1977) consiste nesse atrevimento de se singularizar e de se afirmar como diferença. Afinal, ao se criar novas modalidades de experimentação sexual é possível colocar em xeque a matriz binária, a hegemonia heterossexual e o imperativo da performance sexual e evitar, com isso, a sensação de vergonha e insuficiência.
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Recebido: 21/07/2014
Aceito: 28/08/2014