Questões Contemporâneas

O Zeitgeist contemporâneo E o individualismo: UMA COMPREENSÃO EXISTENCIA

JÉSSICA PAULA SILVA MENDES

Mestranda em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá

RAFAEL BIANCHI SILVA

Doutor em Educação. Docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá


Resumo: O presente artigo busca desenvolver uma reflexão acerca do zeitgeist contemporâneo, problematizando os atravessamentos que a subjetividade tem sofrido ao experienciar a primazia do que é chamado de individualismo. Na tentativa de compreender os padrões relacionais encontrados na atualidade, discutimos o empobrecimento da coletividade. O objetivo é contextualizar a instabilidade sobre a qual as relações sociais têm sido estabelecidas de modo a dificultar a construção de vínculos duradouros. Revela-se uma experiência social caracterizada pela superficialidade tendo como consequências, por exemplo, relações sociais precárias e fugazes e o sentimento de solidão. Conclui-se que a transcendência desse modo de vida individualista pressupõe um engajamento com o contexto social-histórico e o exercício de responsabilidade por si e pelos outros.
Palavras-chave:  Individualismo; Contemporâneo; Relações sociais.

The ZEITGEIST CONTEMPORARY AND INDIVIDUALITY: UNDERSTANDING EXISTENCIAL

Abstract: This article seeks to develop a reflection on the contemporary zeitgeist, questioning the crossings that subjectivity has endured experiencing the primacy of what is called individualism. In trying to understand the relational patterns that found today, we discussed the impoverishment of the community. The goal is to contextualize the instability on which social relations have been established in order to hinder the building of lasting relationships. Proves to be a social experience characterized by superficiality as having consequences, for example, precarious and fleeting social relations and the feeling of loneliness. We conclude that the transcendence of this individualistic way of life requires an engagement with the social-historical context and the exercise of responsibility for self and others.
Keywords:  Individualism; Contemporary; Social Relationship.

O objetivo deste trabalho é analisar de que forma o zeitgeist contemporâneo tem preconizado o modo de vida individualista e pensar quais suas implicações no contexto social. Entendemos que a constituição do sujeito está intimamente vinculada à relação dialética que este estabelece com o mundo, estando continuamente exposto à subordinação de agentes socializadores. Como afirma Feijó (2008, p.312), “a subjetividade se constitui, incorporando, existencialmente, as verdades objetivas na singularidade”.

Veira (2003, p.8) pontua que o individualismo configura-se como característica típica de uma forma relacional que se encontra disseminada por ideias e práticas presentes na cultura vigente. Assim,

[...] O modo pelo qual o indivíduo se percebe e se comporta é diretamente proporcional ao tipo de estrutura social que ele pertence e à relação que estabelece com as outras pessoas. Esta relação não é algo passível, onde somente o indivíduo é coagido pela organização social, mas é uma relação bastante dialética.

Neste zeitgeist, nota-se a voracidade de acontecimentos em massa que roubam a vivência de emoções estáveis e revelam uma experiência social caracterizada pela superficialidade. Se não há nada que possa ser feito para mudar o que está por vir, o homem realiza suas escolhas em um plano exclusivamente voltado para si. Assim, desenvolve uma busca por sensações extremas em intensidade, aparentemente sem projeto ou engajamento com um porvir.

O auge do capitalismo e o desenvolvimento tecnológico, associados à globalização e ao consumismo favorece a constituição de um ser mais individualizado. Os novos modelos são apreendidos sob a óptica da instantaneidade e do seu potencial valor de mercado. De um lado, está a pulverização de referenciais estáveis e coletivos e, do outro, um sujeito absorto na propositiva capitalista de felicidade, empacotada e disponível a um custo irrisório.

Bauman (2008) denuncia um crescente cinismo do homem contemporâneo que não demonstra preocupar-se com projetos de longo prazo, estando desprendido de consequências a posteriori. A emancipação territorial do sujeito viabilizada, por exemplo, pelo avanço tecnológico, permite que a informação flutue sem fronteiras, eliminando o caráter físico das relações e sua corporeidade. Estas ganham contornos nômades e, possivelmente, mais impessoais à medida que se polarizam.

Viver para o momento é a paixão predominante – viver para si, não para os que virão a seguir, ou para a posteridade. Estamos rapidamente perdendo o sentido de continuidade histórica, o senso de pertencermos a uma sucessão de gerações que se originaram no passado e se prolongarão ao futuro. É o enfraquecimento do sentido do tempo histórico – em particular, a erosão de qualquer preocupação maior com a posteridade (Lasch, 1983 p. 25)

 

Os parâmetros sociais parecem cada vez mais enfraquecidos ao passo que as experiências do homem configuram-se a partir de valores voláteis e não estruturados, flutuando sobre desejos passageiros para a manutenção de estilos que são comercializados para e pelo sujeito e não mais em função das necessidades imprescindíveis à manutenção da vida em sociedade. “Têm-se a sensação de que se perdeu o ponto de referência ao qual os indivíduos seguiam ao longo de suas vidas previsíveis e racionalmente disciplinadas” (Silva, 2012, p.13).

Para Zanetti (2012), igualitarismo, democracia, individualismo e liberdade constituem valores que sustentam mudanças na construção dos vínculos. À medida que se cultua o si mesmo, perdido em meio a mercadorias, a humanidade caminha em direção ao vazio. O isolamento social vivenciado no mercado capitalista tem transformado vínculos humanos corroborando com uma disponibilidade psicológica para o descarte.

Para se enquadrar na cultura do consumo, o indivíduo busca se adequar às exigências da contemporaneidade nas quais as relações e as experiências com o mundo sensível já não apresentam estruturas tradicionais de modos de vidas estáveis, capazes de proporcionar certo alicerce para a construção da identidade.

Os estilos de vida constituem, em resumo, uma forma por intermédio da qual o pluralismo da identidade pós-moderna é administrado pelos indivíduos e organizado (e explorado) pelo comércio. Para os sujeitos que não podem mais se apoiar na estabilidade oferecida pelos modos de vida tradicionais, comunitários, o estilo de vida funciona, inegavelmente, como uma (precária) âncora identitária (Freire Filho, 2003, p. 74).

As identidades desvinculadas do tempo, da história e das tradições, flutuam livremente à medida que a vida social se torna mediada pelos estilos do mercado global, pelas imagens midiáticas e pelos sistemas de informação mundialmente interligados (Hall, 2005). O princípio do narcisismo impera no panorama capitalista que permeia as relações contemporâneas e parece negar a existência de contingências entre o indivíduo e o meio social. A necessidade em encontrar um fundamento conduz o sujeito a apegar-se em identidades imaginárias, limitando suas experiências e precarizando a convivência humana (Gonçalves, 2009).

O investimento físico, financeiro e emocional é atualmente canalizado para a preservação da individualidade, cuja referência maior é a liberdade. Acredita-se que a preservação do “eu” está vinculada a possibilidade de manter intacta todas as possibilidades de escolhas, e tudo ou todos que possam restringir esse leque de possibilidades passam a ser evitados (Vieira; Stengel, 2012).

Bauman (2004) fala em fraqueza, debilidade e vulnerabilidade das parcerias pessoais, anteriormente caracterizadas pela união, que cedem espaço ao surgimento de parcerias frouxas e revogáveis. Os vínculos sociais marcados pela transitoriedade e o compromisso incondicional com as pessoas, se configuram como uma armadilha a ser evitada a todo custo, uma vez que, invariavelmente, emergirá sua face restritiva. Assim, as relações humanas contemporâneas, caracterizadas pela fugacidade, submetem-se a temporalidade em função da satisfação de um desejo urgente e próprio, minando a ocorrência de relações mais duradouras e estáveis (Gonçalves, 2009).

Isso pode ser visto, por exemplo, nos relacionamentos virtuais que conectam pessoas em movimentos crescentes e inversamente proporcional ao engajamento mútuo. A experiência da vida online materializa na contemporaneidade um cenário, onde o homem sendo figura descartável, trava relações interpessoais sob a perspectiva de uso e desuso.

Os indivíduos que agem segundo esta dinâmica psicossocial do “consumo para si mesmo”, tendem a confundir as fronteiras entre o eu e o outro, entre o privado e o público, concedendo preferência ao registro da intimidade e se relacionando com o mundo apenas como meio de obter a gratificação de suas necessidades (Gonçalves, 2009, p. 190).

 

Para Teixeira (2013), a degradação da relação interpessoal e a priorização do aqui-agora somadas a superficialidade das relações, fornecem as bases para uma experiência pautada pela falta de sentido. De acordo com Lipovetsky (2007), espalha-se a cultura de apreciação do instante dado e o viver para si mesmo. A contemporaneidade trouxe à tona a primazia do individual sobreposto ao coletivo e, deste modo, a valorização do sujeito foi vinculada ao ter em detrimento ao pertencimento e envolvimento em grupos (Rosário, 2011).

Os limites fazem parte do processo civilizador de todo indivíduo. São eles sinalizadores daquilo que é ou não viável mediante a presença do mundo posto, repleto de expectativas, normas e regras sociais. A constante transgressão desses limites no zeitgeist contemporâneo abre espaço para um questionamento ético-moral acerca de condutas adotadas na atualidade. O outro é coisificado a fim de não constranger tais projetos egocêntricos, passando a ser visto como objeto e não como semelhante. O sujeito não se reconhece mais no outro, sendo este último apenas matéria e não parte constitutiva do próprio ser (Costa, 2011).

A condição para assumir uma relação fundamental de ligação com o outro exige que este seja tomado como sujeito-outro e não como objeto, absorto no reconhecimento da reciprocidade da relação (Silva, 2009). Deste modo, é condicional à legitimação do outro enquanto totalidade análoga a própria, que o “eu”, ao se deparar com um projeto divergente, seja incitado a desenvolver meios de unificar intenções que visem à integração em um projeto comum. A urgência em extinguir a liberdade do outro é suprimida em razão da transcendência da objetividade, rompendo com um projeto solipsista.

Como conclusão, poderíamos pensar que os traços que denunciam o individualismo, enquanto modo de vida nos dias atuais, apontam para um homem onipotente e desinteressado quanto ao social, alheio aos projetos coletivos em função de seu engajamento com projetos que lhe são próprios. Ao mesmo tempo em que a contemporaneidade forja um indivíduo autossuficiente, como consequência, encontra-se o fenômeno da solidão enquanto efeito do empobrecimento relacional por este vivenciado.

[...] encontramos, de um lado, a sensação de intensa solidão e de outro, a dificuldade de estar e permanecer em contextos que implicam contato e trocas  com diferentes, o que está intimamente ligado à sensação de medo, traço disseminado no contexto societário vigente, que oferece a tais encontros sensações cada vez mais difusas e ambivalentes quanto aos efeitos por eles causados (Silva, 2012, p.13)

Tomamos como ponto de partida, a necessidade, no momento em que vivemos, de “buscar meios para superar a visão individualista e equivocada que temos da liberdade e da ética [...]”, sendo que “[...] ambas só têm sentido nas relações que estabelecemos com os outros e com a comunidade”. (Bueno, 2007, p.8). Entendemos também que o homem não concebe, necessariamente, nos princípios externos ou valores universais parâmetros de conduta seguros e, portanto, não se pode pensar em valores morais de regência, mas em circunstâncias históricas em que o sujeito, dotado do exercício de escolha, indissociável de sua existência, deverá elencar seus valores e, conseqüentemente, responsabilizar-se por eles.

Repensar nossa experiência social implica um questionamento acerca da disponibilidade do homem em projetar-se no futuro, vislumbrar-se com o devir e suas possibilidades de concretude. Disso deriva um novo processo de idealização de um porvir que pressupõe um engajamento com o contexto sócio-histórico no qual o homem se vê inserido e um exercício de responsabilização por si e pelos outros. Consideramos esta uma das formas de enfrentamento do modo de vida individualista disseminado em nosso tempo.


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Recebido: 22/05/2014
Aceito: 28/08/2014

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