Questões Contemporâneas

O FILME RIO E A PLURALIDADE CULTURAL DO BRASIL

BERNARDO GUEDES

Mestre em Processos e Manifestações Culturais e jornalista.

CLAUDIA SCHEMESCLAUDIA SCHEMES

Doutora em História pela Universidade Feevale/RS.
DENISE CASTILHOS DE ARAUJO

Doutora em Comunicação Social e professora da Universidade Feevale/RS.


Resumo: Este artigo busca realizar uma reflexão acerca da pluralidade cultural e identidade brasileira através da análise do filme Rio. Sendo assim, pretende-se identificar a partir da análise fílmica questões de brasilidade e cultura brasileira. A metodologia utilizada é a Hermenêutica de Profundidade de J. Thompson.
Palavras-chave: Filme Rio; brasilidade; cultura.

RIO MOVIE AND THE CULTURAL PLURALITY OF BRAZIL

Abstract:  This article searchs to make a reflection about the cultural plurality and Brazilian identity through the analysis of the film Rio. The intended goal is to identify from the film analysis brazilianness and Brazilian culture issues. The methodology used is the Depth Hermeneutics of J. Thompson.
Keywords: Rio movie; brazilianness; culture

INTRODUÇÃO

Este artigo pretende observar e analisar as características da identidade nacional brasileira contidas em cenas do filme Rio (2011)¹, além de verificar se elas são capazes de traduzir a pluralidade cultural que há no Brasil e refletir sobre as representações  imagéticas do país.

Como técnica de análise para o estudo deste trabalho, foi utilizada a teoria da Hermenêutica de Profundidade (HP) proposta por John B. Thompson (1995), uma vez que os textos a serem discutidos podem ser caracterizados como fenômenos culturais, que, para este teórico, constituem-se em ações, objetos e expressões significativas, as quais o autor passa a nomear por “formas simbólicas”. Serão utilizadas as três etapas sugeridas por este autor: a análise sócio-histórica, a análise formal ou discursiva e a interpretação/reinterpretação do texto observado. É importante salientar que a primeira etapa proposta pelo autor não será tratada separadamente, mas inserida nas demais.

Para esta análise, foi escolhida a primeira sequência, de três minutos de duração, na qual não há diálogos verbais entre os personagens, e a narrativa pode ser observada pelos fatos que acontecem e pela música cantada. Optou-se pela sequência de abertura por ela mostrar paisagens do Rio de Janeiro no início da trama ambientando o espectador. Um grande plano geral mostra a imagem do Rio de Janeiro, onde o nascer do sol é mostrado no Pão de Açúcar considerado cartão postal da cidade, de onde os turistas admiram as belezas naturais. Vários pássaros da fauna brasileira (ararinhas, tucanos, canários) entram em cena cantando e dançando como se fosse uma verdadeira festa de carnaval. Todos os animais ficam empolgados com a batida da música, voam, batem as asas e se balançam entre os cipós. Uma pequena ararinha-azul (Blu, a personagem principal do filme) fica feliz com a cena e, ao tentar voar para participar da festa, cai do seu ninho e é capturada e engaiolada por contrabandistas de animais, por ser um animal em extinção. Os vilões vendem os pássaros, que são levados para Moose Lake, Minnesota, Estados Unidos.

O filme Rio (2011) debate a ecologia, também considerada uma instituição social; nesse caso, pode-se destacar a preservação das espécies e o cuidado com o meio ambiente. As belezas naturais são exaltadas desde a época do Brasil Colônia, quando a carta de Pero Vaz de Caminha narrou as ricas fauna e flora da nova terra descoberta,

Para organizar a análise das cenas em sequência, serão apresentadas algumas imagens, uma breve descrição (decupagem) e, posteriormente, uma discussão sobre elas.

Figura 1 – Filme Rio, sequência 1, cena 1

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Fonte: DVD 2013 do filme RIO 2011
00:37 – DOLLY IN/EXTERNO/DIA – Aproximação da câmera na árvore; ao fundo o Pão de Açúcar. Uma cena típica de filme de narrativa clássica, em que a ambientação é feita antes da ação dos atores. Os créditos aparecem na imagem. ÁUDIO: som do canto de um pássaro.

A cena que abre o filme é um grande plano geral do Rio de Janeiro, por onde passam os créditos. Ouve-se o cantar de um passarinho. Inicia-se a ambientação da locação. Ao fundo, vê-se o Pão de Açúcar, um dos pontos turísticos da cidade.

Figura 2 – Filme Rio, sequência 1, cena 2 

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Fonte: DVD 2013 do filme Rio de 2011.
01:01 – PG/EXTERNO/DIA – Plano do passarinho amarelo que estava cantando no galho vendo o nascer do sol. Movimento de câmera PAN horizontal para a esquerda acompanhando o pássaro entrar na floresta. ÁUDIO: som do canto do pássaro.

Na cena seguinte, pode-se ver o pássaro amarelo, que estava cantando, observando o nascer do sol, voando para dentro da floresta, passando entre as árvores, podendo ser comparada à entrada de um portal mágico comumente usado nos contos de fada.

Em sua obra, Thompson (1995) propõe um esquema de estrutura narrativa, que pode ser caracterizado como romance ideal (p.398). Este esquema é proposto a partir de três grandes estágios: situação inicial, intervenção imediata e situação final. O início de Rio (2011) é o momento em que as personagens principais da trama ainda não se conhecem.

Figura 3 – Filme Rio, sequência 1, cena  3

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Fonte: DVD 2013 do filme Rio de 2011
01:14 – PG/EXTERNO/DIA – Plano dos tucanos dormindo em formato de um cacho de bananas, fruta comum no Brasil, que, ao ouvirem o canto do pássaro, despertam e iniciam a cantar. ÁUDIO: sobe som da música Real in Rio

A partir desse momento, é possível perceber várias formas simbólicas que remetem ao Brasil, como, por exemplo, a cena na qual os tucanos dormem (Figura 3). Seus bicos amarelos e o seu formato comprido e arredondado dão a ideia de um cacho de bananas preso a uma bananeira. Esta é uma fruta encontrada em abundância no país e que é associada à imagem de Carmen Miranda com seu turbante enfeitado por frutas na cabeça.

Como essa narrativa da primeira sequência é contada através de imagens sem diálogos, ou seja, os personagens não conversam, o áudio tem grande importância nesta parte da trama, pois se escuta a melodia da música Real in Rio, cuja letra denota muitas características de identidade da cidade.

A música mistura o português e o inglês, em ritmo de samba; foi criada em 2011 por Carlinhos Brown, Sérgio Mendes, John Powell, Mikael Mutti e Siedah Garrett e interpretada por Jesse Eisenberg, Jamie Foxx, Anne Hathaway, George Lopez e William. Assim como os pássaros imitam as frutas na sequência, a música vai reiterar a brasilidade, porque anuncia que no país tem alegria, amor à vida. Ela vai, através da letra, dizer que o Brasil é um eterno baile, uma festa e exaltar que o povo brasileiro tem esperança, sonhos e que não desiste nunca, como podemos ver na letra apresentada a seguir.

Todas as aves têm penas
Faça o que amamos mais do que tudo
Nós somos os melhores no ritmo e no sorriso
É por isso que amamos o carnaval

Todas nós aves podemos cantar
Sol e praias eles dizem
Dance com a música, paixão e amor
Mostre-nos o melhor que vc pode fazer

Todo mundo aqui pega fogo
Venha e embarque na alegria
Dance com um estranho, romance e perigo
A magia poder ser real, no Rio
Tudo por si mesmo
Você não pode ver que está chegando
Você não achará em nenhum outro lugar
É real, no Rio
E saiba também
Você pode sentir isso acontecer
Você pode sentir tudo isso por si mesmo

Todas as aves tem penas
Faça o que nós amamos mais que tudo
Lua e as estrelas,sol e violões
É por isso que amamos o carnaval

Amamos a vida na mata
Tudo é livre e selvagem
Nunca sozinhos, porque aqui é nosso lar
Magia pode ser real, no Rio
Tudo por si mesmo
Você pode ver chegando
Você não pode encontrar isso nenhum outro lugar

Eu sou como um aero rei rei rei rei
Pássaros como eu, porque tenho uma asa maneira

Aqui todos amam o samba (eu adoro samba)
Você sente o ritmo em seu coração(eu sou mestre em samba)
Beleza e amor, o que mais você quiser
Tudo pode ser real, no Rio
Aqui outra coisa acontece
Você só sente isso acontecer
Você não sentirá isso em nenhum outro lugar.

Ou seja, na letra da música Real in Rio é possível encontrar palavras como carnaval, samba, Rio, ritmo, que podem ser consideradas como formas simbólicas. Esta etapa da análise necessita de uma construção criativa do significado, segundo Thompson (1995), “de uma explicação interpretativa do que está representado ou do que é dito”. Pode-se perceber através de um nacionalismo, com a expressão “você não achará em nenhum outro lugar”, que o carnaval é uma manifestação cultural nacional brasileira e da maneira como é aqui não pode ser encontrada em outro lugar do mundo, apenas no Brasil.

A próxima cena, embalada pela melodia do samba, também é carregada de simbolismos. O que chama a atenção é que as aves são divididas em grupos ou espécies distintas, cada grupo com uma ação diferente, que, posteriormente, serão colocados juntos em uma única cena, formando, assim, uma grande festa de carnaval com alas e confetes.

Figura 4 – Filme Rio, sequência 1, cena  4

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Fonte: DVD 2013 filme Rio de 2011
01:22 – PG/EXTERNO/DIA – plano de três pássaros sambando em cima de um galho. ÁUDIO: música Real in Rio.

Nesta cena, observa-se um grupo de três pássaros sambando em cima de um galho, um ritmo tipicamente brasileiro, com rápidos movimentos dos pés e muito rebolado. As cores dos pássaros são cores vibrantes, e suas penas remetem às grandes alegorias e estandartes das fantasias de carnaval.

Farina (1990) explica que as cores vibrantes dos pássaros na cena têm um significado, como por exemplo: o laranja, que se origina do persa narang, através do árabe naranja, simboliza o flamejar do fogo;, o amarelo deriva do latim amaryllis e simboliza a cor de luz irradiante em todas as direções; e o vermelho, que vem do latim vermiculus, de onde se extrai uma substância escarlate, o carmim, chamada a cor de carmesim, que simboliza uma cor de aproximação, de encontro (p.113). Ainda sobre as cores, o verde da mata é predominante na cena, e Farina (1990) diz que a cor simboliza a faixa harmoniosa que se impõe entre o céu e o Sol, é uma cor reservada e de paz repousante que favorece o desencadeamento de paixões, mas que nessa análise pode ser considerada como uma forma de reiterar um dos aspectos que marcam a identidade do Brasil, a riqueza da flora.

Figura 5 – Filme Rio, sequência 1, cena  5

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Fonte: DVD 2013 do filme Rio de 2011
01:32 – PG/EXTERNO/DIA – plano de três pássaros batendo no peito estufado produzindo o som de um tambor. ÁUDIO: som de batuque de tambor.

Na figura 5, três pássaros estufam o peito e batem forte com suas asas produzindo o som de um tambor. O tambor remete aos instrumentos utilizados pelos povos indígenas e aos negros que contribuíram na formação da população do Brasil. Pode-se aqui fazer, também, uma associação à bateria de uma escola de samba, através de instrumentos como o tambor, surdo, caixa, apito, tamborim, pandeiro e outros; à percussão, que é uma característica muito presente na música brasileira. Além disso, os pássaros, ao estufarem os peitos, criam a imagem de um coração. Segundo Chevalier (1999), nas tradições modernas, o coração “tornou-se símbolo do amor profano, da caridade enquanto amor divino, da amizade e da retidão” (p.283).

O coração é, de fato, o centro vital do ser humano, uma vez responsável pela circulação do sangue. Por isso, ele é tomado como símbolo das funções intelectuais. [...] A luz do espírito e da intuição intelectual, da revelação brilha na caverna do coração (CHEVALIER, 1999, p.282).

Essa imagem criada no peito dos pássaros poderia ser, então, compreendida, na visão de Chevalier (1999), como um amor divino, um sentimento forte e profundo desses animais pelo país e sua música.

Figura 6 – Filme Rio, sequência 1, cena 6 

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Fonte: DVD 2013 do filme Rio de 2011
01:51 – PG/EXTERNO/DIA – plano de nove pássaros verdes pulando entre as flores de uma árvore. Essas flores voam entre os pássaros como confetes coloridos de carnaval. ÁUDIO: música Real in Rio.

Nesta cena, observam-se nove pássaros verdes pulando alegres entre galhos floridos de uma árvore. Essas leves e coloridas pétalas de flores voam entre os pássaros sambando, remetendo a um elemento do carnaval, o confete,

Figura 7 – Filme Rio, sequência 1, cena  7

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Fonte: DVD 2013 do filme Rio de 2011.
01:57 – PG/EXTERNO/DIA – zoom in do personagem Blu dormindo em seu ninho. Ao ouvir a música, ele balança o rabo no ritmo da festa e acorda para espiar pelo buraco de sua casa o que está acontecendo. ÁUDIO: música Real in Rio.

Na figura 7, é apresentada a personagem principal da trama, Blu. Ele está dormindo, mas, ao ouvir o ritmo do samba, começa a mover sua cauda simulando passos de dança. Esse dançar remete ao fato de que o ritmo do samba é algo familiar para os brasileiros, inclusive para uma ave/filhote que o escuta provavelmente pela primeira vez. Neste momento, utilizam-se as teorias do autor Joseph Campbell (1949) para explicar a função deste herói na história e sua trajetória. É importante destacar a relevância da ambientação do local onde o personagem se encontra, em seu ninho. O ninho é um círculo e esta forma representa um grupo de parentesco, clã ou tribo. Para Campbell:

Quer o herói ali tenha nascido ou sido torturado, ou por ali tenha voltado ao vazio, o local é assinalado e santificado. Nele é erigido um templo para representar e inspirar o milagre da perfeita convergência, pois esse é o local da irrupção na abundância (CAMPBELL, 1949, p.23).

O ninho é, então, um lugar santificado, o ponto de partida do personagem e o centro do seu mundo. Sair dessa zona de conforto seria o abandono de sua família e sua inocência. Segundo Campbell (1949), o herói é “o homem da submissão autoconquistada” (p.12). A aventura do herói, conforme o autor, costuma seguir o seguinte modelo: um afastamento do mundo, uma penetração em alguma fonte de poder e um retorno que enriquece a vida. No filme Rio (2011), tudo começa a partir desta cena, e, depois da apresentação do personagem herói, ele vai ser convocado, por conta do sequestro, para uma aventura.

O chamado da aventura significa que o destino convocou o herói e transferiu-lhe o centro de gravidade do seio da sociedade para uma região desconhecida. Essa fatídica região dos tesouros e dos perigos pode ser representada sob várias formas: como uma terra distante, uma floresta [...] (CAMPBELL, 1949, p.33).

Esse chamado deve ser respondido consciente ou inconscientemente pelo herói, mas, apesar de uma possível recusa, várias indicações e uma força crescente vão se tornar visíveis para a personagem, até que a convocação já não possa ser recusada. Em Rio (2011), Blu não tem a chance da escolha, pois ele é levado a uma aventura de maneira involuntária. Em sua inocência, por sua pouca idade, o personagem não tem consciência de que é um dos últimos pássaros de sua espécie; então, através da privação de sua liberdade, ele terá que vencer limitações e, somente então, alcançar o que tanto deseja a partir do momento em que se vê aprisionado: a sua liberdade, de seus semelhantes e a continuidade da espécie. Blu pode ser considerado um herói que vai se descobrindo aos poucos, por força das circunstâncias.

Figura 8 – Filme Rio, sequência 1, cena  8

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Fonte: DVD 2013 do filme Rio de 2011.
02:37 – PG/INTERNO/DIA – plano do personagem Blu de costas para a câmera observando a festa que os pássaros estavam fazendo na floresta. ÁUDIO: música Real in Rio

Por ser um filhote, Blu ainda não sabe voar. Ele observa atentamente os outros pássaros voando na floresta, dançando como se fosse uma verdadeira festa de carnaval. As cores são vibrantes, os animais são separados por alas tal qual em um desfile de escola de samba. A plenitude é quebrada quando, repentinamente, os pássaros começam a ser presos em gaiolas e armadilhas. O caos se instala na floresta. Em meio à correria, Blu perde o equilíbrio e cai de seu ninho. É a saída dele de seu círculo protetor, como trata Campbell (1949).

Figura 9 – Filme Rio, sequência 1, cena  9

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Fonte: DVD 2013 do filme Rio de 2011.
02:50 – PG/EXTERNO/DIA – plano do personagem Blu caindo do tronco de sua árvore até o chão. ÁUDIO: corta som da música Real in Rio e ouve-se apenas o som do animal caindo entre as folhas.

A música acaba, ou, em outras palavras, a festa acaba com a chegada dos vilões que até este momento não foram mostrados. O silêncio é um elemento importante nesta cena, pois gera um clima de suspense e tensão. E é nesse silêncio que surge a imagem do vilão; segundo Campbell:

A figura do monstro-tirano é familiar às mitologias, tradições folclóricas, lendas e até pesadelos do mundo; e suas características, em todas as manifestações, são essencialmente as mesmas. Ele é o acumulador de benefício geral. É o monstro ávido pelos vorazes direitos do “meu para mim” (CAMPBELL, 1949, p.11).

Apesar do vilão ainda não mostrar o seu rosto, existe um elemento maléfico que foi capaz de trancafiar as criaturas que há pouco tempo estavam felizes cantando pela floresta. Triste, o herói Blu fecha os olhos e, quando os abre, há uma fusão de imagens com zoom out de sua gaiola em plano detalhe, mostrando-a como apenas mais uma entre tantas gaiolas dentro de um avião de carga.

Figura 10 – Filme Rio, sequência 1, cena 10

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Fonte: DVD 2013 do filme Rio de 2011.
03:02 – PM/EXTERNO/DIA – plano do personagem Blu piando olhando para as copas das árvores, sem entender o que está acontecendo, quando uma gaiola aparece ao seu redor.

Figura 11 – Filme Rio, sequência 1, cena 11

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Fonte: DVD 2013 do filme Rio de 2011.
03:05 – PG/EXTERNO/DIA – zoom out da gaiola do Blu, aparece a traseira de um avião de carga com várias gaiolas com os pássaros capturados dentro. ÁUDIO: barulho das hélices do avião.

O vilão é apresentado na forma de ganância, suborno, propina ou o jeitinho brasileiro, que é comentado nos estudos de DaMatta (1984). A cena (Figura 12) mostra a sombra de duas mãos, uma entregando e a outra recebendo dinheiro. Se fosse uma venda legalizada, ou seja, um ato de compra e venda lícito, poderiam ser mostrados os elementos que envolvem essa transação como uma caixa registradora, uma nota fiscal, recibos e, o mais importante no cinema, o rosto dos personagens. Mas, como se trata de um tráfico ilegal de animais silvestres, esses indivíduos se escondem. E a cena retrata muito bem essa situação, pois ninguém é identificado nela.

Figura 12 – Filme Rio, sequência 1, cena 12

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Fonte: DVD 2013 do filme RIO de 2011.
03:07 – PLANO DETALHE/EXTERNO/DIA – plano detalhe da sombra das mãos, uma pagando e a outra recebendo dinheiro.

Figura 13 - Filme Rio, sequência 1, cena 13

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Fonte: DVD 2013 do filme Rio de 2011.
03:08 – PG/EXTERNO/DIA – plano do avião decolando da floresta do Rio de Janeiro.

A primeira sequência escolhida para análise termina quando o avião decola da floresta e some no azul do céu, levando os animais capturados em seu bagageiro. Essa situação também pode ser vista como algo corriqueiro no Brasil, e, de certa forma, também é uma representação do país, tanto interna como externamente.

Considerações finais

Pode-se dizer que Rio (2011) se vale de uma imagem estereotipada de cenários da cidade maravilhosa, os quais já foram vistos em outros filmes que também retratam o Rio de Janeiro. A imagem do Brasil no exterior é promovida de maneiras diversas, através da indústria do turismo e também da mídia, conforme explica Amancio (2000):

As duas grandes matrizes do estereótipo brasileiro no exterior são a indústria do turismo e o noticiário da imprensa internacional. Nos últimos anos, esse segundo polo tem eclipsado sobremaneira a boa imagem fornecida pelo primeiro. O estereótipo positivo, o da terra do carnaval, do samba e do futebol, das mulheres sorridentes e curvilíneas, da natureza tropical ensolarada, pródiga e desfrutável é claro que persiste como imagem sólida, atávica. Enodoada talvez. Mas sempre vigorosa. Continuam vindo de quando em quando produções estrangeiras filmar aqui e ali, tonalidades sensuais ou até lúbricas menos cogitáveis no tempo de Carmen Miranda.  Quanto a imagem negativa difundida nos noticiários, carrega-se nas tintas unicamente o país da violência, da criminalidade desenfreada, do descalabro das autoridades, da miséria, do descaso pelo social e sobretudo um péssimo convívio com a natureza (AMANCIO, 2000, p. 35).

 

No filme analisado, observamos em diversos momentos imagens negativas do país, representadas, principalmente, por ações das personagens brasileiras. Nas figuras 12 e 13, por exemplo, há a clara menção do tráfico de animais exóticos, algo muito comum no Brasil, mas pouco divulgado em noticiários internacionais. Ao desvelar tal crime em uma narrativa fílmica tão popular quanto essa, percebemos que o diretor tece uma dura crítica contra esse delito, indicando, também, a pouca preocupação que autoridades brasileiras têm em exterminar tais atos, uma vez que os animais são enviados para outros países, como aconteceu com a ararinha, personagem principal. Há outras representações negativas do Brasil evidenciadas no filme, como a violência e a pobreza das favelas, a corrupção; revelando, assim, que há duas faces de um mesmo país, uma propícia ao turismo, e outra nem tanto, que muitas vezes, somente é revelada aos seus moradores.

Contudo, não se pode subestimar o espectador, pois Thompson (1995) menciona uma ruptura entre a produção e a recepção dos bens simbólicos, uma vez que essas formas serão apropriadas de diferentes maneiras, de acordo com sua natureza e objetivo, e interpretadas de variadas formas, conforme as experiências dos receptores.

Outro elemento importante que deve ser discutido é a personagem principal, Blu, a ararinha-azul, frágil, porém capaz de defender os outros indivíduos da espécie, tornando-se o herói da trama.

Araras e papagaios, em sua variedade tipológica, são imagens que refletem o exotismo da floresta tropical, por sua exuberante plumagem, pela sua capacidade de articular sons que reproduzem a fala humana, pelo colorido que emprestam à composição da cena cinematográfica. Pousados em armações metálicas, presos em gaiolas, circulando livremente pelos ambientes, ou desenhados em quadros, os papagaios marcam uma presença do Brasil nas telas (AMANCIO, 2000, p.125).

Com isso, o autor faz menção a traços semânticos que estão aí conotados nos pássaros, como alegria de viver, astúcia, papagaio das anedotas, comunicabilidade, domesticabilidade.

Amancio (2000) explica que essas imagens de paisagens de cidades como o Rio de Janeiro, por exemplo, retratadas nos filmes, podem ser chamadas de “imagem de cartão-postal”. O mesmo autor menciona ainda uma cristalização da imagem do Brasil que, de tão estereotipada, tornou-se clichê.. Ele pensa na profundidade das estruturas da narrativa e o uso dessas imagens como paisagens. “Nos filmes, eles executam duas funções: como elemento de localização geográfica e como pausa narrativa” (p.153).

Com a análise do filme Rio (2011), foi possível identificar elementos que influenciam a criação de uma identidade brasileira como os cenários do Rio de Janeiro, por exemplo: Maracanã, Calçada de Copacabana, Cristo Redentor, Pão de Açúcar. Esses cenários podem ser encontrados em outras obras de ficção audiovisual, criando uma imagem do Brasil para aqueles indivíduos que não conhecem o país. A imagem criada é de exuberância se enaltecidas as belezas naturais.

Através dos meios de comunicação de massa, neste caso o filme Rio, podemos organizar e pensar questões de representação e de reversão de algumas ideias sobre o clichê e o estereótipo e podemos perceber o ponto de vista do autor sobre o Brasil, apresentado sobre duas perspectivas. Na positiva são enaltecidas as belezas naturais do Rio de Janeiro através de paisagens, cores, flores, florestas, animais e pássaros; a cidade é muitas vezes considerada o grande cartão postal do país no exterior, assim como a festa de carnaval, e toda a simbologia que esta festa traz consigo por meio da malandragem, do samba, do gingado, do ritmo, da música, da dança, das cores, dos destaques.

A perspectiva negativa é abordada pelo autor na ênfase ao fato de que o Brasil é um país em desenvolvimento, marginalizado, onde é possível comprar pássaros em extinção através de propina ou suborno, enfim, um ato de violência (o roubo, o tráfico), e onde ainda há muita desigualdade social, marcada em cenas onde aparece a pobreza na favela e o menino órfão Fernando (em sequências posteriores àquela analisada).

O ponto de vista do autor está presente nas imagens analisadas,  e ele utiliza essa forma simbólica (filme) para mostrar aos estrangeiros muitas coisas que o Brasil tem a oferecer (como, por exemplo, belezas naturais, carnaval) e nesta afirmação poder-se-iam incluir animais silvestres.

 Se o desenho animado foi pensado e criado para trazer visibilidade ao país, essa é uma visão fantasiosa ou utópica, pois há questões graves como os crimes cometidos. Entretanto é importante refletir acerca das consequências de uma narrativa que revele não somente aspectos positivos, mas que aponte para graves problemas existentes no país. Evidentemente percebemos e talvez até nos choquemos – por sermos brasileiros- com a crítica presente no texto fílmico analisado, por outro lado, essa dicotomia de imagens possibilita aos espectadores oportunidade de reflexão acerca das representações do Brasil, elaboradas e veiculadas em diversas mídias. Ou seja, é o espectador quem terá a tarefa de, ao final e ao cabo, reinterpretar as mensagens presentes nos textos decodificados.

Entretanto, segundo Thompson (1995), o espectador não é um ser passivo e pode interpretar o que vê das mais variadas formas de acordo com suas experiências, o que representa a ruptura entre a produção e a recepção dos bens simbólicos.


NOTAS:

(1) O filme Rio, lançado em 2011, foi dirigido por Carlos Saldanha e produzido por Chris Jenkins e Bruce Anderson. É um filme de animação no qual uma arara azul que nasceu no Rio de Janeiro e foi capturada na floresta,acaba indo para Minnesota, nos Estados Unidos.Neste local foi criada e voltou ao Brasil por intermédio de um ornitólogo que informa que ela é o último macho de sua espécie e que gostaria que acasalasse com uma fêmea eu está no Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMANCIO, Tunico. O Brasil dos gringos: imagem no cinema. Niterói: Intertexto, 2000.

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1949.

CHEVALIER, Jean; CHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 13. ed., rev. ampl. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.

DAMATTA, Roberto da. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1984.

FARINA, Modesto. Psicodinâmica das cores em comunicação. 4. ed. São Paulo, Edgard Blücher, 1990.

THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na área dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: RJ: Vozes, 1995.

Recebido: 22/05/2014
Aceito: 25/08/2014

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