LIPIS

A REVELAÇÃO DO PROBLEMA DA EXTERIORIDADE EM JOSÉ SARAMAGO: ENSAIO SOBRE O HOMEM DUPLICADO

EDUARDO J. R. SANTOS
PhD. Scientific Coordinator R&D Unit Institute of Cognitive Psychology (IPCDHS/FPCE), University of Coimbra, III/Portuguese Foundation for Science and Technology (FCT); Adjunct Professor State University of New York, USA; Emeritus Professor Universidade Santa Cecília, Santos, SP, Brasil; Associated Researcher, Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Diretor da Revista Ibero-Americana de Gerontologia.


Resumo: No texto exploram-se interpretações do romance O Homem Duplicado de José Saramago à luz do problema da exterioridade em Levinas. Para além das questões suscitadas pelo tema do duplo, recorrente na literatura, procura-se aprofundar a discussão da narrativa no campo da identidade-alteridade em termos da tensão entre a totalidade e o infinito existencial.
Palavras-chave:Exterioridade; identidade-alteridade; duplo; outrem

THE REVELATION OF THE PROBLEM OF EXTERIORITY IN JOSÉ SARAMAGO: ESSAY ABOUT O HOMEM DUPLICADO

Abstract: The text explores interpretations of the novel O HomemDuplicado from José Saramago in the light of the problem of exteriority in Levinas. In addition to the issues raised by the theme of the double, recurrent in the literature, we seek to further the discussion of the narrative into the field of identity-alterity in terms of the tension between totality and existential infinity.
Keywords: Exteriority; identity-alterity; double; otherness

“O caos é uma ordem por decifrar. Livro dos Contrários” (Saramago, 2003, p. 9)
Tertuliano Máximo Afonso era um professor de História deprimido, ou em marasmo, como ironicamente Saramago o retratou no seu romance O Homem Duplicado (2003). Um homem em caos, como a epígrafe da obra anuncia. Caos, que no sentido revolucionário da palavra, me afigura como uma personagem do infinito das possibilidades indeterminadas que nós e os outros poderemos encarnar. Uma essencial e fundamental Exterioridade, que implode a totalidade de um mundo totalitário, globalizado, pós-colonial e clonado socialmente, na qual hermeneuticamente me associo nos termos da filosofia de Levinas, em especial no seu ensaio sobre esta temática (2011).

Na sequência desta tese leviniana, a exterioridade, como ética do Eu e do Outro, assume-se como a transcendência do Rosto, não do Mesmo, mas do Outrem, aqui paradoxalmente personificada pelo duplo de Tertuliano. Neste romance de enredo moral sobre a questão da identidade, e da alteridade, nesta modernidade desencantada e perturbada em que vivemos (cf. Latour, 1993) (também contida no romance Todos os Nomes, 2010, e didaticamente interpretada em A Estátua e a Pedra, 2013), a problemática narcísica do duplo/ciúme e da morte simbólica do outro na relação humana também surge de modo magistral. Ademais, neste romance de Saramago (como em toda a sua obra), a multiplicidade, e diversidade caleidoscópica do psicológico e do social, oferecem-se como uma potência de interpretação infinita de imensos arquétipos humanos e de fenômenos dos cotidianos individual e social (e.g., Chauvan, 2012; Flach, 2006; Gomes, 2012; Paranhos, 2009; Suman, 2012). O próprio autor, logo no início da obra, nos fornece uma possível pista entre as prováveis miríades interpretativas: “O que por aí mais se vê, a ponto de já não causar surpresa, é pessoas a sofrerem com paciência o miudinho escrutínio da solidão,…” (p. 12)!

Desde sempre, a questão do duplo tem antropologica e historicamente exercido um poderoso fascínio na humanidade, enquanto tela de excelência para a projeção dos seus grandes dilemas, como Rank (1939) já alertava. Na cultura popular, o tema dos sósias e dos gêmeos é fonte de mistério e fantasia para além da racionalidade.

Na filosofia, inicia-se com Platão esta aventura do pensamento duplicado com o mito da androgenia, e o mito da dupla realidade (caverna). E, por extensão clínica, na psicanálise, surgem Freud, com o tema do estranho, e Jung, com o tema da sombra, eentre outros.

Por último, constata-se que a literatura tem sido um dos campos mais férteis para a sublimação desta problemática em termos de imaginário (cf. Todorov, 1975), sendo que esta obra de Saramago se afirma como um dos expoentes máximos no romancear da construção duplicada, sobretudo quando o(s) duplo(s) assumem a personalidade de perseguidores, e assim a intensidade dramática erege-se como uma catarse face a vivências paranóicas. Catarse, que na minha postura hermenêutica e fenomenológica, se aponta como um caminho ético para a Exterioridade libertadora e emancipadora de pessoas e sociedades.

“… imagine como ficaria se me visse entrar onde já estou,…” (p. 198)
Tertuliano Máximo Afonso descobre por acaso num filme sugerido por um colega seu, racional professor de matemática (como terapêutica para o seu marasmo), que possui um duplo, uma possibilidade quântica de um “mundo paralelo”! Enredado numa teia de afetos contraditórios entre uma mãe, um divórcio, uma (suposta) namorada, e (em prolepse) uma futura amante e esposa, e agora envolto numa estranha “estória” em que um outro se apresenta como igual a si mesmo, o personagem parte numa descoberta desse outro, mas em que, simultaneamente, se vai descobrindo si próprio… Amaldiçoada fatalidade de quem se conhecia apenas como entusiasmo, ou subtil paixão, a história da cultura mesopotâmica, e que é descrito por Saramago, enquanto narrador, deste modo:

“Tertuliano Máximo Afonso não pertence ao número dessas pessoas extraordinárias que são capazes de sorrir até quando estão sozinhas, o próprio dele inclina-se mais para o lado da melancolia, do ensimesmamento, de uma exagerada consciência da transitoriedade da vida, de uma incurável perplexidade perante os autênticos labirintos cretenses que são as relações humanas,…” (pp.205-206)
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Não admira, portanto, que se espante:

“É difícil considerar estranha uma pessoa que é igual a mim,…”/“Estranhos somos todos nós,…” (p.34).
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Ou exclame, a propósito do confronto com o rosto do seu duplo:

“o meu próprio retrato,…” (p. 216), “Sou eu,…” (p.25), “cópia minha,…” (p. 29).
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E numa revolta perante a ameaça à sua singularidade e individualidade, perpetrada pelo “lacaniano” intruso e rival, expresse:
“só o vi a si como aquilo que não é,…” (p. 198), “o duplicado é você” (p. 221)!
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Ora esta exterioridade que se apresenta abrupta, inesperada e catastroficamente na sua monótona existência, e na sua cinzenta totalidade, não é dotada de uma beleza romântica e de abertura para novos mundos, de um saborear do fluxo da vida, mas de angústia em compreender que aquilo que era novidade na sua rotina, surpresa das surpresas, era um duplo de si. O que ia para além da sua interioridade redundante era uma exterioridade que o colocava em questão, que o obrigava a enfrentar os seus medos, que o fazia aprender a ser de modos nunca antes sonhados, e agora transformados em atormentadores pesadelos.

A maldade do fado que lhe calhava em má-sorte, qual narciso urbano (Santos & Ferreira, 2008), era a da coincidência, a da igualdade não-premeditada. A de um oculto acaso, que o romance nunca revela a origem, por intenção, ou por impossibilidade! Tertuliano, que apenas se via ao espelho para se barbear e pentear matinalmente antes das suas tarefas no mundo enfadonho e tirano das ocupações, tinha agora à sua frente um espelho falante, andante, pensante, mas que na ambiguidade e na ambivalência do imprevisto era um sujeito especular. Em suma, no romance encontram-se dois sujeitos-espelho com vozes e intenções sobrepostas! Um deles irá quebrar-se…

Tertuliano sentia-se como um estrangeiro (Camus) num mundo que desconhecia. A sua aprendizagem seria dolorosa, pois não entendia a sua sentença (Kafka). A mítica profecia narcísica de que, quando nos vemos no espelho pela primeira vez, verdadeiramente e em consciência, a morte em breve sobrevirá, iria concretizar-se!

O nosso personagem principal vivia até ao momento na perfeita anomia, na excelsa invisibilidade de si, numa espécie de “cegueira branca” (Saramago, 1995), alienado da vida, e por tragédia o seu primeiro olhar é para um espelho que o afronta, porque o duplica exogena e endogenamente, incompreensivelmente. A sua primeira oportunidade de se ver, vendo para mais além da sua totalidade agonizante, é a de uma Exterioridade “déjà-vu”! Haveria que a destruir, para se libertar. Tortuosas linhas a deste romance…

Deste modo, nesta fase precoce do trauma, Tertuliano empreende a aventura obsessiva de descobrir quem era, face ao seu duplo. Um erro? Quem é o original? Quem é a cópia? Quem é o autêntico? Quem é o duplicado de quem? Quem pensas tu que eu sou? (Slavutzky, 2009). A abertura ao hipotético não foi um enamoramento, mas um tormentoso estranhamento. Antes da procura do sentido da vida, abria-se simbolicamente a tenebrosa porta da procura do sentido da morte (Yalom, 1995). Das não-certezas da sua vida repetitiva, passava à incerteza absoluta: quem sou eu, quem é o outro? Dos hábitos reprodutores do dia-a-dia passava à indecisão vital: como sobreviver no acaso e no desconhecido?

Tertuliano, entre a realidade comezinha da sua vida simples e um épico desafio existencial, entre a sua proverbial e teatral melancolia, permeada pelos diálogos com o personagem “senso-comum”, e uma epifania que nem ele compreendia, duplicava-se, multiplicava-se em esgueires heróicos. Afogado num noturno drama místico, essa era a sua defesa diurna (Durand, 1983).

Ao seu duplo, António Claro, embora de vida mais colorida, ia acontecendo o mesmo! E aos outros personagens mais significativos desta trama, os acontecimentos da história também os iam marcando profundamente. E, assim, o infinito do improvável, do que está para além de nós, surge em cena na sua máxima potência.

Tertuliano confrontava-se com um outro que era um não-eu, uma exterioridade bizarra, mas que implicava também o confronto com o seu duplo interno (que agora despontava), o que o incomodava, pois era como um desconhecido dentro de si, e ambos transformavam-se em espelhos, simultaneamente, reflexivos e projetivos. Este clima quase delirante e alucinatório, que encontramos, igualmente, em contos de autores do realismo mágico como Murilo Rubião (e.g., Os três nomes de Godofredo, 2010, pp. 111-117), ou Gabriel García Márquez (e.g., Um Senhor Muito Velho com Umas Asas Enormes, 2010, pp. 9-19), é sintoma da perplexidade que a questão da identidade/alteridade/duplicidade nos provoca, a qual tem sido retratada maravilhosamente na grande literatura mundial, como, por exemplo (assinalo simbolicamente), em O Duplo: Poema de Petersburgo de Dostoiévsky (1846), o genuíno fundador do pensamento existencialista, no qual Goliádkin precede Tertuliano no seu drama.

“… o senso comum não é mais que um capítulo da estatística…” (p. 69)
Enquanto o romance se desenvolve, Tertuliano Máximo Afonso e António Claro vão engendrando ardilosos esquemas para se colocarem agressivamente face-a-face. E a entropia emocional metastiza-se e a complexidade de sentimentos dispara: a lei de talião impera! A clonagem era perfeita, ou quase! As caligrafias eram um pouco diferentes: talvez a palavra escrita tivesse acumulado pelo corpo existências diferentes. E as horas de nascimento também eram diferentes, o que, mantidos todos os outros fatores constantes da cópia, significava que um deles morreria mais tarde (exatamente 31 minutos) – “Desejo-lhe que viva bem esses trinta e um minutos de identidade pessoal, absoluta e exclusiva, porque a partir de agora não vai ter outros,…” (p. 223), diz em desespero António Claro. As brechas nos espelhos fortalezas iam aparecendo…

Mas era necessário ir mais longe. Após o sentimento de humilhação e de perda, pelo confronto de se verem nus, mas, sobretudo, corporalmente iguais (até nas suas cicatrizes e sinais), num derradeiro teste de semelhança física, a vingança sem causa assoma nas suas consciências. E um guião comportamental verdadeiramente maquiavélico vai-se construindo no cotejo neurótico das suas inseguranças narcísicas.

Roubar a mulher do outro: eis a ideia! Obrigar à traição involuntária de Maria da Paz, namorada de Tertuliano, e em espelho distorcido de Helena, esposa de António. As identidades dos dois inimigos confundem-se numa simbiose inconsciente; usam disfarces fílmicos para não serem identificados nas suas parecenças perante os outros quando próximos. Afinal, a vida não passa de uma representação fílmica (Goffman,1993) – Tertuliano conjeturava: “Todos nós andamos por aí, mais ou menos somos todos figuras públicas, o número de espectadores é que difere,…” (p. 179). Apenas dona Carolina Máximo, mãe de Tertuliano, seria capaz de os distinguir pelo instinto materno que todas as boas mães possuem. As máscaras das personas são instrumentos rudimentares perante a empatia e a genuinidade do amor, poderei acrescentar. Isto é, a história já não era de senso-comum (aquela voz interior com que Tertuliano conversava de vez em quando), de regularidades, mas de emaranhados identitários, de triangulações recursivas.

“… Há uma parte de ti que dorme desde que nasceste, e o meu medo é que um dia destes sejas obrigado a acordar violentamente,…” (p. 262)
Maria da Paz, atraída para uma cilada amorosa por António Claro, pensando tratar-se de Tertuliano (já que na ignorância não desconfiava do duplo), ao notar um pormenor do falsário – a marca da aliança de casamento no dedo – acaba por perceber que estava envolvida num imenso logro, numa armadilha brutal. Perante o desespero, e a incompreensão do que se estava a passar, a reação violenta de Maria da Paz numa discussão com o impostor leva à trágica morte dos dois num acidente rodoviário.

Noutro cenário, Tertuliano, usando no seu dedo essa aliança em casa de Helena, onde estava usurpando a identidade do rival (vestindo também a roupa de António, numa perfeita coreografia) - e onde esta, igualmente, não desconfiava da troca de identidades, embora ciente da existência de um duplo - confessa a sua verdadeira identidade e artimanha, após ter sabido da notícia do funesto acontecimento. Durante essa noite, na mais perfeita encenação, Tertuliano tinha possuído sexualmente a esposa de António Claro!

A seguir, tudo se “harmoniza”, para, numa monumental mentira, Tertuliano assumir a identidade de António, a sua vida, o seu objeto de desejo e amor, tudo… correspondido, surrealisticamente, por Helena! Mas, eis senão quando um novo duplo irrompe na vida de Tertuliano através de um inusitado telefonema de alguém completamente igual a si (uma cena já vivida atrás). A exterioridade onipresente e anárquica impõe-se novamente…Mas Saramago deixa perfeitamente abertas ao leitor infinitas leituras de interpretação e de continuidade do romance.

Tertuliano não hesita mais e vai de imediato ao encontro do novo duplo, desta maneira (última frase do romance): “Entalou a pistolano cinto e saiu.” (p. 318). Seriam as proféticas palavras de dona Carolina Máximo, sua mãe, que transcrevemos acima, qual mítica Cassandra (no dizer do seu filho), a realizarem-se e a quebrarem o encantamento ou feitiço?

No entanto, devo advertir – Tertuliano antes de sair deixou um bilhete à sua nova mulher: “Voltarei” (p. 318)… Conseguiremos imaginar como, quando…?

Tertuliano na sua vida anterior certamente terá aprendido que, quando deixamos de ser nós para nos diferenciarmos dos outros, por mais parecidos que sejam, e assim nos disputem a existência, o preço pode ser muito alto: por exemplo, perder quem mais amamos (Maria da Paz), mesmo que tal sentimento fosse insuspeitado. Para eu ser quem sou, terei de matar o outro (con) fundido comigo e depois ressuscitar do cadáver daquele que nunca fui? Será que a potência libertadora de me emancipar de mim, enquanto reprodução duplicada, triplicada, multiplicada… moldada a partir de uma totalidade padronizada do capitalismo neoliberal que nos assassina com o trabalho escravo e o gás do consumo, terá de caminhar no sentido niilista ou, pelo contrário, no sentido de um pós-humanismo insurgente (Papadopoulos, 2010)?

Como poderemos transformar os desafios da Exterioridade, do Rosto do Outro, mesmo que Duplo, numa força da natureza e da cultura? Saramago deixa-nos um repto que só a sua leitura concentrada e comprometida nos poderá dar caminho, e iniciar na arte da interrogação ética! O Homem Duplicado é, em minha opinião, um ato iniciático… em forma de romance.

“…a única decisão séria que será necessário tomar no que diz respeito ao conhecimento da História, é se deveremos ensiná-la de trás para diante ou, segundo a minha opinião, de diante para trás…” (p. 48)
O filme que marca o início da tensão narrativa “Quem Porfia Mata Caça” será um dos disparadores desta história. Mas o seu sentido (analéptico) apenas contém a semente da contradição. Não parece que a revolução individual e social que nos trará a paz será conquistada numa arqueológica aventura nômade de sobrevivência pela caça!

Da banalidade das identidades medíocres, Saramago transporta-nos para a possibilidade das alteridades sublimes. Num subliminar ad infinitum, Saramago propõe-nos o caminho da revolução através deste romance. Agora, também, na coragem que o leitor terá de revelar para o continuar, para criativamente compreender e fantasiar mundos para além de nós próprios.

Este romance não acaba aqui! Impele-nos para a Exterioridade, para o infinitamente Outrem, que nos poderá libertar da miséria da condição humana na nossa sociedade: lição que Tertuliano Máximo Afonso aprendeu de forma dramática. No exorcismo dos seus fantasmas, parafraseando Lewis Carroll, colocando-se do outro lado do espelho.

Pedra a pedra, Saramago descreve neste romance a ponte para a libertação do Eu, para a verdade de cada um de nós, que não se pode resumir a uma cópia do padrão totalitário que a sociedade atual nos obriga a reproduzir. Como Marco Polo respondia a Kublai Khan (em As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, 2013), é necessário falar das pedras da ponte, pois sem elas o arco que a sustenta não existe! E Saramago fala, e fala: isto é, conta uma história no sentido cronológico da narrativa, mas proporciona-nos também, em minha opinião, possibilidades de interpretação de “diante para trás”, como advogava o professor de História, Tertuliano Máximo Afonso.

O autor e narrador José Saramago conta-nos uma história que assim aconteceu, mas talvez não devesse ter assim acontecido, e por essa razão é exemplar. Tertuliano ao descobrir o seu Duplo, um insólito Outro, ensimesmou-se e não se abriu na sua subjetividade. Para Levinas, na sua filosofia da Exterioridade, a identidade deverá estruturar-se subjetivamente como “hospitalidade”, como relação de acolhimento, e não como pre-conceito. Mas tal não aconteceu nesta “estória”, e sem nunca o nomear, este romance aborda o problema da Exterioridade e do Infinito. Não de um modo pensado, mas sentido, pois o infinito é impossível de ser cogitado, apenas experienciado na e pela relação com o Outro. A exterioridade do Outrem não cabe numa ideia, pois é um transbordamento do ideatum.

Tertuliano, como afirmei, ensimesmou-se, à moda imperial ocidental. Não procurou a transcendência e a infinitude do fenômeno e da coisa. Não procurou o Rosto do outro, apenas se encapsulou na sua paranóia narcísica. Levinas (2011) escreve, a este propósito: “O infinito é característica própria de um ser transcendente, o infinito é o absolutamente outro” (p. 36). Tertuliano desejou, no sentido mais possessivo da palavra, a morte do outro, e não procurou a bondade ética da partilha, mesmo que fosse da surpresa e da angústia da emoção de se ver duplicado. Desejo é, no sentido leviniano, a dádiva da nossa abundância, do nosso excesso, e não a avareza e usura da satisfação das nossas necessidades. O encontro com o outro deverá ser a partir das nossas riquezas e nunca a partir das nossas inexistências.

Mas Tertuliano sentiu-se ameaçado, confuso, atacado na sua finitude, na sua ipseidade cotidiana, dicotomizando a situação, negando a realidade. Incapaz de construir o outro em si como alteridade, aceitando-o incondicionalmente. A filosofia ocidental da consciência, e da posse colonial, como penso a partir de Levinas, concebe a exterioridade como um conhecimento antecedente em nós, como uma soberana vontade racional de pensar o outro infinito como uma parcela da Totalidade do Mesmo globalizado. Mas essa negatividade de abertura ao infinito é incapaz de transcendência: Tertuliano desejou colonizar António, e vice-versa, e assim abriu-se uma guerra trágica entre mundos irredutíveis, embora tão próximos. Ambos não perceberam que o que está para além de nós, da nossa compreensão, das nossas vivências,… não cabe em nós mesmos, e só se pode situar na exterioridade da relação com Outrem.

Existe um pensamento para além do pensador, mesmo sem pensador, apenas um pensado (cf.Epstein, 1995). É o pensado da desobediência, da rebelião, da resistência… que, na minha fantasia, terá sido o pensado de Tertuliano ao sentir-se novamente duplicado. Terá apreendido a moral da história? Levinas (2011) medita, deste modo, para além do protesto egoísta e da angústia de morte face à opressão da totalidade:

“A ideia do infinito não parte, pois, de Mim, nem de uma necessidade do Eu que avalie exactamente os seus vazios. Nela, o movimento parte do pensado, não do pensador. É o único conhecimento que apresenta esta inversão – conhecimento sem a priori. A ideia do infinito revela-se, no sentido forte do termo”(p. 50).
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Concluindo, a revelação a que, na minha opinião, este romance nos faz chegar é o debate da transcendência das nossas identidades pela exterioridade de Outrem. Dramaticamente, este outro era um Duplo. Porém, a narrativa e asheurísticas interpretativas intensificaram-se a bem da história, produzindo uma exegese ímpar.

Escreve Agustina Bessa-Luís, em A Mãe de um Rio (1971), a propósito do destino de Fisalina dos dedos de ouro, incauta guardiã das águas profundas: “Também os vigilantes do espírito humano precisam ser rendidos, e as águas da sabedoria devem ser habitadas por novos mestres” (p. 26). Assim, se me revelou José Saramago em O Homem Duplicado! Na sua inovadora maestria e sabedoria para além das conveniências e das banalidades: uma infinita exterioridade face às ditaduras identitárias do presente.

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Recebido em: 27/ 05/2014
Aceito em: 03/06/2014

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