Questões Contemporâneas

INTERTEXTUALIDADE E PERSONAGENS: CONSIDERAÇÕES SOBRE A TELENOVELA BRASILEIRA E A COMMEDIA DELL’ARTE.

MARIA MARGARETE SCHERER

Mestre em Processos e Manifestações Culturais (Universidade FEEVALE - RS). Pós-graduação em Marketing (Universidade FEEVALE - RS). Gerente de Marketing Aplicado – OLVEBRA/RS

HUMBERTO IVAN KESKE

Doutor pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); Professor de Graduação, Pós-Graduação e Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Comunicação e Cultura – Universidade FEEVALE – Novo Hamburgo/ RS


Resumo: De acordo com Ricardo Zani (2003), foi Julia Kristeva que concebeu o termo intertextualidade em 1969, a partir da reutilização do que Mikhail Bakhtin (1993) havia denominado de dialogismo na década de 20, ou seja, são variantes de um mesmo referencial (a troca e a interação entre ideias e sujeitos significantes) para designar um mesmo termo. Neste conceito, observa-se que qualquer texto deriva de um diálogo com outros textos e com seus espectadores e leitores, ou ainda, um diálogo entre vozes e discursos. A Telenovela Brasileira e a Commedia dell’Arte, apesar de serem manifestações artísticas de épocas muito distantes, acabam por ter aspectos de construção de personagens em comum, justamente pelo caráter de intertextualidade próprio de todo e qualquer texto. A Telenovela atual empresta da Commedia dell’Arte características bem próximas quanto à construção das personagens. Nesta pesquisa temos por iniciativa aproximar os arquétipos de uma e de outra para dar uma ideia das semelhanças encontradas em ambas, quanto às características das personagens.
Palavras-chave: Intertextualidade; personagem; telenovela brasileira; commedia dell’Arte

INTERTEXTUALITY AND CHARACTERS: CONSIDERATIONS ABOUT BRAZILIAN SOAP OPERA AND COMMEDIA DELL'ARTE

 

Abstract: According to Ricardo Zani (2003), it was from Julia Kristeva’s term ‘intertextuality’ in 1969, coming from the reuse of what Mikhail Bakhtin (1993) had called the 1920’s dialogism, therefore, they’re both variables from a same reference (the exchange and interaction between ideas and its significant subjects) to designate the same term. Following this concept, it’s observed that any text is given from a conversation on other texts and with its readers and viewers, or so, a dialog between voices and speeches. The Brazilian Soap Operas and the Commedia dell’Arte, despite of the characteristics on being an artistical manifestations from long apart times in history, both end it up having the same aspects on creating characters, precisely on its ‘intertextuality’ characteristics appropriate to all and every type of script.  The Brazilian Soap Opera nowadays borrows from the Commedia dell’Arte characteristics as to building its characters. In this research we’ll initiate approaching the archetypes from one to another, to give an idea of the similarities between each as it for the characters’ characteristics.
Keywords:  Intertextuality; character; Brazilian Soap Opera; Commedia dell’Arte.

INTRODUÇÃO

Conforme Diana Luz Pessoa de Barros e José Luiz Fiorin (1994, p. 4), “a intertextualidade não é mais uma dimensão derivada, mas, ao contrário, a dimensão primeira de que o texto deriva”. Consideram também que um aspecto importante a ser considerado sobre o dialogismo é o do “diálogo entre os muitos textos da cultura, que se instala no interior de cada texto e o define”. Esta é uma característica predominante tanto na Commedia dell’Arte quanto na concepção das personagens da Telenovela Brasileira. Esta última, acabou por condensar várias vozes, o que ao longo dos anos, lhe deram a forma que apresenta na atualidade.

Intertextualidade ou dialogismo

Para José Alencar Diniz (2009, p. 39), “o dialogismo é o resultado do embate de várias e diferentes vozes em um mesmo enunciado”. O autor também aponta que, na visão de Bakhtin, o diálogo é uma das formas mais importantes de interação verbal e não pode ser individual por ser “fruto do diálogo entre os discursos e da interação verbal entre enunciador e enunciatário”. De acordo com Zani (2003, p. 125), “a intertextualidade nasce de um diálogo entre vozes, entre consciências ou entre discursos [...] para gerar novos discursos e definir-se então como um diálogo de citações”.

A intertextualidade que perpassa a construção da narrativa, textual-fílmica, remete à noção de que as obras são feitas a partir das leituras e releituras de outras obras. Ou seja, um texto só existe em meio a outros textos, que se (inter) relacionam, se imbricam e colidem. Seu significado não pode ser pensado como tendo um destino único e isolado, mas sim, como um evento possibilitado por textos anteriores que, de alguma forma, dialogam com seus contemporâneos. A possível “origem” da obra, perde importância em detrimento de todos os acréscimos fornecidos pelos demais textos que a partir daquele vão surgindo. Tal atualização é proporcionada, justamente, pelo reconhecimento das intertextualidades e das repetições levadas a cabo pelos leitores/espectadores.(HUMBERTO IVAN KESKE, 2003, p. 19).

Esta interação, confrontação ou encontro de um texto com  outro, e de vários textos que “conversam” entre si, acaba por proporcionar uma compreensão familiar ao telespectador, por lhe possibilitar reconhecer-se a si e ao outro na constituição do roteiro da Telenovela. Um ponto interessante abordado por Beth Brait (2009, p. 161-162), diz que, para Bakhtin, “o elemento essencial do dialogismo é o discurso referido” e, para aprofundar, discorre sobre as conjecturas do autor:

[...] como capacidade discursiva, abre as fronteiras da textura formal do diálogo e o eleva à sua máxima potencialidade expressiva, e cuja realidade explícita no texto é constituída pelo discurso “referido” ou o discurso do “outro”, como possibilidade dialógica do locutor-sujeito que conduz a narração. Em suas palavras, o dialogismo do discurso no seu sentido e na sua expressão atravessa diversas expressões e sotaques estranhos; está de acordo com certos elementos, em desacordo com outros, e neste processo de dialogização pode dar forma à sua imagem e ao seu tom estilístico. (BRAIT, 2009, p. 161-162).

A partir destes conceitos, Brait (2005), afirma que o dialogismo, através do processo de comunicação, constrói a imagem do homem que assim se vê e se reconhece também na imagem que o outro faz dele. Esse princípio descreve também o processo de identificação proporcionado pela Telenovela: ou seja, o espectador se vê espelhado na trama, ou aos outros que conhece, ou a situações que reconhece, ou igualmente a lugares que remetem sua vivência ou lembrança. Uma identificação que, ao mesmo tempo em que reconhece tratar-se de uma obra de ficção, termina por aceitar de antemão que se trata de uma narrativa, ou construção ficcional ou Pacto Ficcional, de acordo com Eco, conforme nos referimos anteriormente. (KESKE, 2003).

Sobre esta questão Maricéia Benetti (2004, p. 102), afirma que:

O dialogismo/intertextualidade trabalha justamente com essas possibilidades. Saber reconhecer texto dentro de texto. [...] As referências clássicas, mesmo as veladas, que cada autor apresenta, podem ser verificadas pelo leitor/receptor/sujeito.

O leitor/receptor/sujeito se utiliza então da sua enciclopédia como preconiza Umberto Eco (1994) para acertos e ajustes, a fim de procurar entender e cooperar com o texto que lhe é apresentado.

Keske (2003, p. 20) afirma que “a competência intertextual abrange sistemas semióticos familiares ao leitor. Trata-se de uma intertextualidade que é baseada em experiências anteriores às quais o leitor teve acesso. Nenhum texto é lido independente da experiência que o leitor tem de outros textos”. 

A Commedia dell’Arte: o modelo de personagens

A Commedia dell’Arte nasceu na Itália e consolidou-se ao longo da história entre os séculos XVI e XVIII, expandindo-se depois por toda a Europa. Considerada como a primeira escola profissional de atores, caracterizou-se pelas improvisações e pela habilidade técnica e gestual dos artistas. Tornou-se um exemplo na história do teatro e um modelo de manifestação artística, que acabou por influenciar desde a Renascença até o teatro contemporâneo. (MARCÍLIO DE SOUZA VIEIRA, 2005, p. 21).

As trupes itinerantes de atores se espalham pela Europa, buscando uma modalidade de expressão artística que exigiria o domínio de técnicas dos comediantes como o canto, a dança e acrobacias, e que iria determinar a peculiaridade das atividades. Para muitos estudiosos e historiadores, as companhias de Commedia dell’Arte seriam consideradas como responsáveis pelas primeiras práticas profissionais no teatro e vistas como primeiro grande laboratório de atores da história. (NANCI DE FREITAS, 2008).

Considerada como herdeira das farsas representadas pelos bobos da corte durante a Idade Média, a Commedia dell’Arte, fazia da interpretação dos atores o seu principal elemento. Do talento destes artistas dependia toda a obra, visto não se tratar de uma dramaturgia fechada ou acabada. Os atores se valiam de técnicas gestuais e corporais, como a acrobacia, para dar suporte a apresentação (VIEIRA, 2005). As farsas são encontradas desde Aristófanes (época grega) até Plauto (época latina), mas só virá a se constituir como gênero durante a Idade Média. “A farsa deve sua eterna popularidade a uma forte teatralidade e a uma atenção voltada para a arte da cena e para a elaboradíssima técnica corporal do ator”. (PATRICE PAVIS, 2008, p. 164).

Utilizando um acervo de materiais em que constavam trechos paródicos de comédias clássicas, sátiras, farsas, poemas, citações musicais, piadas e danças obscenas, números circenses, cenas de amor e pantomimas os espetáculos organizavam-se a partir dos canovaccios ou scenarios, constituindo-se de roteiros de ações e enredos, por meio dos quais os atores improvisavam. Com a repetição dessas estruturas de ações, os comediantes remontavam e associavam os elementos de seus próprios acervos artísticos, de acordo com o lugar e a ocasião, numa performance viva, que conferia espontaneidade e atualidade a cada apresentação. (NANCI FREITAS, 2008, p. 66).

As personagens no teatro assumem os traços e a voz do ator, mas esta “identidade” se referia, nos primórdios das representações, apenas a uma máscara ou persona, e correspondia, no teatro grego, ao papel dramático. Sobre esta relação entre personagem e pessoa e o significado que persona adquire como ser animado, Pavis (2008, p. 285), esclarece que:

No teatro grego, a persona é a máscara, papel assumido pelo ator, ela não se refere à personagem esboçada pelo autor dramático. O ator está nitidamente separado de sua personagem, é apenas seu executante e não sua encarnação a ponto de dissociar, em sua atuação, gesto e voz. Toda a seqüência da evolução do teatro ocidental será marcada pela completa inversão desta perspectiva: a personagem vai se identificar cada vez mais com o ator que a encarna e transmudar-se em entidade psicológica e moral semelhante aos outros homens, entidade essa encarregada de produzir no espectador um efeito de identificação. (PAVIS, 2008, p. 285).

Na Commedia dell’Arte, o uso da máscara será primordial como parte da vida de algumas das principais personagens desta manifestação artística e se tornará uma das suas principais características. As máscaras eram usadas por tipos fixos e cômicos como o Arlequim, o Pantalone, o Capitano e o Dottore, e servia para o público identificar essas personagens. Importante ressaltar que, os innamoratis (namorados), não utilizavam máscaras, por serem responsáveis pela sedução. (VIEIRA, 2005). A não utilização de máscaras neste caso seria com o objetivo de introduzir o elemento “real” para estas interpretações, que era o caso da personagem Colombina. (RENATA SOARES JUNQUEIRA e MARIA GLORIA CUSUMANO MAZZI, 2008).

Como se percebe, o uso das máscaras no teatro se perde no tempo. Eram usadas em rituais mágicos ou religiosos e a arte teatral passou a adotá-las porque permitia criar outra face que, apesar de falsa, era também mais expressiva, grotesca ou horrível e era usada para compor tipos fixos: o velho, o alcoviteiro, o aproveitador, etc. A Commedia dell’Arte também fez grande uso das máscaras, e neste novo contexto cultural, continuou a significar um tipo fixo. Esses tipos foram atualizados e ampliados como: o marido ciumento, o pai severo, o velho apaixonado, o doutor falastrão dentre outros. (ROBERTA BARNI, 2003, p. 13). Na visão de Freitas (2008, p. 68),

Enquanto na comédia grega a ênfase temática estaria na sátira social e política, na comédia nova ganharia destaque à crítica de costumes, com a representação de tipos que apontavam para certa caracterização individual, sem perder o foco em categorias sociais. (FREITAS, 2008, p. 68).

Telenovela brasileira: personagens e o modelo complexo

Apesar de o romance-folhetim ser a fonte mais evidente da Telenovela, seria prudente considerá-la como oriunda de várias narrativas antecedentes. Dentre elas, estaria presente o já abordado melodrama teatral, que seria o romance europeu do século XIX; o romance-folhetim apresentado nos jornais também no século XIX; o romance-folhetim em fascículos, por entrega; a radionovela; as histórias em quadrinhos e a fotonovela. (FLÁVIO LUIZ PORTO E SILVA, 2005, p. 46).

 Sendo o melodrama um dos principais elementos que deram origem à narrativa da atual Telenovela e que terminou por se constituir em uma parte importante como antecedente de suas características de produção, cabe aqui conceituarmos o termo, que segundo Pavis (2008. p. 238) é:

[...] a finalização, a forma paródica sem o saber, da tragédia clássica, [...]. A estrutura narrativa é imutável: amor, infelicidade causada pelo traidor, triunfo da virtude, castigos e recompensas, perseguição como eixo da intriga. [...] As personagens claramente separadas em boas e más, não têm nenhuma opção trágica possível; elas são poços de bons ou maus sentimentos, de certezas e evidências que não sofrem contradição. [...] As situações são inverossímeis, mas claramente traçadas: infelicidade absoluta ou felicidade indizível. (PAVIS, 2008, p. 238)

     Ao tratar este tema, Diniz (2009, p. 47) aborda que “o folhetim é o melodrama impresso”, com ações eletrizantes, enredos complexos e vários personagens, além de adotar uma estrutura narrativa do “continua amanhã”. As temáticas são calcadas no conflito ou disputa entre o bem e o mal, entre o mocinho e o bandido. Essa divisão, segundo Jean-Marie Thomasseau (2005), corresponde à simples e intangível divisão da própria humanidade. As personagens da ficção serão então construídas para representar os vários valores morais e particulares de uma sociedade, que se verá espelhada na trama. (THOMASSEAU, 2005).

Os personagens do melodrama são personae, máscaras de comportamentos e linguagens fortemente codificadas e imediatamente identificáveis. Esta tipologia caracterizada pela fixidez dos tipos reduz-se a algumas entidades principais: o vilão, a vítima inocente, o cômico; e outras secundárias, como o pai nobre, ou o protetor misterioso. (THOMASSEAU, 2005, p. 39).

  Da mesma forma como em outras manifestações artísticas, a criação e a construção das personagens também criam e constroem a trama na Telenovela. As personagens são o componente principal para o “contar” das histórias. Nesta linha, Rose Calza (1996, p. 30) diz que “parece não ser arriscado afirmar que uma Telenovela se constrói com grandes personagens que têm que contar uma história”.

El hecho de que las telenovelas – [...] – presenten narraciones con un final implica que los personajes no se ven obligados a pasar por todo tipo de aventuras, sino que siguen siendo básicamente los mismos. En la telenovela, los personajes deben vivir sólo una historia; al haber más espacio para la construcción de tipos humanos, éstos pueden desarrolarse, en su especificidad, de manera más compleja. (MARTA KLAGSBRUNN, 1997, p. 160).

As personagens é que vivem as tramas, e estas, por sua vez, existem por causa delas. Na visão de José Roberto Sadek (2008, p.89), “[...], as histórias são contadas, compostas e constituídas pelas ações das personagens”. No cenário das Telenovelas, são os protagonistas que conduzem a trama e em torno dos quais as ações são organizadas. Ao tratar da Commedia dell’Arte, aqui também reaparece a ideia do trio actancial que dará movimento a trama. (ECO, 1979). Os actantes introduzem a ideia das personagens na trama e seu papel no curso da narrativa. Da mesma forma que na Commedia dell’Arte, na Telenovela Brasileira, comparativamente, os atores acabam por se fixar na representação de uma mesma personagem durante sua carreira artística e pela qual passam a ser reconhecidos, identificados e aceitos.

Na Telenovela Brasileira, a narrativa se constrói baseada na interpretação de várias personagens que darão vida à trama e suas construções dramáticas. Neste viés, Sadek (2008) afirma que:

As telenovelas, como sabemos, apresentam diversas tramas que se desenvolvem paralela e interligadamente. É natural que cada uma delas tenha um personagem principal, o que, no conjunto da obra, significa ter vários protagonistas, inovando o princípio tradicional das histórias de apresentar apenas um (ou um grupo solidário). Assim, as ações são desencadeadas por vários personagens, e não apenas por um deles. (SADEK, 2008, p. 92).

    Ainda na sequência do pensamento da autora, é importante salientar que essa profusão de personagens principais, por aumentar as possibilidades de identificação com os espectadores, aumenta também as chances de aceitação, além das chances de que as preferências da plateia sejam contempladas. Essa empatia será não apenas com as personagens da trama como também com o enredo que se desenrola em torno delas.

A personagem: função nas narrativas

Na concepção de Pavis (2008, p. 287),

A personagem [...] é concebida como um elemento estrutural que organiza as etapas da narrativa construindo a fábula, guiando o material narrativo em torno de um esquema dinâmico que concentra em si um feixe de signos em oposição a duas das outras personagens. (PAVIS, 2008, p. 287).

O autor também pontua que a personagem se define por traços distintos e binários que a caracterizam como: herói/vilão, mulher/homem, criança/adulto, enamorado/não-enamorado, e que fazem dela um paradigma, ou ainda “o cruzamento de propriedades contraditórias”.

A personagem, porém, se integra igualmente ao sistema das outras personagens; ela vale e significa por diferença, num sistema semiológico feito de unidades correlatas. É uma engrenagem dentro do conjunto da maquinaria dos caracteres e das ações. Certos traços de sua personalidade são comparáveis aos traços de outras personagens e o espectador manipula essas características como num fichário em que cada elemento remete a outros. Essa funcionalidade e essa capacidade de montagem/desmontagem fazem dela matéria bastante maleável, apta a todas as combinações. (PAVIS, 2008, p. 287-288).

  No livro A Estética do Filme, de Jacques Aumont (1995, p. 131), o autor apresenta os conceitos de Vladimir Propp, que “propunha chamar de actantes os personagens que, para ele, não se definem por seu estatuto social ou por sua psicologia, mas por sua “esfera de ação”, isto é, o feixe de funções que cumprem dentro da história”. Propp observava que uma função pode ser cumprida por vários personagens, assim como também um personagem pode cumprir várias funções. Como observa Jésus García Jiménez (1993, p. 275), “ninguna función puede definirse sin su atribución a un personaje. Las funciones remiten siempre a verbos de acción, que requieren un sujeto agente”.

     Discorrendo ainda sobre a importante função da personagem na construção das narrativas, Roland Barthes (2008) também cita as considerações propostas por Propp quando enfatiza que:

Desde Propp, a personagem não cessa de impor à análise estrutural da narrativa o mesmo problema: de um lado as personagens (por qualquer nome que lhes chame: dramatis personae ou actantes) formam um plano de descrição necessário, fora do qual as pequenas ações narradas deixam de ser inteligíveis, de sorte que se pode dizer que não existe uma só narrativa no mundo sem “personagens” ou ao menos sem “agentes”. (BARTHES, 2008, p. 44).

  Barthes (2008, p. 45) salienta que A.J. Greimas acompanha os pensamentos de Propp quando “propôs descrever e classificar as personagens da narrativa, não segundo o que são, mas segundo o que fazem (donde seu nome de actantes) [...]”. A partir da ideia de Barthes (2008), os estudos e configurações das personagens se dão a partir da esfera de ações das quais participam nas narrativas e do conseqüente movimento que proporcionam. Como esclarece Pavis (2008, p. 7), essas visões, principalmente de Propp (1929) e de Greimas (1966), deram origem ao chamado Modelo Actancial, cujo esquema se impôs “nas pesquisas semiológicas, para visualizar as principais forças do drama e seu papel na ação”. Neste esquema, que não é consenso exato entre os autores, as personagens seriam divididas entre um número mínimo de categorias para englobar todas as combinações possíveis ou efetivamente realizadas. (PROPP, 1929 e GREIMAS, 1966). Assim sendo, na perspectiva de Propp (1928) a narrativa partiria de sete actantes ou sete esferas de ação, como o mau (que comete a maldade) e o herói (que age e é submetido a diversas peripécias) e outros. Por tais razões, optamos também por priorizar as personagens como foco das narrativas que, em termos actanciais, se transpuseram da Commedia dell’Arte para a atual Telenovela Brasileira.

 Esse modelo actancial (Pavis, 2008, p.9), tem a vantagem de não separar mais os caracteres da ação e de clarificar “os problemas da situação dramática, da dinâmica das situações e das personagens, do surgimento e da resolução dos conflitos”. Porém, como salienta Pavis (2008), não existe uma fórmula mágica ou definitiva e o que realmente se define como a razão de ser deste modelo é sua capacidade de diferentes combinações, ou seja, sua mobilidade ou capacidade de ramificações. Cabe lembrar, portanto, que “os actantes só tem existência teórica e lógica dentro de um sistema de lógica da ação ou de narratividade” (PAVIS, 2008, p.9).

O termo actancial de acordo com Eco (1979) remete às ações das personagens, que são por isso chamadas de actantes em relação a determinado curso narrativo.

Os actantes são um número finito e permanecem invariáveis, já os personagens são um número praticamente infinito, pois seus atributos e seu caráter podem variar sem que sua esfera de ação seja modificada. (AUMONT, 1995, p. 131).

Isso permite reconhecer que, na visão de Eco (1979), essas esferas de ação das personagens, que cumprem funções dentro da narrativa, podem ser entendidas como topics ou marcas textuais, que as caracterizam e que as identificam junto ao público leitor/espectador como parte constante e inalienável de toda e qualquer narrativa. Outro ponto essencial é que os actantes, que, como vimos, constam das estruturas actanciais, estão também previstos no Modelo Semiótico-Textual de Eco e Fabri (1979).

Dentre tantas personagens que poderíamos considerar, percebemos que quatro delas podem ser destacadas por representarem arquétipos que se repetem na Telenovela tal qual ocorria na Commedia dell’Arte, que são: o aproveitador ou esperto; a moça correta ou eterna namorada; o sofredor ou ingênuo e o conquistador ou sem escrúpulos. Os arquétipos aqui apresentados foram elaborados a partir da simples observação das principais características que constantemente fazem parte das narrativas, quer seja na atualidade, como na Telenovela Brasileira, quer seja em épocas mais remotas como é o caso da Commedia dell'Arte. E isto, para dar conta dos comparativos feitos entre as personagens nessas duas construções.

Descrição das categorias e personagens

Aproveitador ou esperto

 Esta é a personagem que manipula, cria artimanhas, engana e está sempre articulando algo escuso para levar vantagens. Tem como característica o fato de que suas investidas tendem a colocar a culpa em outrem para se safar ilesa e poder se gabar de sua esperteza. Suas trapaças e manobras são premeditadas e praticadas sem nenhum sentimento de culpa. As análises comparativas que aqui exploramos quanto às características das personagens, tem no modelo actancial um suporte que fornece uma nova visão desta personagem, (PAVIS, 2008, p.7),que agora não é “mais assimilada a um ser psicológico ou metafísico, mas a uma entidade que pertence ao sistema global das ações”, e que tem por finalidade esclarecer a configuração destas personagens. Na Commedia dell’Arte é a personagem Brighela que representava essas peculiaridades.

Moça correta ou eterna namorada

 Sempre enamorada e apaixonada, esta personagem é constante nas narrativas, desde sempre. Íntegra e bela tem seu sucesso junto ao público garantido por personificar a inteligência e a determinação das mulheres sem prescindir de sua feminilidade. Na Commedia dell’Arte, como já foi exposto, essa era uma das únicas que não utilizava a máscara, aludindo ao fato de que seu caráter estava aberto à apreciação do público. (JUNQUEIRA e MAZZI, 2008). Assim também, a “mocinha” de hoje tem um caráter bom e não precisa de disfarces; é representada várias vezes em cenas em que se expõem completa e abertamente ao público, vencendo os obstáculos com sua força, mas, sobretudo mantendo o aspecto humano e falível, sem ser transformada em “super-heroína”, o que a aproxima do mundo reconhecido pelo espectador. A personagem Colombina era na Commedia dell’Arte a única personagem feminina do espetáculo, e na Telenovela atual, este também será um papel desempenhado por mulheres, cujas características fundamentais remetem àquele momento histórico, entre os séculos XVI a XVIII.

Sofredor ou ingênuo

Essa é aquela personagem que de tão boa que é, acaba sempre sofrendo, por sua própria desventura ou porque os outros conseguem se aproveitar dela. Boa, honesta e na maioria dos casos extremamente ingênua, acredita que todos são bons e que nunca iriam feri-la. Muitos a consideram até tola, mas também capaz de heroísmos que a tornam uma personagem popular. O público sempre torce pelo bem desta personagem. Neste ponto, vemos novamente o caráter de potencial identificação do espectador com o “futuro” da personagem. Essas iniciativas são estimuladas por captarem as fantasias, sonhos, desejos de afeto, amor, etc, que passam a exigir do espectador comportamentos concretos. (MARIA ATAÍDE MALCHER, 2003). Na Commedia dell’Arte a personagem Arlequim também mantinha uma empatia com o público, que torcia para que suas desventuras fossem resolvidas.

Conquistador ou sem escrúpulos

Como principais características desta personagem há o fato de ser sempre da classe alta ou média alta, com prestígio na sociedade e habilidade para os negócios. Porém, tem uma faceta inescrupulosa, pois alcança sua posição social através de atitudes pouco respeitosas. Apesar de ser um pai ou mãe amorosos e dedicados, esta personagem também se mostra um(a) grande conquistador(a) com clara preferência por negócios escusos. Na Commedia dell’Arte esta personagem altiva ironizava a burguesia da época e, na atualidade, incorpora a figura que é rica ou possui uma boa qualidade de vida, mas é cheia de segredos inconfessáveis ou atitudes recrimináveis. Pantalone era a personagem que desempenhava esse papel tão recorrente nas narrativas atuais.

Considerações finais

A historicidade da personagem enquanto núcleo de ação tem ao longo dos tempos se igualado quanto às características básicas e passam as ser reconhecíveis dos espectadores (KESKE, 2003). A identificação proporcionada por esses arquétipos com os públicos se sustenta no fator de repetição a que estão sujeitas, salvaguardadas as diferenças quanto ao momento histórico e social em que se inserem e quanto à complexidade no desenvolvimento das tramas. As repetições acabam também por espelhar em seus personagens a sociedade e características de cada época.

 Pelo espaço de tempo que separa as duas manifestações artísticas é coerente afirmar que, ao longo da história, a narrativa na Telenovela Brasileira teve que se adequar a atual sociedade e contexto em que se insere. Reconhecemos, dentro deste contexto, que na Commedia dell’Arte a estrutura da narrativa era linear, enquanto na Telenovela ela é complexa. Hoje a Telenovela apresenta uma estrutura de multiplicidade de tramas ou sub-tramas com núcleos de personagens, que sequer existiam nos séculos em que a Commedia dell’Arte teve seu apogeu. Porém, os arquétipos, de forma geral, se repetem o que dá um caráter de atualidade nas narrativas da Commedia, cuja possibilidade de comparativo entre os arquétipos, advém do caráter de intertextualidade própria das narrativas, como vimos.

 Percebemos que quanto ao comportamento, as personagens se parecem com seus arquétipos na Commedia, mas devido ao fato de que, evidentemente, as narrativas na Telenovela tiveram de se atualizar para dar conta de seu próprio momento histórico, não se pretende encontrar uma total equiparação, mas sim, reconhecer nos tipos atuais aqueles que na Commedia já haviam sido representados.

    Podemos perceber aqui a ideia de Eco em Lector in fabula (1986), com primeira edição datada de 1979, quando afirma que as personagens representam os actantes, ou seja, o nível das ações e do movimento da narrativa. O termo actancial se remete então a essas ações desenvolvidas pelas personagens e aos papéis que essas desempenham no processo de construção do enredo. Percebemos, então, que as personagens das novelas exemplificadas desenvolvem suas ações de acordo com a categoria a que pertence e que desencadeiam no espectador previsões antecipadas dos acontecimentos futuros em relação aos movimentos das mesmas, visto já terem sido executados anteriormente em outras tantas narrativas. Essas estruturas actanciais estão ligadas às estruturas ideológicas, que auxiliam o espectador a atribuir um julgamento que define tanto as ações das personagens quanto à própria personagem em si.

 Percebem-se as aproximações entre as personagens que eram representadas na Commedia dell’Arte com as que hoje se apresentam nos enredos das Telenovelas. Temos em essência as mesmas figuras do bandido, do mocinho, da mocinha, do aproveitador, do sofredor, entre outras. Cabe salientar, como já o fizemos, que as aproximações não são completas e restritas em grau de similaridade, mas sim, que os arquétipos permanecem identificáveis em sua essência. Essas aproximações também são enquadradas nos enredos em que as figuras do Bem e do Mal, do Vilão e do Mocinho, do Herói e do Bandido estão sempre presentes, porém, são construídas tendo como base o atual contexto em que se inserem.

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Recebido: 24/04/2014
Aceito: 24/08/2014

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